Público - 6 Out 03

Toda a Vida
Por FERNANDO ILHARCO

Ao contrário do que toda a vida pode parecer que aprendemos ou que nos ensinam, o mais decisivo na educação não é o que estudamos, que lemos ou ouvimos, mas antes a forma, uma vezes imperceptível outras vezes brutal, como os assuntos e as novidades nos chegam e nos moldam num modo de ser a que chamamos humano. Substantivamente, a educação é um adjectivar, um adjectivar da vida, de uma vida a quem Deus deu a possibilidade de se erguer física e espiritualmente e de florescer sobre o cuidado, o tomar conta, entre os outros, na evidência do futuro que aí vem. No estudo, no incentivo e no desafio, a educação, o educar os outros e o educarmo-nos a nós mesmos, não é assim, nem apenas nem sobretudo, o esforço por um melhor entendimento de qualquer assunto específico, mas antes um olhar, uma palavra, uma ajuda e cumplicidade, que visa deixar o outro tornar-se naquilo que é, como primeiro Pindar, o poeta lírico grego do século V a.C., o deixou entender e mais tarde, Kierkegaard e Nietzsche, entre outros, o voltaram a pensar na tradição do pensamento Ocidental.

Hoje, o centro do furacão, das novidades e surpresas da vida já não é o quintal ou o pátio da frente. O caudal da informação em que estamos imersos não vem mais da escola ou do tempo em família. Os valores, as práticas, os comportamentos, as atitudes, os símbolos e a visão que temos de nós, do país e do mundo vai sendo moldada pela rua, pela televisão, pelos jogos, pelas companhias e por um mar de pessoas estranhas, cansadas, em corrida, muitas sem quererem saber. Numa sociedade confusa, marcada pela cultura do escândalo e pelo salve-se quem puder, a educação, tanto numa perspectiva daquilo que o sistema de ensino possa fazer como no âmbito do que a cultura que somos nos permite entender, é muito, talvez seja sobretudo, uma actuação pelo exemplo, pela fé na obra dos homens e na possibilidade de uma vida digna. A educação, no seu sentido profundo, o de deixar erguer a vida do outro, é sobretudo a modelação da cultura que habitamos, dos valores que promovemos, das práticas e dos comportamentos que aceitamos. Tudo isso influencia o sistema de educação e influencia também a criação de riqueza. Assim, a educação é tanto uma causa como uma consequência da sociedade que somos, do país onde vivemos, da cultura e dos comportamentos que temos. No entanto, a escola, o pré-escolar, o liceu, a universidade, são, talvez, o que mais possa contribuir para melhorar a vida dos portugueses e dos que cá chegaram; isto é, olhando o futuro, eles podem ser a principal causa de um país melhor. Mas, simultaneamente, são também uma consequência do país que já somos, dos comportamentos que admitimos, dos valores em que assentamos como comunidade.

Nenhum país do mundo se tornou próspero sem uma superior qualidade dos seus profissionais; quer isto dizer, do seu povo, das pessoas que o formam como comunidade, no seio da qual os seus profissionais nasceram, cresceram e foram educados. Mas como atingir aquela qualidade se a educação, as escolas e as universidades, são, também, e inapelavelmente, uma consequência, uma parte do tipo de sociedade que é o pais que sempre e a qualquer momento já somos?

Sabe-se que os níveis de educação formal das populações, do pré-escolar aos estudos superiores, têm uma correlação positiva com a criação de riqueza: quanto mais elevados aqueles são, mais alta é esta última. Contudo, uma conclusão apressada, colocando a educação como causa e a criação de riqueza, avaliada pelo PIB "per capita", por exemplo, como consequência, apesar de evidente e simpática, pode esconder relações mais complexas. São os elevados níveis educacionais que originam um PIB "per capita" elevado? Ou é um PIB "per capita" elevado que proporciona elevados níveis educacionais? Poderão existir outros factores que influenciem o comportamento daquelas duas variáveis? Evidentemente que sim. Se tomarmos de um lado o nível educacional da população de um país e o seu PIB "per capita" e, de outro lado, a cultura nacional desse mesmo país, ou seja, uma avaliação dos valores, das práticas e dos comportamentos que marcam o modo de estar e de ser dessa mesma comunidade, podemos observar interessantes correlações. Baseando-nos no trabalho de investigação de Hofstede sobre as culturas nacionais de perto de meia centena de países, constatamos que quanto mais alto é o receio do futuro, a ansiedade face ao desconhecido, a reverência, o temor e a dificuldade de comunicação com os superiores hierárquicos, mais baixos são os níveis educacionais e mais baixo é também o PIB "per capita"; quanto mais acentuados são os valores da auto-responsabilização, da iniciativa, da liderança, também mais elevados são os níveis educacionais e o PIB "per capita". Quer isto dizer que se o contexto social e cultural em que vivemos inibir a responsabilização, a ambição pelo conhecimento, a recompensa do mérito e da qualidade, a aceitação do risco, o espírito empreendedor e a cooperação, então a criação de riqueza será muito difícil. Baixos níveis de riqueza, por seu lado, dificultam a afectação de recursos e de competências a políticas de educação estruturais, capazes de influenciar variáveis culturais como as acima referidas. E assim fecha-se o círculo: a escola reforça a cultura existente, a qual inibe a geração de riqueza, o que por sua vez inibe a renovação educativa...

Neste ponto, a questão não é tanto como é que isto tudo se pode mudar, mas como é que isto tudo vai mudando? Os valores, as práticas, os comportamentos, as atitudes, os símbolos, estão sempre em desenvolvimento, em ajustamento, experimentando novas possibilidades e tomando novos caminhos. Hoje, em Portugal, no dia a dia dos escândalos mediáticos, muita coisa pode estar a mudar - as pessoas parecem fartas dos abusos, das prepotências e de uma cultura de incompetência. O que cada um vai fazendo no seu dia a dia, a forma e o modo como é o ser no mundo que vamos sendo, vivendo e dando testemunho de valores e de uma ética de cuidado e de
responsabilidade, de competência e de inovação, de qualidade e de melhoria, pode ser a melhor de todas as educações. Uma palavra, um pequeno texto, um gesto, uma ajuda numa situação em que já nada se esperava, pode encher uma vida e mudá-la para outro horizonte, abrindo possibilidades que ninguém, nem nós mesmos, muitas vezes podemos inteiramente entender ou explicitar. As explicações, os números e as teorias surgem-nos sempre no âmbito do que intuitivamente as coisas e o mundo já são para nós. E é nessa intuição, nesse carácter básico e fundador da nossa vida no mundo, que um pequeno gesto, um desafio certo, pode vir a alterar e a mudar toda uma vida. A quadratura do círculo pode resolver-se todos os dias, na vida de cada um de nós, dando testemunho das muitas e variadas formas como nesta Terra se pode manifestar uma vida digna, solidária e motivadora.

"Hoje em dia ouvimos muita coisa sobre educação", escreveu Dostoievsky na Rússia do século XIX, continuando - numa passagem há tempos aqui referida mas sempre nova e surpreendentemente evidente - "mas a lembrança de algo belo e querido, que tenhamos sabido guardar desde a nossa infância é a melhor de todas as educações. Se pela vida fora levarmos connosco  recordações suficientes desses momentos estaremos salvos para o resto dos nossos dias". Em qualquer momento, em qualquer lugar, uma palavra, um olhar pode encher toda uma vida - e o que é isso senão educação?

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