Público - 28
Nov 06
Talvez
Pedro Picoito
Compreende-se que quem proclama não haver mais
nenhuma solução [além da despenalização do aborto],
mas nada faz para que haja, proclame também que
antes das dez semanas não há vida humana. O que há
então?
Em todas as campanhas do aborto, e já vamos na
terceira, há sempre momentos em que a intolerância
dos exaltados vem ao de cima. Do lado do "sim" no
próximo referendo, o texto de Madalena Barbosa "A
prisão e o aborto" (PÚBLICO, 22/11/06) é um desses
momentos. Não vou perder muito tempo com os
impropérios da autora, "especialista em igualdade de
género" (novo título, ao que parece, das feministas
radicais de sempre). Lembro apenas a insinuação
grotesca de que "os movimentos pró-vida têm boas
estratégias, importadas talvez dos Estados Unidos,
onde usaram o terrorismo para tentar acabar com os
direitos das mulheres" através de "centenas de
atentados bombistas e assassinatos". Seria matéria
para os tribunais e não para os jornais. Mas os
argumentos em defesa da liberalização do aborto
merecem resposta, sobretudo por serem tão repetidos.
Comecemos pelo princípio. "O aborto é mau" e quem o
faz "renuncia por vezes a uma criança que até
desejaria ter, se pudesse". Mas não pode porque, com
filhos, "não arranja emprego, não progride na
carreira, vai trabalhar mais por menos remuneração,
não tem casas apropriadas, não tem creches, não tem
tempo para estudar, não pode fazer os horários
extraordinários que agora exigem aos técnicos
licenciados". Sabendo embora que há mais mulheres do
que as licenciadas, concordo inteiramente. Vejo tudo
isso em minha casa. O que eu não vejo é a mesma
energia por parte dos defensores do "sim" para
combater os males que tão oportunamente denunciam.
Não conheço estudos de "especialistas em igualdade
de género" sobre a discriminação das mães no mercado
de trabalho. Não recordo nenhuma iniciativa
legislativa dos partidos que propõem a liberalização
do aborto para diminuir o IRC sobre as fraldas. Não
vislumbro a mais leve preocupação do Governo em
cobrir o país com uma boa rede de escolas e
maternidades. Pelo contrário: só vislumbro a óbvia
solicitude em fechá-las, ao mesmo tempo que anuncia
ir comparticipar abortos em clínicas privadas. Para
estes paladinos dos direitos das mulheres, o aborto
é a única solução, o anticonceptivo que nunca falha.
Nada mais têm a oferecer-lhes além do "aborto nas
primeiras dez semanas, quando a vida humana ainda
não o é".
Compreende-se que quem proclama não haver mais
nenhuma solução, mas nada faz para que haja,
proclame também que antes das dez semanas não há
vida humana. O que há então? Vida piscícola, já que
o feto vive dentro de água? E por que súbito
milagre, decretado pela Assembleia da República,
passa a haver vida humana depois das dez semanas?
Estes malabarismos conceptuais mostram bem o que
procura o "sim" no referendo: a liberalização do
aborto e não a sua despenalização. Leia-se a
pergunta que vai a votos. As únicas condições para
permitir a prática de aborto até às dez semanas são
a "opção da mulher" e a realização da cirurgia "em
estabelecimento legalmente autorizado", público ou
particular. O aborto passa a ser totalmente livre e,
mais do que isso, um negócio subsidiado pelos nossos
impostos.
No intuito de desviar as atenções de coisas tão
óbvias, os defensores da liberalização costumam
invocar o aborto clandestino, por um lado, e as
"marcas psíquicas de uma gravidez forçada", por
outro. Omitem, porém, as marcas - psíquicas e não só
- que um aborto, clandestino ou legal, deixa sempre
nas mulheres. E omitem que em todos os países que
abriram as portas à liberalização o número total de
abortos aumentou exponencialmente. Há hoje uma
alarmante quantidade de dados empíricos que provam
isso.
E isso é o que devemos discutir, não os "talvezes"
delirantes de uma "especialista em igualdade de
género". Quando o nível desce da inverdade dos
factos para a calúnia das pessoas, já não é o
aborto, ou a vida, ou os direitos das mulheres que
estão em causa, mas a mera possibilidade de
convivência democrática. Talvez Madalena Barbosa não
queira esse debate. Talvez não queira a
liberalização do aborto, mas a do insulto. Talvez
queira apenas eliminar a diferença - primeiro a de
género, depois a de opinião.
Talvez. Apoiante da Plataforma Não Obrigada e membro
do Blogue do Não