Um dos aspectos mais pungentes do
mundo moderno consiste no aproveitamento mediático
do sofrimento humano. Cada vez mais a atenção dos
media e do público em geral se centra nas questões
do quotidiano e, dentre elas, as mais apetecidas são
as que envolvem a exposição pública da dor e do
sofrimento.
Até certo ponto pode-se dizer que
esta exteriorização de sentimentos privados
constitui um jogo que se alimenta mutuamente. Quem
expõe publicamente a dor encontra nessa
exteriorização uma forma de exorcismo ou de
conforto. Quem publicita as manifestações de dor e
sofrimento retrata a vida real e oferece a um
público ávido de "casos" uma expressão de
autenticidade humana inigualável. Os limites deste
exercício são de dois tipos: o da vontade dos
protagonistas do sofrimento e o do bom gosto de quem
os relata.
Trata-se de opções que em primeira
linha se jogam na esfera privada de cada um. E
sequencialmente projectam-se nas linhas editoriais e
na cultura dos diferentes meios de comunicação
social.
O sofrimento em directo na televisão
constitui o clímax desta evolução. Com efeito,
perante as câmaras de televisão, em directo, não há
mediação possível e o espontaneismo é a regra
dominante. No limite a decisão editorial é apenas a
de emitir ou não as expressões de sofrimento assim
colhidas "ao vivo".
Em muitos países debate-se até onde
é que a liberdade editorial deve ir. O assunto
esteve bem presente, por exemplo, na forma como as
televisões britânicas cobriram os atentados
terroristas de Julho de 2005 e o tipo de imagens e
de depoimentos colhidos e transmitidos a partir do
local da tragédia. Nessa ocasião, os critérios
editoriais tiveram em linha de conta o potencial
efeito propulsor dos relatos e das imagens do
acontecimento e deve sublinhar-se a contenção por
todos seguida, o que é um facto raro num país que se
distingue por uma imprensa tablóide muito agressiva.
Mas fora do contexto do sofrimento e
da dor que se enquadra numa preocupação de interesse
público (como a de lidar com o impacto público de um
atentado terrorista), na maioria dos casos a
partilha pelo público em geral do sofrimento e da
dor está subtraída a limitações decorrentes do
interesse público. Prevalece, pois, a cultura
dominante numa dada sociedade sobre o sofrimento
pessoal e, no limite, um critério de defesa da
dignidade da pessoa humana, que é um campo muito
lato de avaliação e julgamento.
Não escondo que, entre nós, em
vários casos, me parece que se ultrapassou esse
limite de protecção devida à dignidade humana na
forma como a dor e o sofrimento são noticiados e
emitidos em imagens pungentes. Reconheço, contudo,
que o consentimento dos visados é um pressuposto que
sustenta esse tipo de relatos.
Mas mais censurável que a exploração
sensacionalista da dor e do sofrimento é a situação
onde um sistema público só se move sob a pressão da
explosão comunicacional dessa dor e desse
sofrimento.
As imagens que vimos na semana
passada da funcionária gravemente doente e
parcialmente paralisada de uma junta de freguesia,
que foi obrigada a apresentar-se ao serviço por uma
decisão burocrática inconcebível e desumana,
constituem o mais severo libelo acusatório de um
sistema que manifestamente despreza esse valor
central da dignidade da pessoa humana.
Sabemos todos que a lei em causa já
foi alterada e que o sistema que deu origem a tal
anacronismo já foi alterado. Como sabemos que
inexplicavelmente levou três meses a ser completado
o processo burocrático de tramitação dessa alteração
legislativa. Foi, por isso,
necessária uma intervenção ad hoc do Ministro das
Finanças, decerto impressionado por aquelas
espantosas imagens de dor e sofrimento da
funcionária, para prontamente pôr termo a uma
situação que nunca deveria ter existido!
Fica-nos o exemplo tocante da
própria funcionária que, naturalmente reconfortada
pela decisão ministerial, não deixou, contudo, de
lamentar ter tido que expor publicamente a sua dor e
o seu sofrimento para obter aquilo que era do mais
elementar bom senso lhe fosse reconhecido à partida.
Um exemplo ímpar de dignidade humana a meditar por
todos nós.