Público - 07 Nov 07

Esta não é uma história de rankings, mas de bons alunos improváveis
Catarina Gomes

Chegou o dia em que António Lança de Carvalho quis ser mais do que "crítico de café".

Olhou para os números do abandono escolar e decidiu pôr mil euros de lado todos os anos e dá-los aos melhores alunos carenciados da sua freguesia. Quando soube do prémio Joceane pensou que era engano, a mãe de Joana tratou de ligar à "família quase toda"

"Há algum problema? Elas fizeram alguma coisa errada?", perguntou um funcionário da Escola Secundária Fernando Lopes Graça, em São Domingos de Rana (Cascais), quando viu jornalistas à procura de duas alunas que recebem apoios dos Serviços de Acção Social Escolar (SASE).

Também ela estranhou, quando lhe explicaram. "Engano", só podia ser engano, para lhe estarem a dizer ao telefone que ela? Joceane Semedo? ia receber um prémio? Confirmou e era mesmo com ela que queriam falar, ia ser recompensada por ser boa aluna, assim como a amiga, Joana Florêncio, de 15 anos.

Joceane, cabo-verdiana, 16 anos, não é a melhor aluna da turma, não é a melhor aluna daquela escola, foi a melhor aluna do 9º ano na freguesia de São Domingos de Rana de um grupo de alunos de meios carenciados.
Foi seleccionada num micro-universo que António Lança de Carvalho conhece e controla, porque é ali que ele mora. Não quis mandar dinheiro para África onde pensou que a sua ajuda podia ir parar "às mãos de um cacique", não deu "um donativo para uma instituição qualquer porque isso não teria tanto significado", decidiu dar "um empurrão" a estudantes de meios pobres que terminam o 9º ano.

Pode parecer façanha pequena, mas ele reconhece que nalguns contextos têm que ser "campeões" para chegar ao fim do ensino obrigatório, especialmente com boas notas. Não é possível compará-los com meninos que saem das aulas e vão para explicações de tudo e mais alguma coisa e daí para o judo e para a natação. É outro universo. Ele bem sabe, ou melhor, o pai bem soube.

António Lança de Carvalho é controlador aéreo, tirou uma licenciatura em Direito, tem dois filhos e uma vida confortável. Atento às estatísticas do abandono escolar pensou que é no 9º ano que deve haver incentivos para evitar que nesta idade, quando deixa ser obrigatório lá ficarem, os alunos saiam da escola. Sente que "não basta ser crítico de café e exigir do Estado", "podemos ser nós próprios a fazer alguma coisa". Nos jovens entre os 18 e 24 anos, 36,3 por cento completou, no máximo, o 9º ano - dados oficiais de 2007.

Em vez da flor na campa

António analisou as suas possibilidades económicas e pensou que podia por ano dispensar mil euros. Cinco anos depois, avançou para a criação de um prémio com o nome do pai, Afonso Baptista de Carvalho. "Andei a matutar no percurso dele", era órfão de mãe e pai aos quatro anos, foi criado por uma tia pobre, tirou o curso de serralheiro mecânico e entrou aos 17 anos como paquete para uma sociedade de advogados. "Foi em Lisboa, não é uma história lá da província." A verdade é que à custa de sacrifícios conseguiu estudar enquanto trabalhava e chegar a advogado com o seu próprio escritório.

Foi assim, de tanto percorrer a vida do pai que morreu há 13 anos, que pensou que, "mais que pôr a florzinha na campa", queria a partir deste ano ajudar alunos de meios pobres com boas notas que quisessem continuar a estudar. A matrícula no 10º ano tinha que ser requisito obrigatório.

Depois havia outras escolhas a fazer: de onde seriam esses alunos? Como poderiam ser seleccionados? E quem faria essa escolha. Poderiam ser dos Olivais (Lisboa), onde o pai nasceu? De Arroios (Lisboa), onde cresceu? Pensou no rótulo associado à Costa do Estoril, onde fica a sua freguesia, de que é tudo "gente fina".

Foi à sua junta de freguesia porque pensou que poderiam ser eles a servir de "crivo e a garantir que o dinheiro ia parar às mãos certas". Podiam ter acesso às escolas, aos professores, às notas, aos miúdos. A junta fez a selecção e juntou outros mil euros aos de António Lança de Carvalho, o que significou que em vez de três alunos passaram a poder premiar seis. O prémio ficou com o nome do pai mas o logótipo da junta aparece em rodapé e foi lá a cerimónia de entrega do cheque e diploma, no mês passado.

Joceane e Joana receberam os dois prémios de excelência de 500 euros, outros dois alunos receberam os de distinção, de 300 euros, e outros dois os de mérito, de 200 euros, valores diferentes "para haver competição", nota o benemérito, explicando que quatro dos prémios foram para alunos de bairros de realojamento.

Joceane foi para a cerimónia convencida que ia receber um diploma e uma quantia simbólica, "uma lembrança, talvez uns cinco euros". Ainda não recebeu os 500 euros. Quando vierem, quer pô-los de lado, mas o prémio já teve o seu impacto. As amigas da mãe souberam pelo jornal da região de Cascais do prémio da filha, a mãe guardou a notícia e um dia Joceane deu pelo recorte colado no seu guarda-fatos do quarto, mesmo por cima da fotografia do futebolista Cristiano Ronaldo. "Deixei-o lá estar."

Advogada e ortopedista

O prémio de Joceane também serviu para conversas à mesa com os três irmãos mais novos que ainda estão a estudar, um na primária e dois no básico, e que ainda estão a tempo de porem os olhos na irmã, que quer um dia ser advogada como nas séries televisivas A Lei do Mais Forte ou o Projecto Justiça.
As duas amigas sempre tiveram "em turmas boas", mas ambas ouviram falar de casos de pessoas que se ficaram pelo 9º ano, em que um ano depois de acabarem já têm idade legal para começar a trabalhar e "entram noutro mundo", diz Joana, que não quer que esse seja o seu caminho. Longe disso, Joana sabe por agora que sempre gostou de ossos, "acho graça ao esqueleto humano", e sabe já que quer ser ortopedista.

Em vez da fotocópia da notícia colada ao guarda-fatos, Joana teve "a mãe a chorar" quando soube do prémio e "a ligar para a família quase toda", a contar do feito da filha, que é a mais nova de cinco irmãos.

António Lança de Carvalho esteve com Joceane e Joana lado a lado num palanque da junta de freguesia, na cerimónia de entrega de prémios que para si foi "demasiado formal".

Mais perto do Natal - ficam avisadas Joceane e Joana e os outros quatro premiados - quer marcar um almoço. "Faço tensão de acompanhar o percurso dos premiados." A ideia não é fiscalizar o que fizeram ao dinheiro, é perceber se aquele seu "investimento a fundo perdido" teve algum impacto nas vidas deles. Alguns colegas que acompanharam Joana e Joceane à porta da escola para virem falar com o P2 quiseram verificar que iam mesmo ser entrevistadas, como elas lhes tinham dito, confirma-se, são mesmo "bué importantes".