Público - 03 Out 04
Colocados
com Os Pés...
Por
ANTÓNIO BARRETO
sabido que
palavras a mais cansam. Que a repetição de imagens na televisão
anestesia. Que os protestos excessivos acabam por ter o efeito
contrário, o de tornar as pessoas insensíveis. E que a sucessão de
manifestações de revolta cria uma espécie de imunidade das
consciências e das emoções. Mesmo assim, o que se passou nestas
últimas semanas, com a colocação de professores, consegue ainda
hoje, pousada a poeira, provocar a estupefacção. Não me sai da
memória aquela imagem do professor belga que, informado dos
desastres portugueses, apenas podia articular uns espantados "É
inconcebível", "É inimaginável"! O que na verdade se passou foi um
dos pontos mais altos da degradação social em que vivemos. Aflige o
desprezo a que são votados pais e famílias, alunos e professores,
por um sistema administrativo refém de sindicatos, cativo de
ministros e servo funcionários arrogantes, convencidos das suas
construções intelectuais e políticas e obcecados com os seus
privilégios.
Não sei, nem
me interessa muito sabê-lo, se este foi o pior ano de todos. Foi
certamente um dos piores. Mas não esqueço, nestes últimos trinta
anos, outros desastres semelhantes. Como recordo também falhanços
talvez menos caricatos na televisão e menos visíveis na praça das
emoções públicas. Muitas vezes o desastre era mais discreto ou mais
simples. Ou antes, apenas visível nas centenas de escolas a que
faltavam professores até Dezembro ou Janeiro. Nos milhares de
alunos, dispersos pelo país, com "furos" nos horários até muito
tarde. E nas centenas de milhares de alunos só com aulas de manhã ou
de tarde. Lembro-me de tudo. Por isso, a tão especial imbecilidade
deste ano surge apenas como mais uma. Este género de competição que
consiste em saber quem foi o pior, numa situação permanente e
globalmente deficiente, constitui fonte de engano. Na verdade, para
se ter chegado aqui, a responsabilidade é realmente do "sistema" e
das luminárias que, no ministério e nos sindicatos, o inventaram e
administraram durante décadas. O "sistema" está errado nos seus
fundamentos. Repará-lo é inútil. Substitui-lo é urgente. Mas podemos
ter a certeza de que, passado o tumulto, toda a gente se vai
esforçar, preguiçosa e arrogantemente, por reparar o irreparável.
Até um dia...
O mais grave
de tudo isto é a aniquilação da escola como instituição responsável,
dos pais como parceiros indispensáveis, das comunidades locais como
primeiros interessados, dos professores como profissionais dignos e
dos alunos como destinatários. Penoso é verificar a inexistência de
uma autoridade na escola e ver que esta entidade é incapaz de, em
Abril ou Maio, ter totalmente preparado o seu ano lectivo seguinte,
incluindo o corpo docente, os manuais escolares, os horários fixos e
estáveis e as obras de Verão planeadas. Doloroso é observar a
miserável proletarização de professores que, durante dez ou vinte
anos, andam de sítio em sítio, com efeitos nefastos para si e suas
famílias, mas sobretudo para as escolas e as comunidades. Irritante
é perceber, mais uma vez, que, ao longo do ano, problemas
semelhantes se repetem com professores doentes ou faltosos não
substituídos, com a impossibilidade de uma escola escolher os seus
professores e assegurar a necessária estabilidade do quadro docente.
Confrangedor é ainda perceber que, por entre destacamentos,
requisições, transferências, regimes especiais e atestados médicos
de conveniência, se instalou no sistema, aparentemente neutro e
impoluto, a corrupção, o despotismo burocrático e o caos
organizativo. É, finalmente, impressionante, verificar o ódio e a
repulsa existentes, em Portugal, contra as instituições livres e
responsáveis! E não se pense que as consequências deste estado de
coisas se reflectem apenas ou sobretudo nas colocações de docentes e
na desordem administrativa. Os verdadeiros resultados estão aí, uma
vez mais, bem visíveis, nos resultados das escolas e respectiva
classificação. A competição entre público e privado é uma questão
secundária. Lamentável e grave são as médias das escolas e das
disciplinas. Quase dois terços das escolas secundárias do país (num
total de mais de 600) têm médias globais negativas (inferiores a 10
valores) no conjunto das oito principais disciplinas, incluindo
Português, História, Matemática, Química, Biologia e Física! Alguém
perceberá que são gerações inteiras perdidas? Que este panorama de
catástrofe é irrecuperável antes de dezenas de anos? Como é possível
que todo um país, das indiferentes burguesias aos distraídos
professores e das inexistentes elites aos vorazes empregadores, não
reaja contra este estado de coisas?
O país tem
professores suficientes. Talvez até a mais. Os orçamentos de Estado,
mais milhão menos milhão, chegam. Os edifícios também. Esses não são
os problemas. Se alguém pretender encontrar soluções é aí que as
deve procurar. Quando perceberão os responsáveis (ministros,
funcionários, professores...) que necessitam de diversificar os
modelos de gestão? Que as escolas devem ser dirigidas por um
director nomeado e contratado por alguns anos? Que a escola deve ser
responsável pela selecção e pelo recrutamento dos seus professores?
Que cada escola deve anunciar, em Maio, o seu corpo docente, os seus
horários e os seus manuais escolares? Que os professores devem ser
contratados por vários anos e obter a estabilidade ao fim de um ou
dois contratos? Que todos os alunos devem ter horários diurnos
completos, de manhã e de tarde, incluindo tempo de estudo e
actividades organizadas? Que as escolas devem ser entregues às
autarquias, ficando o ministério com as responsabilidades do
currículo nacional, da inspecção e do planeamento financeiro
nacional?
E se, em vez
de usar o computador ou de o fazer à mão, colocassem os professores
com a cabeça? Talvez não fosse má ideia.
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