Deixem os professores em paz
Maria Filomena Mónica
Um professor precisa de uma sólida preparação de
base, prestígio junto da comunidade e autonomia de
acção
Não conheço muitos professores do ensino básico e
secundário, mas o contacto que, ao longo dos anos,
venho mantendo com alguns e o facto de ter netos a
frequentar a escolaridade obrigatória permite-me ter
uma ideia mínima do que se passa nas escolas. Aliás,
se não me posso pronunciar com mais profundidade
sobre estes graus de ensino não é responsabilidade
minha, mas das leis que o Ministério da Educação
promulga.
Há quatro ou cinco anos, ofereci-me para, durante um
ano lectivo, leccionar História em qualquer grau de
ensino não superior, coisa que um jurista do
ministério me explicou ser impossível, por ter
"habilitações a mais". O meu plano era analisar o
ambiente de uma escola da periferia de Lisboa com o
objectivo de, no final do ano, escrever um livro.
Pelos vistos, faltava-me percorrer o calvário a que
estes docentes são sujeitos.
É fácil deitar a culpa dos males do ensino para cima
dos professores. No sossego do lar, eu própria já o
fiz, mas as coisas chegaram a um ponto que o ataque
a esta classe, especialmente se vindo do ministério,
é indecoroso. Para se ser bom docente, são precisas
três coisas: uma sólida preparação de base,
prestígio junto da comunidade e autonomia de acção.
A isto pode juntar-se a paixão pelo que se lecciona,
um ideal que nem todos podem atingir. Ora que vemos?
O Estado prepara mal os docentes (obrigando-os a
frequentar cursos mal estruturados e estágios
baseados em cursos recheados de jargão inútil), mina
o seu status profissional e pretende regulamentar
tudo o que se passa na sala de aula. Não estou a
falar do curricula, que, esse sim, compete ao poder
central elaborar, mas das centenas de despachos
normativos, regulamentos e grelhas que atulham as
caixas de correio das escolas. Depois de lhes ter
dado uma educação deficiente, de ter transformado a
sua carreira num pesadelo, de lhes ter retirado a
possibilidade de inovar, o Estado dá-se ao luxo de
os olhar com desconfiança.
Estou consciente de que, como em todas as
profissões, há ovelhas ranhosas dentro da classe.
Mas este problema só pode ser resolvido por uma
direcção escolar composta de forma diferente e por
um sistema de ensino mais flexível do que aquele que
existe. Para mal dos nossos pecados, nenhum governo
teve coragem para alterar o esquema de organização
das escolas, muito menos para deitar abaixo o bloco
monolítico que para aí anda a cambalear. Um director
empenhado fará sempre a diferença. Tendo começado
bem, a actual ministra derrapou e o
primeiro-ministro lembrou-se de usar o velho truque
de tentar isolar o sindicato das suas bases. Jamais
defendi actuar este de forma imaculada - considero
até que a maior parte das suas ideias é errada -,
mas a degradação do ensino não é fundamentalmente
culpa sua, uma vez que o sindicato só interfere
porque o poder o deixa. Finalmente, a aparição, no
dia 8 de Outubro, de polícias à civil na sede do
sindicato na Covilhã, de onde levaram documentos
relativos a uma anunciada manifestação contra o
engenheiro Sócrates é inadmissível. Só um país
apático aceita as conclusões idiotas que, após um
chamado "inquérito", o Governo tornou públicas.
Deixo de lado as paranóias do primeiro-ministro para
me centrar no tema deste artigo. Para além de terem
de leccionar programas imbecis, de passarem a vida a
girar de uma escola para outra, de serem sujeitos a
avaliações surrealistas, os professores são
obrigados a aturar alunos malcriados. Há tempos, um
professor contou-me ter sido agredido por um aluno
de 17 anos, tendo-me em seguida explicado que
decidira não responder à letra ao matulão, porque
isso implicaria um processo disciplinar contra ele,
docente, e não contra o aluno. Mas não é apenas a
violência, mas a apatia que mina a escola.
Recordam-se daquela reportagem da RTP1, em que se
via uma turma onde, farta de ouvir a lição, uma
miúda se punha a varrer o chão? É com isto que, dia
após dia, após dia, muitos docentes se defrontam.
Há 30 anos, quando os meus filhos entraram para o
ciclo preparatório (actuais 5.º e 6.º anos), numa
escola pública (a Manuel da Maia), ao lado do Casal
Ventoso, quase todos os alunos pertenciam à
burguesia. O ambiente que ali se respirava reflectia
a cultura que as crianças traziam de casa: mesmo
quando não livresco, o ethos era hierárquico. Com a
evolução da sociedade portuguesa - e não o devemos
lamentar - tudo isto mudou. Muitos dos alunos provêm
agora de meios sócio-económicos baixos e são fruto
de gerações de analfabetos. É com crianças educadas
à base de telenovelas e de "saberes" aprendidos na
rua que os professores têm de lidar. Como se isto
não bastasse, a escola é forçada a desempenhar
funções que, em princípio, lhe não competiria, tais
como cuidar de miúdas que engravidam aos 13 anos e
de rapazes que consomem drogas.
Não quero pensar no que é a vida de uma jovem, com
filhos pequenos, que diariamente tem de fazer
quilómetros, a fim de chegar ao estabelecimento
escolar para o qual foi "destacada" - só o termo me
horroriza! -, onde é obrigada a enfrentar crianças
para quem o ensino é uma maçada. Em geral, sou pouco
condescendente com as "baixas" justificadas por
atestados que confirmam doenças psíquicas, mas, no
caso dos professores, tenho de abrir uma excepção.
Só no último mês, deparei-me com duas professoras
que se tinham ido abaixo. Nenhuma ensinava,
repare-se, em zonas socialmente turbulentas: uma
leccionava numa aldeia perto de Viseu, a outra em
Évora. O que as afectara fora a ausência de
independência dentro da sala de aula: ambas se
sentiam marionetes numa peça que não tinham escrito.
Sem programas bem feitos, sem manuais decentes, sem
incentivos para se actualizarem, a vida dos
professores transformou-se num inferno.