Público - 20 Nov 07

Números do desemprego, inquietações sobre o país que estamos a construir
José Manuel Fernandes

Sócrates não devia ter celebrado a "criação" de 106 mil postos de trabalho. É que, para além de precários, para além de escassos, são empregos que contrariam o sonho do "choque tecnológico"

Sócrates foi mal aconselhado quando lhe sugeriram que podia aproveitar os mais recentes números do desemprego para, na sexta-feira passada, ter o seu "momento Chávez", como os baptizou José Pacheco Pereira.

O que disse o primeiro-ministro? Que a economia portuguesa tinha criado 106 mil postos de trabalho desde que tomou posse. Ou seja, a sua promessa de chegar aos 150 mil novos postos de trabalho estava à beira de ser alcançada.

Tanto sucesso fez desconfiar. O senso comum, a vida de cada dia, choca com o quadro de radioso sucesso que se traça em São Bento. E o "estado de graça" já passou. Daí que a imprensa, cumprindo a sua missão, tenha tratado de averiguar o que se passava (papel ainda mais importante quando a oposição política é, tanto à esquerda como à direita, a desgraça que se conhece). O "milagre" da multiplicação dos empregos encontrou depressa o seu reverso. Bastou passar dos números em bruto para o detalhe.

Logo no sábado o PÚBLICO noticiava que se era verdade que havia 106 mil novos postos de trabalho, isso sucedia porque se tinham criado 141 mil empregos precários. Os empregos com contrato sem termo haviam diminuído (menos 22 mil) e havia menos 19 mil trabalhadores por conta própria. Mais: os números do INE indiciavam que a taxa de desemprego média apontada para 2007, 7,8 por cento, reafirmada pelo Governo aquando da apresentação do Orçamento para 2008, muito dificilmente seria atingida.

O leitor comum estará contudo a interrogar-se como foi possível ter criado postos de trabalho se, ao mesmo tempo, a taxa de desemprego subiu. A resposta é simples: a população activa cresceu mais depressa do que o emprego. Há hoje mais portugueses (ou mais portugueses e mais imigrantes) a querer trabalhar do que havia quando José Sócrates tomou posse. Em parte isso resulta da demografia (há ainda mais jovens a chegar ao mercado de trabalho do que idosos a reformar-se, em parte porque é hoje mais difícil alguém reformar-se) e em parte resulta de outro aumento: o do trabalho a tempo parcial. Entre o 3.º trimestre de 2006 e o 3.º trimestre de 2007 o número de trabalhadores a tempo inteiro diminuiu de 40 mil, enquanto o número dos que estão a part-time subiu 53 mil.

Haver mais trabalhadores a prazo e ter aumentado o número de trabalhadores a tempo parcial nem seriam más notícias se correspondessem a respostas do mercado às distorções derivadas de uma lei laboral demasiado rígida. O pior é que, lendo o Diário Económico de ontem, e olhando para os números, se fica bem mais inquieto: os empregos criados são pouco qualificados e são os jovens mais qualificados que estão a engrossar o número dos desempregados. Indo directo ao que dói mais: desde que Sócrates tomou posse, Portugal perdeu 167 mil empregos qualificados. Uma quebra de 12 por cento. Uma quebra que parece contrariar o discurso sobre o "choque tecnológico". E só escrevemos "parece" porque uma parte desses empregos desaparecidos era de licenciados que trabalhavam na administração pública, muitos como professores. Estando a mais, sendo redundantes, é bom que tenham desaparecido empregos que pesavam sobre a economia. Só que isso é apenas uma parcela, pequena, da realidade.

De acordo com os especialistas contactados pelo Diário Económico, Portugal está a ter muita dificuldade em criar empregos para quadros com formação superior (e tanto dinheiro que se andou a gastar na "paixão" da educação!), antes revelando alguma propensão para criar empregos no sector da hotelaria (vamos ser os criados de mesa da Europa?), em serviços de vendas (de quê, se ninguém compra?) e em call centers (uma especialidade da Índia, mas que o nosso rudimentar inglês nem sequer favorece muito).

Pior: em termos proporcionais, após dois anos de Sócrates, temos mais vendedores, mais operários e mais agricultores. É certo que alguns deles são licenciados, mas ninguém os livrou de servirem numa caixa de supermercado ou conduzirem um táxi. Sempre é melhor do que o desemprego, pois a verdade é que neste trimestre a percentagem de activos licenciados e desempregados ultrapassou a percentagem de activos desempregados.

Se a isto acrescentarmos que a taxa de desemprego subiu muito entre os que têm menos de 35 anos e desceu entre os que têm mais de 45 anos, é caso para perguntar: que raio de futuro estamos nós a construir? E que raio de país estamos a deixar aos nossos filhos?

Enquanto não tiver boas respostas para estas perguntas, Sócrates devia abster-se, por pudor, de falar da criação de empregos.