Diário de Notícias - 27 Out 03
Atrocidades
João César das
Neves
In DN – 27.
10. 2003
Apesar do
delírio generalizado
que o
País vive,
ainda surgem
problemas
importantes. A
questão do
aborto,
por
exemplo, parece
querer
voltar à
nossa
cena
política. Ao fazê-lo,
porém, renova-se
um
velho
paradoxo de
difícil
solução.
Surpreendentemente,
poucos parecem
notar as
enormes
semelhantes
entre o
discurso a
favor da despenalização do
aborto e
aquele
que foi usado ao
longo da
História
para
justificar outras
atrocidades
horríveis.
O
ponto de
partida é a
negação da
humanidade. Os abortistas afirmam,
explícita
ou,
em
geral, implicitamente
que o
embrião
não tem
dignidade
humana. Se tivesse, obviamente
que
toda a
sua
argumentação cairia
pela
base,
pois
nenhum
interesse tem
prioridade
perante o
direito à
vida.
Ora as
piores abominações da
História nasceram
precisamente da
mesma recusa do
estatuto
humano. Os nazis apregoavam
que
judeus,
ciganos,
deficientes e
tantos
outros,
não pertenciam à
espécie
humana,
mas a uma
raça
inferior,
por
isso
descartável. Os esclavagistas baseavam o
seu
comércio
infame na
certeza da
menor
humanidade daqueles
que compravam e vendiam.
Todos os
genocídios,
limpezas étnicas,
chacinas e
barbaridades partem deste
horrível
axioma.
A
segunda ideia é
que essa
morte é
útil à
sociedade. Os abortistas dizem
defender
apenas a
liberdade e a
dignidade da
mulher.
Também os nazis pretendiam
corrigir a
injustiça da
Grande
Guerra,
promover a
pureza da
raça alemã e o
seu
espaço
vital. Os esclavagistas viam-se
como
peças
essenciais da prosperidade e
civilização. Ben Laden considera-se
um
defensor da
fé. A
generalidade dos
criminosos de
guerra justificam-se
em
termos
semelhantes.
Mas, e
este é o
terceiro
ponto,
aqueles
que essas
práticas alegam
defender acabam sendo as
suas
principais
vítimas.
Não restam
dúvidas
que as
mulheres
que abortam
são
quem
mais sofre
com esta
aparente
solução dos
seus
problemas. Sofrem
com a
violência,
com o
vazio,
com o
remorso.
Também a Alemanha foi a
maior
mártir das
loucuras nazis e
aqueles
que ao
longo dos
séculos aderiram à
escravatura, perseguições e
chacinas viveram
para
ver a
falsidade da
solução
criada
pela
sua
própria
crueldade.
Assim, estamos
hoje a
assistir na
nossa
sociedade
livre e sofisticada ao
regresso de
retóricas e
argumentos
que julgávamos enterrados. E o
aborto
não é o
único
caso. As
campanhas antiglobalização
por
exemplo, seguem de
perto a
lógica da
antiga «caça
às
bruxas»,
quando
pessoas específicas
são acusadas de
males
genéricos e abstractos
com
base
em
teorias
deficientes. O
elemento
mais
surpreendente,
porém, é o de
entender
como é
possível
que
pessoas sérias e honestas caiam nesta
armadilha.
Porque é
evidente
que a esmagadora
maioria dos
defensores da despenalização do
aborto
são
cidadãos
normais, correctos e
bem intencionados,
que pretendem
apenas o
bem
comum.
Eles ficariam
decerto
muito ofendidos e magoados ao verem-se
comparados
com
bárbaros e nazis.
É
esse
precisamente o
paradoxo,
hoje
como
antes.
Também ao
longo dos
séculos
milhões de
cidadãos
cordatos,
prudentes e
respeitáveis tiveram
escravos, apoiaram o
racismo
ou defenderam
genocídios. Foram
miríades os
alemães
inteligentes,
pacatos e
atenciosos
que votaram e apoiaram Adolf Hitler. Temos
dificuldade
hoje
em
entender
isto.
Também daqui a
décadas haverá
muita
gente
que
não compreenderá
como é
que foi
possível
que
pessoas boas e cordatas pudessem
hoje
aceitar o
aborto.
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