Correio da AESE - 373, 15/09/2003

 

Debate sobre escola única em França
A escola francesa abre-se à diferença

Em França, nos últimos meses, vem sendo divul­gado um conjunto de notícias que indicam uma maior atenção à diferença por parte de um sistema educativo fortemente centralizado. Prova disso é a desafectação dos professores, pela escola única, no ensino secundário; o desejo de renovação peda­gógica do ensino privado, para se adaptar às neces­sidades dos diferentes alunos; e, a crescente cons­ciência de que o ensino misto, longe de conseguir os seus objectivos, está a ser origem de muitas dificuldades nas relações entre rapazes e raparigas.

Em Novembro de 2002, uma sondagem de opinião organizada pela FUS, a principal Federação sindical na área do ensino, e realizada com a ajuda do conhecido Instituto Demoscópico Sofres, fazia soar as campaínhas de alarme. Professores, pais e alunos pensavam que a escola estava a cumprir as suas missões essenciais em matéria de leitura, escrita, cálculo e acesso à cultura geral. Mas consideravam que fracassava claramente na preparação para a vida profissional e para a redução das desigualdades sociais: na opinião de 75% dos docentes, contribuía para as corrigir um pouco, mas sem modificar o essencial.

Um dado muito significativo é que 66% dos professores consideravam que o collége único, que ministra o mesmo ensino a todos os alunos entre os 11 e os 15 anos, é inviável na prática, devido à diferente formação e interesse dos alunos. Impunha­-se uma conclusão totalmente inesperada: a conve­niência de ser abandonado o princípio igualitário da escola única.

Um mito na «escola republicana»

Os sindicatos continuam a batalhar para que o Estado dedique mais recursos económicos ao ensino. Mas não estão fechados à possível reforma do sistema. Deste modo, o Ministério de Luc Ferry poderia introduzir retoques e estabelecer diferenças de orientação escolar a partir dos 13 anos, sem que se transforme num asus belli, como sucedeu em Espanha perante a lei da qualidade do ensino. Ao fim e ao cabo, a escola única foi introduzida em França em 1975 pela direita, e tem vindo a ser defendida, tradicionalmente, pela esquerda e pelos sindicatos. Até agora.

A verdade é que, para muitos, a unificação se tinha convertido numa de tantas ficções republicanas: escrita nos textos, a igualdade era negada na prática diária pela existência de diferenças de nível social e, sobretudo, pelo aumento crescente de diferenças de alguns centros escolares relativamente a outros, especialmente os situados em zonas de educação prioritária ou sensíveis. Em classes heterogéneas de até trinta alunos, é praticamente impossível desen­volver um trabalho didáctico que seja aproveitado por todos. Nalguns estabelecimentos escolares, as aulas são ingovernáveis quando, à diversidade de interesses e aptidões, se acrescenta a desorientação dos adoles­centes, a crescente agressividade e os compor­tamentos inadaptados. A promoção automática a cursos superiores de modo algum faz esquecer o grande fracasso escolar.

Nessa linha trabalha Luc Ferry: em vez de rejeitar o debate sobre a sobrevivência da escola única, prefere conceder competências às autoridades académicas de cada centro para que decidam, em função da situação concreta, a possibilidade de implantar essas novas orientações para a descoberta de ofícios e a preparação para a vida profissional.

Serão precisos, sem dúvida, mais meios económicos e recursos humanos para dividir as grandes classes em tantos pequenos grupos homo­géneos quantos os necessários, assim como instituir verdadeiramente a tutoria, o diálogo pessoal entre professor e aluno. Talvez assim se consiga também revalorizar socialmente a formação profissional, opção adequada para muitos em função de qualidades e gostos, e não, como tantas vezes, porque não resta outro remédio.

Renovação pedagógica no sector privado

Assim o entende também o ensino não estatal, ao qual a revista Le Monde de l'Éducation (Dezembro 2002) dedicou um dossier intitulado "O novo credo da escola privada". Este sector escolariza 19% dos alunos em França, embora se costume dizer que, um em cada dois, passou algum tempo em centros escolares, pelo zapping escolar, devido a transferências ou tentativas de ultrapassar dificuldades concretas. Muitas vezes, são identificados com
centros católicos, pois, de facto, 95% das escolas privadas correspondem a essa identificação confes­sional.

Este sector da educação caracteriza-se hoje pela existência de um grande impulso de renovação pedagógica, juntamente com a reafirmação da sua própria identidade. Na França laica de 2003, a escola católica é pacificamente aceite e plenamente integrada no serviço público da educação nacional, através dos contratos de associação, que estão há muitos anos em vigor, desde a lei Debré de 1959, e ainda dos acordos de 1992, que foram estabelecidos entre Jack Lang e o ensino católico. Os seus líderes decidiram fazer uma aposta na inovação, pois estão conscientes de que existe muita coisa para ser modifi­cada e adaptada, e isso não só nos planos da educação cívica ou da formação de valores como, igualmente, nos horários, nas jornadas, na distribuição de programas e matérias e, ainda, na abordagem multidisciplinar:

Como recorda a revista Le Monde de l'Éducation, as escolas católicas marcaram historica­mente o progresso educativo que se tem processado em França: neste plano menciona, sem quaisquer pretensões de ser exaustivo, a Companhia de Jesus, Os Irmãos das Escolas Cristãs, que foram fundados por Jean-Baptiste La Salle (1651-1719) ou, nos tempos mais recentes, os Salesianos de São João Bosco.

No entanto, haverá que convencer os pais, pois a inovação não se situa entre as prioridades que eles têm vindo a procurar na escola privada. Pensam mais na competência dos professores e na exigência e controlo dos alunos, de modo a poder assegurar o sucesso escolar dos seus filhos. A própria motivação religiosa é minoritária. Mas, como foi manifestado por Eric Raffin, Presidente da União Nacional de Associações de Pais, além de procurar atender aos objectivos educativos gerais que a família pretende, a escola deve ainda centrar-se mais na sua especificidade, na inspiração religiosa do seu projecto de educação: «O que seria o ensino católico se não fosse católico? Não pretende ser exclusivamente privado».­

Fonte: Correio da AESE - 373, 15/09/2003

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