Números do desemprego, inquietações sobre o país
que estamos a construir
José Manuel Fernandes
Sócrates não devia ter celebrado a "criação" de 106
mil postos de trabalho. É que, para além de
precários, para além de escassos, são empregos que
contrariam o sonho do "choque tecnológico"
Sócrates foi mal aconselhado quando lhe sugeriram
que podia aproveitar os mais recentes números do
desemprego para, na sexta-feira passada, ter o seu
"momento Chávez", como os baptizou José Pacheco
Pereira.
O que disse o primeiro-ministro? Que a economia
portuguesa tinha criado 106 mil postos de trabalho
desde que tomou posse. Ou seja, a sua promessa de
chegar aos 150 mil novos postos de trabalho estava à
beira de ser alcançada.
Tanto sucesso fez desconfiar. O senso comum, a vida
de cada dia, choca com o quadro de radioso sucesso
que se traça em São Bento. E o "estado de graça" já
passou. Daí que a imprensa, cumprindo a sua missão,
tenha tratado de averiguar o que se passava (papel
ainda mais importante quando a oposição política é,
tanto à esquerda como à direita, a desgraça que se
conhece). O "milagre" da multiplicação dos empregos
encontrou depressa o seu reverso. Bastou passar dos
números em bruto para o detalhe.
Logo no sábado o PÚBLICO noticiava que se era
verdade que havia 106 mil novos postos de trabalho,
isso sucedia porque se tinham criado 141 mil
empregos precários. Os empregos com contrato sem
termo haviam diminuído (menos 22 mil) e havia menos
19 mil trabalhadores por conta própria. Mais: os
números do INE indiciavam que a taxa de desemprego
média apontada para 2007, 7,8 por cento, reafirmada
pelo Governo aquando da apresentação do Orçamento
para 2008, muito dificilmente seria atingida.
O leitor comum estará contudo a interrogar-se como
foi possível ter criado postos de trabalho se, ao
mesmo tempo, a taxa de desemprego subiu. A resposta
é simples: a população activa cresceu mais depressa
do que o emprego. Há hoje mais portugueses (ou mais
portugueses e mais imigrantes) a querer trabalhar do
que havia quando José Sócrates tomou posse. Em parte
isso resulta da demografia (há ainda mais jovens a
chegar ao mercado de trabalho do que idosos a
reformar-se, em parte porque é hoje mais difícil
alguém reformar-se) e em parte resulta de outro
aumento: o do trabalho a tempo parcial. Entre o 3.º
trimestre de 2006 e o 3.º trimestre de 2007 o número
de trabalhadores a tempo inteiro diminuiu de 40 mil,
enquanto o número dos que estão a part-time subiu 53
mil.
Haver mais trabalhadores a prazo e ter aumentado o
número de trabalhadores a tempo parcial nem seriam
más notícias se correspondessem a respostas do
mercado às distorções derivadas de uma lei laboral
demasiado rígida. O pior é que, lendo o Diário
Económico de ontem, e olhando para os números, se
fica bem mais inquieto: os empregos criados são
pouco qualificados e são os jovens mais qualificados
que estão a engrossar o número dos desempregados.
Indo directo ao que dói mais: desde que Sócrates
tomou posse, Portugal perdeu 167 mil empregos
qualificados. Uma quebra de 12 por cento. Uma quebra
que parece contrariar o discurso sobre o "choque
tecnológico". E só escrevemos "parece" porque uma
parte desses empregos desaparecidos era de
licenciados que trabalhavam na administração
pública, muitos como professores. Estando a mais,
sendo redundantes, é bom que tenham desaparecido
empregos que pesavam sobre a economia. Só que isso é
apenas uma parcela, pequena, da realidade.
De acordo com os especialistas contactados pelo
Diário Económico, Portugal está a ter muita
dificuldade em criar empregos para quadros com
formação superior (e tanto dinheiro que se andou a
gastar na "paixão" da educação!), antes revelando
alguma propensão para criar empregos no sector da
hotelaria (vamos ser os criados de mesa da Europa?),
em serviços de vendas (de quê, se ninguém compra?) e
em call centers (uma especialidade da Índia, mas que
o nosso rudimentar inglês nem sequer favorece
muito).
Pior: em termos proporcionais, após dois anos de
Sócrates, temos mais vendedores, mais operários e
mais agricultores. É certo que alguns deles são
licenciados, mas ninguém os livrou de servirem numa
caixa de supermercado ou conduzirem um táxi. Sempre
é melhor do que o desemprego, pois a verdade é que
neste trimestre a percentagem de activos licenciados
e desempregados ultrapassou a percentagem de activos
desempregados.
Se a isto acrescentarmos que a taxa de desemprego
subiu muito entre os que têm menos de 35 anos e
desceu entre os que têm mais de 45 anos, é caso para
perguntar: que raio de futuro estamos nós a
construir? E que raio de país estamos a deixar aos
nossos filhos?
Enquanto não tiver boas respostas para estas
perguntas, Sócrates devia abster-se, por pudor, de
falar da criação de empregos.