Diário de Notícias - 09 Nov 07

Dignidade Humana
António Vitorino

Um dos aspectos mais pungentes do mundo moderno consiste no aproveitamento mediático do sofrimento humano. Cada vez mais a atenção dos media e do público em geral se centra nas questões do quotidiano e, dentre elas, as mais apetecidas são as que envolvem a exposição pública da dor e do sofrimento.

Até certo ponto pode-se dizer que esta exteriorização de sentimentos privados constitui um jogo que se alimenta mutuamente. Quem expõe publicamente a dor encontra nessa exteriorização uma forma de exorcismo ou de conforto. Quem publicita as manifestações de dor e sofrimento retrata a vida real e oferece a um público ávido de "casos" uma expressão de autenticidade humana inigualável. Os limites deste exercício são de dois tipos: o da vontade dos protagonistas do sofrimento e o do bom gosto de quem os relata.

Trata-se de opções que em primeira linha se jogam na esfera privada de cada um. E sequencialmente projectam-se nas linhas editoriais e na cultura dos diferentes meios de comunicação social.

O sofrimento em directo na televisão constitui o clímax desta evolução. Com efeito, perante as câmaras de televisão, em directo, não há mediação possível e o espontaneismo é a regra dominante. No limite a decisão editorial é apenas a de emitir ou não as expressões de sofrimento assim colhidas "ao vivo".

Em muitos países debate-se até onde é que a liberdade editorial deve ir. O assunto esteve bem presente, por exemplo, na forma como as televisões britânicas cobriram os atentados terroristas de Julho de 2005 e o tipo de imagens e de depoimentos colhidos e transmitidos a partir do local da tragédia. Nessa ocasião, os critérios editoriais tiveram em linha de conta o potencial efeito propulsor dos relatos e das imagens do acontecimento e deve sublinhar-se a contenção por todos seguida, o que é um facto raro num país que se distingue por uma imprensa tablóide muito agressiva.

Mas fora do contexto do sofrimento e da dor que se enquadra numa preocupação de interesse público (como a de lidar com o impacto público de um atentado terrorista), na maioria dos casos a partilha pelo público em geral do sofrimento e da dor está subtraída a limitações decorrentes do interesse público. Prevalece, pois, a cultura dominante numa dada sociedade sobre o sofrimento pessoal e, no limite, um critério de defesa da dignidade da pessoa humana, que é um campo muito lato de avaliação e julgamento.

Não escondo que, entre nós, em vários casos, me parece que se ultrapassou esse limite de protecção devida à dignidade humana na forma como a dor e o sofrimento são noticiados e emitidos em imagens pungentes. Reconheço, contudo, que o consentimento dos visados é um pressuposto que sustenta esse tipo de relatos.

Mas mais censurável que a exploração sensacionalista da dor e do sofrimento é a situação onde um sistema público só se move sob a pressão da explosão comunicacional dessa dor e desse sofrimento.

As imagens que vimos na semana passada da funcionária gravemente doente e parcialmente paralisada de uma junta de freguesia, que foi obrigada a apresentar-se ao serviço por uma decisão burocrática inconcebível e desumana, constituem o mais severo libelo acusatório de um sistema que manifestamente despreza esse valor central da dignidade da pessoa humana.

Sabemos todos que a lei em causa já foi alterada e que o sistema que deu origem a tal anacronismo já foi alterado. Como sabemos que inexplicavelmente levou três meses a ser completado o processo burocrático de tramitação dessa alteração legislativa. Foi, por isso, necessária uma intervenção ad hoc do Ministro das Finanças, decerto impressionado por aquelas espantosas imagens de dor e sofrimento da funcionária, para prontamente pôr termo a uma situação que nunca deveria ter existido!

Fica-nos o exemplo tocante da própria funcionária que, naturalmente reconfortada pela decisão ministerial, não deixou, contudo, de lamentar ter tido que expor publicamente a sua dor e o seu sofrimento para obter aquilo que era do mais elementar bom senso lhe fosse reconhecido à partida. Um exemplo ímpar de dignidade humana a meditar por todos nós.