Público - 5 Out 03
Bom Vento e Bom Casamento
Por ANTÓNIO BARRETO
Algures no Algarve, na famosa estrada 125 (a dos acidentes), a escassos
mil metros de Almansil, encontra-se um supermercado de aparência banal.
Mais um. Chama-se "Apolónia", não pela Santa, mas pelo proprietário,
algarvio de lei, ao que suponho. A aproximação do estacionamento reserva
surpresas: tudo está sinalizado, a limpeza é total e o espaço abundante. A
entrada é ampla e há, em profusão, carrinhos de vários tamanhos. O armazém
é motivo de admiração: espaçoso, bem arejado e iluminado. Os géneros e os
produtos estão bem exibidos e logicamente arrumados. A variedade é a
regra. De tudo há um sem número de modelos, dimensões, quantidades, marcas
e preços. Os produtos alimentares mais sofisticados e os mais banais, os
mais conhecidos e populares e os mais estranhos e folclóricos. A grande
distribuição convive com o cuidado artesanal. Peixe fresco, defumado e
congelado; todas as carnes e charcutarias da Europa; dos melhores vinhos
do mundo, a começar pelos portugueses; todos os queijos da Europa; a fruta
imaginável, saladas, hortaliça, dezenas de variedades de cogumelos, tudo
devidamente limpo, lavado, embalado e etiquetado; os melhores cafés e chás
do mercado, pasta, sobremesas, pão fresco, bolos, "tartes", iguais aos
melhores que se fazem em França, na Itália, na Alemanha ou em Inglaterra.
Tanto tem a "ricotta" e o "mascarpone", como beldroegas e azedas, sem
esquecer o "foie gras", o "sushi" e três espécies de "rucola". Finalmente,
o atendimento de primeira qualidade, profissional, prestável e com o
devido ar algarvio, reciclado pela eficiência. Verdade é que conheço gente
de Lisboa que faz de propósito a viagem do Apolónia, a fim de se
abastecer.
Mais perto de mim, em campeonato diferente, também capaz de me
impressionar, está o Corte Inglês, espanhol apesar do nome, português de
fresca data. Já lá fui umas dezenas de vezes. Durante os primeiros tempos,
estava às moscas. Os lisboetas torciam o nariz, não frequentavam e
inventavam explicações várias (moda, preço, barulho, tamanho, etc.). No
fundo, creio que tinham vergonha e inveja. Depois do Verão, voltei lá. Não
sei se graças à persistência dos espanhóis e à cupidez dos clientes, ou se
em consequência da abertura dos cinemas (catorze salas confortáveis e
espaçosas), a verdade é que dei com os armazéns cheios de clientes e
mirones. Quando fui solicitar um cartão de cliente, foram-me pedidos dois
dados (BI e NIB), que dei de boca, sem mais exigências. A operação demorou
quatro minutos. Uma semana depois, tinha o cartão em casa. Nada parecido
com as empresas portuguesas que pedem, pelo menos, meia dúzia de
documentos, incluindo cartas da EDP, extractos bancários, cartões de
contribuinte e de identidade, etc. Surpreendido, perguntei se não
precisavam de mais nada. Disseram-me, simplesmente, "Confiamos no
cliente!". Em casa tenho, se pedir, as compras que faço. E que, aliás,
posso trocar com facilidade. Se procuro sapatos 46 e casacos XL, ou têm,
ou os encontram em poucos dias. Têm prazer em procurar o que lhes falta,
seja um vinho estranho, sejam chocolates "orangettes", os melhores entre
os bons. Ou camisas de mangas mais compridas do que as normais. Parecem
prevenidos para tudo, sejam os cosmopolitas europeus, sejam os habitantes
do Portugal dos Pequenitos. E sobretudo, as pessoas que nos atendem são
profissionais competentes e cordiais.
O Apolónia e o Corte Inglês são excelentes exemplos dos benefícios
sociais, económicos e culturais que o comércio aberto e livre pode trazer
às sociedades. Tal como, em seu tempo e noutra escala, a EFTA e a CEE.
Para já não falar do turismo, da emigração, do investimento estrangeiro e
da televisão. Sobretudo num país como o nosso, onde as fontes internas de
mudança social estão esgotadas. O país está exausto. As suas elites
desinteressadas. Os seus trabalhadores temerosos. E os seus consumidores
resignados. Quase tudo o que depende do interior, tal como a educação, a
saúde pública, a justiça, a Administração, a organização do Estado, o
notariado, o trânsito rodoviário, as licenças camarárias, o fisco, a luta
contra a corrupção e a limpeza das ruas nas cidades, quase tudo, dizia,
parece estagnado, atrasado e lento na melhoria. O que, pelo contrário,
depende do exterior ou tem de enfrentar a emulação externa, ou morre, o
que é um alívio, ou melhora.
O Apolónia e o Corte Inglês são do melhor que há em Portugal. Para ambos,
o factor externo foi decisivo. Ambos se revelaram muito acima da média
nacional no atendimento, na limpeza, na prontidão, no profissionalismo, na
amabilidade, na variedade e no respeito pelos direitos do consumidor. Em
ambos os casos estamos tão longe daquelas caras mal dispostas de quem nos
atende em centenas de "boutiques" manhosas dos centros comerciais e de
mercearias ditas de bairro onde tudo falta e onde cheira a tudo! Que seja
porque os empregados são mal pagos e mal educados; porque os patrões são
burgessos e gananciosos; ou porque ninguém, vendedores e compradores, se
importa com o que quer que seja, a verdade é que grande parte do comércio
português está condenado ao inferno... por sua própria culpa!
O Apolónia resultou da procura externa, por parte dos turistas
(aristocratas ou "hooligans" tatuados) e dos restaurantes e hotéis
exigentes. Um senhor, algarvio, percebeu que não podia contentar-se com a
mercearia rasca e o sorriso nativo, precisava de ter do melhor, a tempo e
horas, fresco e bem embalado, com o calor do Sul e o profissionalismo do
Norte. Organizou-se para satisfazer a procura. Sem concessões e com
imaginação. Ganhou. Da sua vitória, aproveitamos todos. No caso do Corte
Inglês, assistimos a algo de diferente. É a oferta externa, de qualidade,
variada, rigorosa, de bom gosto, sem aldrabices, que vem directamente
influenciar o consumo e a procura. Mais: que vem alterar os hábitos e
educar o gosto das classes médias indígenas. Estas, a princípio, reagiram
mal, isto é, tiveram medo. Mas, gradualmente, em menos de dois anos,
aventuraram-se: correm hoje àquele armazém como se fosse o lugar da fruta
da esquina. A prazo, toda a sociedade receberá benefícios. Pena é que, na
Administração Pública, nas Universidades, nos Hospitais, nos Museus, nos
Tribunais e nas Escolas, não haja também um Apolónia e um Corte Inglês!
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