Esta não é uma história de
rankings, mas de bons alunos improváveis
Catarina Gomes
Chegou o dia em que António Lança de
Carvalho quis ser mais do que "crítico de café".
Olhou para os números do abandono
escolar e decidiu pôr mil euros de lado todos os
anos e dá-los aos melhores alunos carenciados da sua
freguesia. Quando soube do prémio Joceane pensou que
era engano, a mãe de Joana tratou de ligar à
"família quase toda"
"Há algum problema? Elas fizeram
alguma coisa errada?", perguntou um funcionário da
Escola Secundária Fernando Lopes Graça, em São
Domingos de Rana (Cascais), quando viu jornalistas à
procura de duas alunas que recebem apoios dos
Serviços de Acção Social Escolar (SASE).
Também ela estranhou, quando lhe
explicaram. "Engano", só podia ser engano, para lhe
estarem a dizer ao telefone que ela? Joceane Semedo?
ia receber um prémio? Confirmou e era mesmo com ela
que queriam falar, ia ser recompensada por ser boa
aluna, assim como a amiga, Joana Florêncio, de 15
anos.
Joceane, cabo-verdiana, 16 anos, não
é a melhor aluna da turma, não é a melhor aluna
daquela escola, foi a melhor aluna do 9º ano na
freguesia de São Domingos de Rana de um grupo de
alunos de meios carenciados.
Foi seleccionada num micro-universo que António
Lança de Carvalho conhece e controla, porque é ali
que ele mora. Não quis mandar dinheiro para África
onde pensou que a sua ajuda podia ir parar "às mãos
de um cacique", não deu "um donativo para uma
instituição qualquer porque isso não teria tanto
significado", decidiu dar "um empurrão" a estudantes
de meios pobres que terminam o 9º ano.
Pode parecer façanha pequena, mas
ele reconhece que nalguns contextos têm que ser
"campeões" para chegar ao fim do ensino obrigatório,
especialmente com boas notas. Não é possível
compará-los com meninos que saem das aulas e vão
para explicações de tudo e mais alguma coisa e daí
para o judo e para a natação. É outro universo. Ele
bem sabe, ou melhor, o pai bem soube.
António Lança de Carvalho é
controlador aéreo, tirou uma licenciatura em
Direito, tem dois filhos e uma vida confortável.
Atento às estatísticas do abandono escolar pensou
que é no 9º ano que deve haver incentivos para
evitar que nesta idade, quando deixa ser obrigatório
lá ficarem, os alunos saiam da escola. Sente que
"não basta ser crítico de café e exigir do Estado",
"podemos ser nós próprios a fazer alguma coisa". Nos
jovens entre os 18 e 24 anos, 36,3 por cento
completou, no máximo, o 9º ano - dados oficiais de
2007.
Em vez da flor na campa
António analisou as suas
possibilidades económicas e pensou que podia por ano
dispensar mil euros. Cinco anos depois, avançou para
a criação de um prémio com o nome do pai, Afonso
Baptista de Carvalho. "Andei a matutar no percurso
dele", era órfão de mãe e pai aos quatro anos, foi
criado por uma tia pobre, tirou o curso de
serralheiro mecânico e entrou aos 17 anos como
paquete para uma sociedade de advogados. "Foi em
Lisboa, não é uma história lá da província." A
verdade é que à custa de sacrifícios conseguiu
estudar enquanto trabalhava e chegar a advogado com
o seu próprio escritório.
Foi assim, de tanto percorrer a vida
do pai que morreu há 13 anos, que pensou que, "mais
que pôr a florzinha na campa", queria a partir deste
ano ajudar alunos de meios pobres com boas notas que
quisessem continuar a estudar. A matrícula no 10º
ano tinha que ser requisito obrigatório.
Depois havia outras escolhas a
fazer: de onde seriam esses alunos? Como poderiam
ser seleccionados? E quem faria essa escolha.
Poderiam ser dos Olivais (Lisboa), onde o pai
nasceu? De Arroios (Lisboa), onde cresceu? Pensou no
rótulo associado à Costa do Estoril, onde fica a sua
freguesia, de que é tudo "gente fina".
Foi à sua junta de freguesia porque
pensou que poderiam ser eles a servir de "crivo e a
garantir que o dinheiro ia parar às mãos certas".
Podiam ter acesso às escolas, aos professores, às
notas, aos miúdos. A junta fez a selecção e juntou
outros mil euros aos de António Lança de Carvalho, o
que significou que em vez de três alunos passaram a
poder premiar seis. O prémio ficou com o nome do pai
mas o logótipo da junta aparece em rodapé e foi lá a
cerimónia de entrega do cheque e diploma, no mês
passado.
Joceane e Joana receberam os dois
prémios de excelência de 500 euros, outros dois
alunos receberam os de distinção, de 300 euros, e
outros dois os de mérito, de 200 euros, valores
diferentes "para haver competição", nota o
benemérito, explicando que quatro dos prémios foram
para alunos de bairros de realojamento.
Joceane foi para a cerimónia
convencida que ia receber um diploma e uma quantia
simbólica, "uma lembrança, talvez uns cinco euros".
Ainda não recebeu os 500 euros. Quando vierem, quer
pô-los de lado, mas o prémio já teve o seu impacto.
As amigas da mãe souberam pelo jornal da região de
Cascais do prémio da filha, a mãe guardou a notícia
e um dia Joceane deu pelo recorte colado no seu
guarda-fatos do quarto, mesmo por cima da fotografia
do futebolista Cristiano Ronaldo. "Deixei-o lá
estar."
Advogada e ortopedista
O prémio de Joceane também serviu
para conversas à mesa com os três irmãos mais novos
que ainda estão a estudar, um na primária e dois no
básico, e que ainda estão a tempo de porem os olhos
na irmã, que quer um dia ser advogada como nas
séries televisivas A Lei do Mais Forte ou o Projecto
Justiça.
As duas amigas sempre tiveram "em turmas boas", mas
ambas ouviram falar de casos de pessoas que se
ficaram pelo 9º ano, em que um ano depois de
acabarem já têm idade legal para começar a trabalhar
e "entram noutro mundo", diz Joana, que não quer que
esse seja o seu caminho. Longe disso, Joana sabe por
agora que sempre gostou de ossos, "acho graça ao
esqueleto humano", e sabe já que quer ser
ortopedista.
Em vez da fotocópia da notícia
colada ao guarda-fatos, Joana teve "a mãe a chorar"
quando soube do prémio e "a ligar para a família
quase toda", a contar do feito da filha, que é a
mais nova de cinco irmãos.
António Lança de Carvalho esteve com
Joceane e Joana lado a lado num palanque da junta de
freguesia, na cerimónia de entrega de prémios que
para si foi "demasiado formal".
Mais perto do Natal - ficam avisadas
Joceane e Joana e os outros quatro premiados - quer
marcar um almoço. "Faço tensão de acompanhar o
percurso dos premiados." A ideia não é fiscalizar o
que fizeram ao dinheiro, é perceber se aquele seu
"investimento a fundo perdido" teve algum impacto
nas vidas deles. Alguns colegas que acompanharam
Joana e Joceane à porta da escola para virem falar
com o P2 quiseram verificar que iam mesmo ser
entrevistadas, como elas lhes tinham dito,
confirma-se, são mesmo "bué importantes".