Público - 5 Out 03
Já Abriu a Época das Praxes
Por ANDREIA SANCHES
Ao segundo dia de praxes, uma das jovens caloiras da Escola Superior
Agrária de Santarém (ESAS) faz o balanço do que está a sentir: "Ontem
foram brutinhos connosco, mas até agora nada de grave. Às vezes as pessoas
não se aguentam, ontem houve algumas raparigas que choraram... Eu tenho-me
aguentado. Isto custa um bocadinho, mas acho que até pode ser bom. Se uma
pessoa for antipraxe é rejeitada..."
Os veteranos estão satisfeitos: "Está a correr muito bem. Basta olhar para
eles para perceber que estão à vontade", diz Bruno Jorge, 26 anos,
presidente da comissão de praxes. Então a que se devem as lágrimas de
alguns caloiros? O veterano recusa que seja por medo. Prefere falar de
amizade e respeito. "Choram porque têm respeito à gente..."
De cerveja na mão, num momento de descontracção pouco antes do início do
"leilão dos animais" - designação dada por alguns alunos mais velhos ao
leilão dos caloiros -, Bruno Jorge assegura que os estudantes
recém-chegados não são tratados com agressividade. "Futuramente teremos
uma amizade muito boa."
A ESAS foi notícia no ano lectivo passado quando, em Fevereiro, uma
caloira se queixou ao ministro da Ciência e do Ensino Superior de ter sido
alvo de "tortura" durante as praxes. Foi a segunda denúncia a ter eco na
comunicação social - a primeira, em Janeiro, tinha sido feita por uma
estudante do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros. E as praxes
entraram na ordem do dia.
Hoje, na ESAS, ninguém esquece o que aconteceu. "Não digo que não tenha
havido exageros, é-nos totalmente impossível controlar todos os
veteranos", reconhece Ana Paula, 20 anos, membro da comissão de praxes.
A primeira semana do ano lectivo é totalmente dedicada às praxes que,
"oficialmente", só terminam a 12 de Novembro - dia em que os novos alunos
de todas as escolas saem à rua para o desfile do caloiro. Os
recém-chegados (excepto os que têm problemas de pele, asseguram os
veteranos) são pintados com tinta para marcar animais. Almoçar com as mãos
atadas uns aos outros, fazer bonecos com bosta de vaca ou decorar o hino
da escola, que é repetido dezenas de vezes, são algumas das provas a
superar. "Não somos gente ordinária, somos pessoas de bem" - já todos
sabem de cor os versos.
"Se quisermos falar, também podemos"
As actividades começam às oito e meia da manhã e acabam à noite. Não há
tempo para descansar. Tudo foi rigorosamente preparado nas últimas
semanas, inclusive as festas nocturnas em cafés e bares de Santarém que
patrocinam a comissão de praxes e oferecem descontos nas bebidas. Outra
das benesses é que os caloiros não pagam consumo mínimo. Na quarta-feira
era a "noite do shot", segundo anunciava um dos convites.
Apesar das festas, há que manter "uma certa distância" entre mais velhos e
mais novos, o que começa por traduzir-se nas permanentes ordens gritadas
aos caloiros: "Responda: Sim Sr. veterano!"; "Cante mais alto!";
"Sente-se!"; "Levante-se!"; "Riam-se!"; "Calem-se!"; "Por que é que ontem
à noite não veio sair? Responda!"; "Só fala quando eu acabar."; "Coma a
sopa e não se ria!"; "Hoje são 30? Amanhã têm de ser 31 nem que tenham de
reproduzir-se durante a noite"; "Cante. Cante o que mais lhe agradar".
"Hércules" foi o nome com que foi baptizado Ricardo, 17 anos, caloiro de
Engenharia Agrária. Enrolado em papel branco, "à antiga Roma", diz que do
que está "a gostar mais é do respeito entre caloiros e veteranos". "Apesar
de eles estarem sempre a implicar connosco, tratam-nos por você. Se
queremos ir à casa de banho, pedimos e eles deixam. Não colocam
restrições. Se quisermos falar, também podemos. Levam-nos à estação [dos
comboios] se for preciso, e se for preciso ficamos a dormir na casa
deles... Estão sempre dispostos a ajudar."
Há quem acredite que só com as praxes, mesmo que "um bocadinho duras", se
fazem amigos verdadeiros. "Gostei muito do dia de hoje, viveu-se um
ambiente muito acolhedor", relata uma jovem de cara azul.
Mas há igualmente caloiros a quem os olhos brilham de uma maneira
especial, um misto de humilhação e desagrado. "Divertido, isto? Só se for
para eles" - comenta uma caloira prestes a desabar, depois de ter sido
vendida a um veterano num barulhento leilão que acontece num café perto da
escola. "Não tenho que me queixar...", acrescenta. Já se ouvem outros
lances: "Agora este animal, com cara de cavalo, quem dá um cêntimo?"
"Podem brincar à vontade"
Henrique Soares Cruz, ex-presidente do Conselho Directivo, mas ainda a
colaborar na direcção até ao final do mandato, não está preocupado. "Podem
brincar à vontade dentro da tradição secular desta casa. Há mais de cem
anos que aqui se fazem praxes. Este ano não se fizeram nem mais nem menos
avisos aos alunos. Fazer algum aviso especial era deixar-me convencer de
que no ano passado tinha havido alguma anomalia e não houve."
E remata: "A única anomalia que pode ter havido no ano passado - e é
possível que todos os anos haja - é que alguém tenha saído fora dos
limites. Mas então que se queixem imediatamente para a gente estancar a
hemorragia antes que ela alastre muito."
No dia em que o PÚBLICO visita a escola, chove muito. Não há actividades
na rua, nem na vacaria. As horas passam entre cantorias, discursos,
caloiros para cá e para lá, sempre em grupo, nas instalações da associação
de estudantes ou na cantina ou, ao fim do dia, num café. "Quem está de
fora não consegue atingir o que é o espírito da família charrua" - o
símbolo da escola, explica Nuno Coelho, 30 anos, presidente da associação
de estudantes.
Mas também há quem ache que a tradição se está a perder. "Acho que nestas
novas comissões de praxes escolhem os que querem castigar e normalmente
são sempre os mais inibidos. No meu tempo toda a gente levava, por isso
ninguém se importava", conta uma aluna do 5º ano.
Mas certo é que entre os caloiros a ideia de que as praxes são importantes
parece ter vingado. "O que gostei mais foi fazer os bonecos com bosta de
vaca", diz Rodrigo, 18 anos. "Isto é uma maneira de conhecer melhor as
pessoas."
"Quem não quer ser praxado, não é", esclarece Rodrigo Castelo, 23 anos, um
elemento activo nas praxes. "Só não pode é depois trajar e não fica a
conhecer tão bem os colegas." Quando vê algum caloiro mais fragilizado com
os gritos e as ordens dos veteranos, vai ter com ele. "Explico-lhes que
não vale a pena irem-se abaixo e que todos nós já passámos por isto." |