Jornal de Notícias - 18 Out 03

Até à eternidade
NUNO ROGEIRO, COMENTADOR POLÍTICO

Em 1968, o romance do católico australiano Morris West, "As sandálias do pescador", sobre um papa que vinha de lá da Cortina de Ferro, para trazer a inquietude aos espíritos adormecidos, parecia uma obra de ficção especulativa, a milhas de qualquer realidade plausível.

Quinze anos depois, lembro-me de ter despertado numa Lisboa transitada da revolução, desiludida, em crise social, económica e política, com a notícia que emocionou o Mundo: o novo pontífice, que sucedera a João Paulo I, depois do choque traumático da sua morte extemporânea, era o cardeal Karol Wojtyla, bispo de Cracóvia, um Kiril Lakota de carne e osso, que sofria com a sua pátria e sofria com o rumo da história, mergulhados que estávamos nas promessas de retribuição nuclear da Guerra Fria.

Desde o início que se percebeu estarmos perante um assunto extraordinário. Face ao colapso moral de muitas instituições, João Paulo II surgia como uma espécie de farol de coragem tranquila, de humildade e respeito. Nesse sentido, passou a ser um chefe de legiões desesperadas e desencontradas, e por isso se diz que exerceu um mandato "político". Mas há que ver mais longe, ou mais perto.

Um amigo por ele recebido em Roma, que me dissera ter já visto à frente, por algumas vezes, a corporização pessoal do mal absoluto, confessou-me emocionado que, perante o bispo Wojtyla, foi invadido por uma força avassaladora de bem-aventurança, paz, revelação e luz amiga. Não foi então capaz de dizer uma palavra, e limitou-se a beijar a mão papal, com lágrimas irreprimidas e a noção de que a sua vida mudara.

Em 1980, perante a declaração da Lei Marcial em Varsóvia, João Paulo II disse em poucas palavras algo que transformou o mundo: "Não tenhais medo".

Em Portugal, testemunhei essa força, jovem repórter cobrindo a visita que marcava a época: quando falou a uma multidão que cantava, em frente da Universidade Católica, o "Madona, cjerna Madona" (em homenagem à Virgem negra de Chestokowa), Wojtyla observou simplesmente, numa versão excelente da nossa língua: "Pareceis verdadeiros poloneses!". No Bom Jesus do Monte, em Braga, por entre as brumas e o frio, outra vez a sensação de uma presença sobrenatural protectora, feita de amor e compreensão: "Não julgues, e Deus não julgará", balbuciava-me ao lado um peregrino irlandês.

Depois do primeiro atentado, que pode ou não ter estado ligado a outros magnicídios da Guerra Fria (a falecida Claire Sterling jurava que sim), a imagem poderosa é a da entrevista com Ali Agca, numa cela despida, misto de confessionário e local aberto de perdão.

Na primeira visita de Gorbachev e da sua importante delegação (outras vez "As sandálias do pescador"), não se perguntou quantas divisões tinha o Papa, mas percebeu-se que havia uma marcha para o mundo que iria exterminar o muro e libertar os povos, coisa que hoje damos como banal, comezinha e adquirida. Por isso, está também a Europa no coração de João Paulo II, que é seu filho e seu arauto, mas de forma a abri-la ao mundo e a abrir o mundo a ela, como observou também sobre Cuba.

No conflito dos Balcãs, pediu que, com a força que protege, se salvasse Sarajevo, a cidade mártir do Islão tolerante, encravada no Ocidente. No Médio Oriente, rezou pela paz e pela reconciliação. No Iraque, pregou pelo mesmo. Para além de todos os outros legados e comentários, a paz é assim o rosto deste Papa, e com essa cara ficará entre nós para sempre.

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