Seria grave que o Estado violasse o dever de
proteger a família como elemento natural e
fundamental da sociedade
O artigo 16.º da Declaração Universal dos Direitos
do Homem consagra que o homem e a mulher têm o
direito de casar e constituir família e acrescenta
que "a família é o elemento natural e fundamental da
sociedade e tem direito à protecção desta e do
Estado". Sendo de Direito Natural, não era preciso
que o afirmasse. O preceito traduz a realidade
quantas vezes dita, ouvida, proclamada, repetida, no
elenco dos direitos humanos fundamentais: a família
é a célula-base da sociedade. Mas, positivistas que
andamos, é melhor tê-lo claramente consagrado na
Declaração Universal, cujos sessenta anos celebrámos
com entusiasmo há um ano e para cujo valor jurídico
interno a nossa Constituição também remete
expressamente.
O primeiro-ministro, com o país e os portugueses
assolados por tantos problemas e dificuldades,
decidiu anunciar que quer promover legislação para
instituir "o casamento civil entre pessoas do mesmo
sexo". E tem a acompanhá-lo na aventura, que os
promotores dessa agenda designaram de "fracturante",
a movimentação do BE e do PEV, que já apresentaram
projectos de lei de alteração do Código Civil com
aquele alcance.
Aqui chegados, uma das questões que se põem é a de
saber se o quadro político actual tem legitimidade
de decisão política para operar uma transformação
com aquela dimensão, sem primeiro consultar o povo
em referendo. Não tem.
Executar uma transformação tão radical na célula
estruturante da sociedade, sem ao menos ouvir a
sociedade e esta se pronunciar claramente,
constituiria uma violência legislativa. E violência
tanto mais brutal quanto mais se pretendesse, como
alguns parecem, passar apressadamente pelo assunto
como cão por vinha vindimada.
Seria grave que o Estado violasse o dever de
proteger a família como elemento natural e
fundamental da sociedade. Pior ainda, se negasse e
impedisse a sociedade de o poder fazer.
A Assembleia da República tem legitimidade formal -
não o questiono. Tem-na sempre sobre qualquer
matéria que se enquadre nas suas competências; e
tem-na até exclusivamente, mesmo com referendo, pois
o referendo não é instrumento do poder legislativo.
A legitimidade de que falo é de legitimidade
material, substantiva, uma legitimidade democrática
genuína. E essas, quanto a este tema, não moram nem
no Governo, nem no actual quadro parlamentar, se não
houver, ao menos, um referendo prévio que suportasse
directa e claramente aquele propósito.
Na resposta à questão contemporânea das uniões
homossexuais, há diferentes modelos. O modelo
radical e extremista é o de, sob vendaval
ideológico, capturar a própria noção e palavra
"casamento", alterando por completo o conceito e a
estrutura longamente estabelecidos da família. Muito
poucos países foram por aí. E, quando aqui se chega,
o referendo é sempre exigível, como tem acontecido
em muitos Estados.
Não é legítimo mexer na célula fundamental da
sociedade, na sua noção matricial - e, portanto
também, na sua natureza, conteúdo e identidade -,
sem ao menos perguntar o que pensa a sociedade e se
o quer. Dificilmente, aliás, haverá matéria mais
típica de referendo: porque se trata justamente de
uma questão de sociedade; e, sendo a família
anterior ao Estado, o Estado não pode, não deve,
mexer na sua identidade sem ouvir directamente a
sociedade.
Acresce que não é verdade que os portugueses
tivessem expressado nas últimas eleições a sua
vontade na questão. Além de esta ter estado
praticamente ausente da campanha, não há tão-pouco
maioria de representação de partidos que tivessem
assumido programaticamente o tema. De todos, apenas
o BE incluiu o propósito legislativo claro de
revolucionar o conceito de casamento de forma a
incluir as uniões homossexuais e fazendo-o com os
efeitos inerentes, nomeadamente quanto à adopção. O
PS incluiu o tema do casamento, mas não o da adopção
- o que cria um outro problema, mais grave. E o PCP
ou a CDU nada disseram especificamente.
Mas o problema quanto ao PS, que quer liderar, é
maior. No plano constitucional, por força da norma
de não discriminação em razão da orientação sexual,
é cristalino que a modificação da noção de casamento
arrastaria necessariamente como consequência
jurídica imediata a questão da adopção, bem como
todas as matérias (e são inúmeras) que estão
referidas ao casamento.
Hoje, não existe qualquer inconstitucionalidade,
como o Tribunal Constitucional já declarou, uma vez
que o casamento é - sempre foi - uma união de homem
e mulher. Não há desigualdade, mas especificidade.
Mas, se, em engenharia jurídica estratégica, fosse
mudada a noção de casamento para corresponder a uma
outra coisa, tornar-se-ia gritantemente
inconstitucional, quanto à adopção ou qualquer outra
matéria, discriminar o estatuto jurídico dos novos
"casados" porque uns "casados" fossem de uma
orientação sexual e outros doutra.
E, por isso, o primeiro-ministro, ao ter reconhecido
expressamente no Parlamento que não possui qualquer
mandato quanto à adopção por uniões homossexuais,
está a reconhecer implicitamente que também não tem
mandato real, legítimo, quanto ao casamento - uma
vez que este arrasta inexoravelmente aquela.
Seria grave para uma maioria parlamentar ad hoc - e
bem pior para um Governo digno e responsável -
avançar de forma obscura e furtiva, sobretudo em
matéria de tanta sensibilidade e tão vastas
implicações, ao modo de "adopção escondida com
casamento de fora". E também por isto, a questão não
pode deixar de ser colocada, directamente, sem
ambiguidades, nem reservas mentais, à cidadania,
para que discuta abertamente e decida o que entende,
o que pensa, o que quer. Deputado do CDS-PP