Público - 16 Out 03

Olha por Mim
Por PEDRO STRECHT

Recentemente, decorreu em Lisboa uma conferência europeia sobre desaparecimento e exploração sexual de crianças, numa iniciativa do Instituto de Apoio à Criança (IAC) e sob o alto patrocínio do Presidente da República. Desde há muitos anos que o IAC, através da direcção de Manuela Eanes, desenvolve um trabalho ímpar nesta área, fazendo um constante apelo à participação da sociedade civil, para que todos, de forma firme e coerente, possamos dar um contributo para a melhor protecção e punição deste crimes tão horríveis.

É dentro desse contexto que importa pensar o que está ao alcance de todos nós, isto é, o que os pais e as famílias podem fazer para não serem melindrados com este tipo de pesadelo, que para sempre marca tão tragicamente as histórias de vida de tantas raparigas e rapazes. Porque, de facto, quando acontece um episódio de desaparecimento e abuso sexual, falamos sempre de "assassinatos de alma", expressão muito utilizada pela pedopsiquiatra Teresa Ferreira, algo que fere e marca para sempre a ideia de si próprio e do mundo que o rodeia, e que se arrisca a ser perpetuado no tempo através das cortinas de silêncio que os envolvem.

Por isso, dentro do domínio da prevenção, importa reforçar o papel dos pais como adultos de referência e elementos de protecção, tanto mais quanto sabemos que as situações de abuso acontecem muitas vezes debaixo do tecto onde a criança habita. Falemos, portanto, de quatro pontos fundamentais, cujo denominador comum é a consistência dos modelos de relação familiares:

- A importância do afecto e das identificações feminina e masculina das crianças com a mãe e o pai (ou com quem desempenha esse papel), em que a criança se sinta amada.

- A existência de regras e limites, que confiram uma verdadeira protecção física e emocional aos mais novos.

- Um bom nível de compreensão e comunicação entre pais e filhos, em que se saiba ouvir e valorizar não só a linguagem verbal na sua expressão manifesta e latente, mas também todas as outras formas de comunicação não verbal, que tantos pais sabem tão bem intuir quanto melhor conhecem os seus filhos.

- A diminuição ou o controlo de estímulos, sociais e culturais, que hoje em dia reforçam a intensidade das mensagens de uma sexualidade agressiva, intrusiva e descentrada dos afectos.

Em relação ao primeiro ponto, sabe-se que uma criança bem vinculada aos pais, isto é, bem referenciada do ponto de vista afectivo, é uma criança muito mais segura, tranquila, que explora o mundo de uma forma adequada e que não estabelece padrões de relação com os outros de formas extremas, como acontece naqueles que, por falta ou carência de afecto, se entregam muito mais facilmente à sedução de um qualquer adulto. Uma criança segura da sua mãe e do seu pai não cede facilmente a jogos de aproximação perversa de outros, ou, se tal acontece, facilmente se referenciará ao familiar, buscando aí segurança e protecção. Se assim for, as meninas estarão bem identificadas a padrões femininos e moldarão a sua expectativa face à presença de elementos do sexo oposto, a partir da apreensão positiva das qualidades do pai. Quanto aos rapazes, estarão igualmente tranquilos na sua identidade masculina e, por isso mesmo, não se deixarão seduzir por falsos investimentos de amor, como acontece na relação de abuso.

A existência de regras e limites, desde cedo transmitidas de forma simples mas coesa, protegerão a criança, ajudando-a a organizar-se num progressivo sentido de contenção física e emocional. Uma criança bem contida, e o termo "contido" bem pode ser ligado à expressão inglesa de "holding", de envolvimento, como uma mãe ou um pai que pega e embala o seu bebé, consolando-o, é sempre uma criança que não arrisca para além de determinado limite, pondo-se excessivamente em risco.

Quando tudo corre bem, vemos como para os mais pequenos é ainda exigida a constante presença física dos adultos de referência, mas, à medida que o tempo passa e a criança e o adolescente cresce, a autonomia emocional estabelece-se e funciona mesmo na distância física de um pai ou de uma mãe. Por exemplo, é isso que torna possível que, a partir de determinada idade, os pais deixem os filhos andarem sozinhos na rua, quanto mais não seja para fazerem os seus trajectos rotineiros.

Quando se fala de um bom nível de compreensão e comunicação entre adultos e crianças, pensa-se na necessidade de se valorizar, tomando a sério o seu mundo interior. Prevenir é isso: estar atento, saber ler sinais nos que mais gostamos, quer eles sejam tornados evidentes através da comunicação verbal, quer através de todos os outros tipos de "linguagem" em que os mais novos são exímios, desde o olhar, ao tipo de contacto ou seu evitamento, a alterações das funções de regulação como o sono e a alimentação. E, depois, saber responder adequadamente, que também quer dizer valorizar, não esquecer, não denegrir ou omitir. O "faz de conta que não se passa nada" dos adultos pode, em muitos casos, ser lido pela criança e pelo adolescente como nova forma de abuso, uma espécie de silêncio dos inocentes.

O último ponto em destaque relembra-nos a necessidade de a sociedade se organizar cada vez mais e melhor para diminuir as múltiplas e desnecessárias estimulações sexuais, tanto mais negativas quanto, ao serem veiculadas pelos "media", videojogos, etc., o fazem de uma forma desintegrada dos afectos, como se sexo fosse algo que apenas se passasse num plano físico (e, mesmo aí, nunca o é apenas no plano genital), sem qualquer representação mental, emocional. O abuso sexual representa essencialmente isto: uma relação de intrusão, que usa a criança como parte de objecto, sem que o adulto tenha dela qualquer representação afectiva; aliás, bastava que dela gostasse verdadeiramente para que nunca a abusasse.

Sendo assim, prevenir o desaparecimento e a exploração sexual de crianças é também aumentar a confiança na relação entre pais e filhos, com um bom balanço entre autonomia e dependência emocional, desenvolvendo a organização narcísica das crianças e dos adolescentes na adequação e resolução das vivências e dos conflitos emocionais de cada fase do desenvolvimento.

Mas só isso não chega. Prevenir é, por último, ter adultos, famílias, escolas, comunidades, países, que definitivamente queiram e desejem o melhor para os seus mais novos e que saibam que hoje é sempre o dia em que, pelo seu exemplo, deixarão para o futuro as marcas daquilo em que acreditam, de tudo quanto fazem, da forma como os amam e protegem. Mas disso ainda parecemos estar longe.

WB00789_1.gif (161 bytes)