Infovitae nº535 - 22 Nov 06

Portugal: Declarações de Voto dos Juízes do Tribunal Constitucional do Acordão que Aprovou a Pergunta para o Referendo sobre o Aborto
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Declaração de voto

 

Votei a alínea h) do ponto 1.º da Decisão, sem prejuízo de ulterior reponderação da questão de saber se o Tribu­nal Constitucional é competente, no âmbito da verificação prévia da constitucionalidade do referendo, para apreciar se a pergunta formulada não coloca os eleitores peran­te uma questão dilemática em que um dos respectivos termos aponta para uma solução jurídica inconstitucio­nal. — Maria João Antunes.

 

Declaração de voto

 

1 — Votei vencido o número 2 da decisão, consideran­do não verificada a constitucionalidade e legalidade do referendo proposto, uma vez que não acompanho as con­clusões constantes das alíneas e) e i) do número 1, pelas razões que passo sumariamente a enunciar. Ficaram-me ainda dúvidas quanto à conclusão expressa na alínea g) do número 1, que não foram porém suficientes para me levar a afastar, neste ponto, da decisão — e enunciarei igualmente a justificação do meu ponto de vista.

 

2 — A alínea e) da decisãopor verificados os re­quisitos de objectividade, clareza e precisão exigidos pelo número 6 do artigo 115.º da Constituição. Começando pelo primeiro, pode desde logo perguntar-se se ele não será afectado pelo o inciso final da perguntaem estabeleci­mento de saúde legalmente autorizado”, na medida em que a sua inclusão nesta é susceptível de ser vista como in­duzindo uma resposta afirmativa. Com efeito, a autoriza­ção legal pode considerar-se reportada à realização da interrupção voluntária da gravidez nos termos em que se pretende questionar o eleitorado, e só em caso de respos­ta afirmativa existiriam estabelecimentos autorizados a levá--la a cabo. Admitimos no entanto que por tal inciso se tenha em vista a existência de estabelecimentos de saúde legalmente autorizados a praticar em geral actos cirúrgi­cos, ou actos do tipo daqueles em que se incluem os que interferem no processo de interrupção voluntária da gra­videz, o que afastaria o risco de a pergunta predispor ne­cessariamente a uma resposta positiva. Só que, a ser as­sim, tal redunda numa menor clareza da pergunta, uma vez que no respectivo contexto ela consente a dúvida legíti­ma sobre o que se entende por “estabelecimento de saú­de legalmente autorizado”. Dúvida que poderia aliás ser facilmente esclarecida se se falasse em “estabelecimento de saúde a autorizar”. Semelhante ambivalência pode ain­da ligar-se ao conceito de “despenalização” que integra a pergunta, na medida em que nos podemos legitimamente interrogar sobre o seu alcance. Visa ele a supressão total da infracção, nas suas duas componentes, a hipótese e a sanção, ou limita-se apenas a esta última, deixando per­manecer o carácter ilícito do comportamento mas sem lhe ligar qualquer sanção penal, na linha de uma tendência referida no acórdão e que contesta a racionalidade da ideia de que o crime reclama sempre uma pena (n.º 9 do acór­dão)?

 

Pode igualmente questionar-se se o estádio visado pela pergunta é o de uma total e radical descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (quando realizada por opção voluntária da mulher, nas primeiras dez semanas e em estabelecimento de saúde legalmente autorizado), em termos de esta deixar, em tais condições, de constituir um facto ilícito e de ser objecto de uma censura ético -jurídica (o que parece ser inculcado pela última condição enun­ciada), ou se a ela apenas deixa de estar ligada uma san­ção de carácter penal, sem que no entanto a ordem jurídi­ca deixe de a considerar como censurável. A falta de nitidez e de univocidade dos sentidos possíveis da per­gunta prejudica assim irremediavelmente a sua clareza, em termos de justificar o nosso voto de vencido quanto à alínea e) do n.º 1 da decisão.

 

3 — Também não sufragamos a afirmação, feita na alí­nea i) da decisão, de que nenhuma das respostas — afir­mativa ou negativa — à pergunta formulada implica ne­cessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição. Entendemos, na verdade, que tal sucede com a resposta afirmativa, uma vez que, ao possibilitar a reali­zação da interrupção voluntária da gravidez, “por opção da mulher, nas primeiras dez semanas”, se lesa, de forma


 

constitucionalmente insuportável, o princípio da inviola­bilidade da vida humana consagrado no artigo 24.º, n.º 1 da Constituição. Em nosso entender, deste princípio de­corre igualmente a protecção da vida intra-uterina, uma vez que “funcionando o direito à vida como pressuposto e condição de todos os restantes direitos do ser humano, (…), é o momento de origem da vida que torna operativo

postulado constitucional da sua inviolabilidade” (Paulo Otero, Direito da Vida, Coimbra, 2004, p. 82).

 

Do reconhecimento da protecção constitucional da vida intra-uterina não decorre porém, em nosso entender, que lhe deva ser necessariamente dispensada uma tutela ju­rídico-penal idêntica em todas as fases da vida e que uma tal tutela seja absoluta. Designadamente, aceitamos que uma lógica de ponderação de valores e de concordância prática como a que se exprime no método das indicações (tal como consagrado presentemente entre nós ou por­ventura noutras variantes) possa conduzir à não punibi­lidade de certas situações de interrupção voluntária da gravidez. É por isso aliás que não temos por constitu­cionalidade inadmissível uma resposta negativa à pergun­ta formulada, uma vez que a solução jurídica que dela resultaria — a insusceptibilidade de alterar, nos termos contemplados na pergunta, o regime da interrupção vo­luntária da gravidez, com a consequente manutenção da situação presentenão contraria, em nosso entender a Constituição. O que contrariará a Constituição, pelo contrário, será uma solução legislativa que, num dado período (dez semanas, no texto da pergunta), permita o sacrifício de um bem jurídico constitucionalmente prote­gido, por simples vontade da mãe, independentemente de toda e qualquer outra consideração ou procedimento. Em tais casos, não poderá falar-se em nosso entender de concordância prática ou de ponderação de valores, uma vez que nenhuma protecção é dispensada ao bem jurídi­co vida. É certo que o acórdão sustenta, diferentemente, existir ainda aqui uma ponderação, ou uma tentativa de concordância prática, entre o bem jurídico vida (do feto)

o direito à autodeterminação da mulher grávida. Sim­plesmente, entendemos que, com a solução legal propos­ta, ao fazer prevalecer sempre, em todos os casos e in­dependentemente das circunstâncias, o que se designa pordireito ao livre desenvolvimento da personalidade da mulher”, se está afinal a postergar completamente a protecção da vida intra-uterina que cremos ser objecto de tutela constitucional.

 

Também não ignoramos que o acórdão pretende responder a esta objecção consideran­do existir uma protecção do bem jurídico vida, como que vista diacronicamente, uma vez que se a ponderação se faz nas primeiras dez semanas a favor do direito ao livre desenvolvimento da mãe grávida ela passa depois por admitir uma tentativa de concordância prática nos termos do método das indicações para, no período final da gra­videz, reverter à protecção total do bem jurídico vida. Não podemos porém aceitar esta versão, na medida em que a protecção dos bens jurídicos não pode ser vista em abs­tracto, desenraizada da consideração dos seus titulares que, no sistema proposto, o bem jurídico vida é, sem­pre e independentemente das circunstâncias, desconsi­derado nas primeiras dez semanas, não lhe sendo nunca pois, em tal período, dispensada qualquer protecção. É por conduzir assim, no período considerado, a essa total desconsideração do bem de vida, quando radicado num sujeito, sejam quais forem os motivos que levam à decisão da mãe, que entendemos que o sistema proposto contraria o imperativo de protecção da vida intra-uterina constitucionalmente consagrado, com o que temos por justificada a nossa discordância com a conclusão formu­lada na alínea i) do n.º 1.

 

4 — Finalmente, não temos por conseguida a justifica­ção fornecida pelo acórdão para a definição do universo eleitoral a que procede a proposta. Na verdade, explicar a restrição deste universo aos cidadãos residentes em Por­tugal pela circunstância de a aplicação da lei penal portu­guesa se orientar em princípio por um critério de natureza territorial é conceber o interesse dos cidadãos portugue­ses residentes no estrangeiro de forma redutora, excluin­do-o por não serem eventuais potenciais integrantes do círculo de pessoas susceptíveis de serem abrangidas pelo comando de uma norma incriminadora. Ora, diversamente, e também atento o relevante interesse nacional reconheci­do à questão objecto do referendo, a participação dos portugueses no estrangeiro (rectius, daqueles de entre estes chamados a participar) justifica-se pela particular li­gação destes (traduzida pelo recenseamento) à vida na­cional e pela circunstância de a questão a decidir integrar como que o património cultural da comunidade em que se têm por inseridos.

 

Nestes termos, não temos por congruente a fundamen­tação dada pelo acórdão a este propósito. Simplesmente, dispondo a Constituição, no seu artigo 115.º, n.º 12, que os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro regu­larmente recenseados são chamados as participar nos re­ferendos “quando recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito”, não temos por claro o que se deva entender a este propósito. Ou seja, se é para nós nítido que tal ocorre num eventual referendo sobre a vinculação de Portugal a um tratado europeu, temos dúvidas que uma questão central da vida comunitária diga especificamente respeito aos cidadãos residentes no es­trangeiro, muito embora não se possa duvidar que lhes diga igualmente respeito. É por não podermos excluir, sob reserva de melhor estudo, que o citado preceito constitu­cional vise como fundadas razões limitar em maior grau a participação dos residentes no estrangeiro nas iniciativas referendárias, que nos limitamos a dar conta das nossas dúvidas a este respeito, sem dissentir contudo da solu­ção a que o acórdão chegou a este respeito na alínea g) do n.º 1 da decisão. — Rui Manuel Moura Ramos.

 

Declaração de voto

 

Votei vencida quanto às alíneas e), h) e i) do n.º 1.º e, consequentemente, quanto ao n.º 2.º da decisão, pelas razões que indiquei no voto de vencida que juntei ao acórdão n.º 288/98, que transcrevo, e que a meu ver não são postas em causa pelo presente acórdão:

 

«Votei vencida quanto à alínea f) [correspondente à actual al. e) do n.º 1] do n.º 1.º porque entendo que a pergunta não satisfaz, tanto quanto podia e devia satisfa­zer, os requisitos constitucionalmente exigidos de objecti­vidade, clareza e precisão.

 

No plano da objectividade, importaria sobretudo garan­tir, na medida do possível, a neutralidade da pergunta relativamente às posições dominantes no debate público da questão, em especial a posição que se traduz em man­ter o actual sistema legal de não punibilidade do aborto terapêutico, eugénico ou criminológico, nas condições definidas pelo artigo 142.º do Código Penal, o qual se não pode confundir de modo nenhum com a ideia de penaliza­ção absoluta da interrupção voluntária da gravidez. Ora, nos termos em que se encontra formulada, a pergunta sugere uma escolha entre penalização e despenalização que não exprime a alternativa emergente dos debates que lhe deram origem, e que se coloca entre a despenalização re­lativa da lei actual e a despenalização absoluta até às dez semanas de gravidez.

 

Quanto aos requisitos da clareza e da precisão, eles mostram-se imperfeitamente cumpridos, tanto do ponto de vista da resposta positiva ao referendo, como do ponto de vista da resposta negativa. Com efeito, uma resposta positiva pode ser entendida como favorável a uma sim­ples eliminação da incriminação do aborto, mantendo-se este, no entanto, como um acto não lícito para outros efeitos, da mesma forma que pode ser entendida no sen­tido da liberalização — e, portanto, da licitude — do aborto nas primeiras dez semanas de gravidez, como sugere a parte final da pergunta ao referir-se à sua prá­tica em estabelecimento legalmente autorizado. Uma res­posta negativa, por seu lado, pode traduzir, quer o en­tendimento de que a criminalização deve ser mantida nos termos actuais, quer a opinião de que tanto deve ser despenalizado o aborto realizado em estabelecimento le­galmente autorizado como o que é executado fora des­ses estabelecimentos.

 

Votei vencida quanto à alínea i) [actual al. h) do n.º 1] do n.º 1.º por ter sérias dúvidas quanto à possibilidade de o Tribunal Constitucional, na fase de fiscalização preven­tiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo, se pronunciar sobre a constitucionalidade ma­terial da pergunta do ponto de vista da eventual descon­formidade de alguma das respostas possíveis. Os referen­dos exigem um grau de simplificação das questões que normalmente inviabilizará um juízo fundado sobre a con­formidade constitucional das respostas hipotéticas. mais tarde, se e quando uma lei vier a ser aprovada em consequência do referendo, e em face dos termos concre­tos da regulamentação que nela se contiver, o Tribunal Constitucional estará em condições de se pronunciar acerca da adequação constitucional das soluções adoptadas. O referendo apenas produz consequências mediatas sobre a ordem jurídica, relativamente indeterminadas e, não obs­tante o efeito vinculativo sobre o legislador, aliás sem qualquer sanção eficaz, também incertas.

 

Poderá, em sentido contrário, argumentar-se quequestões em que os parâmetros constitucionais são tão nítidos e peremptórios que não oferecerá dificuldades um juízo sobre a constitucionalidade de uma questão subme­tida a referendo, ainda que reduzida à sua máxima simpli­ficação. Mesmo, todavia, que fosse esse o caso presente, a apreciação da constitucionalidade material da pergunta, quanto a este aspecto, encontra-se inviabilizada por força de imprecisões e ambiguidades de que, a meu ver, ela padece. Refiro-me, nomeadamente, à incerteza do signifi­cado de uma resposta positiva, a que acima aludi, pois a diferença entre a liberalização e a simples despenalização do aborto tem decerto profundas implicações constitucio­nais.

 

Se, no limite, se poderia talvez defender que a simples descriminalização é compatível com o princípio da inviola­bilidade da vida humana, ficando esta protegida por for­mas de tutela jurídica sem carácter penal, , porém, a li-beralização, no sentido de tornar a interrupção voluntária da gravidez um acto lícito não condicionado por qualquer causa justificativa, me parece inconciliável com o princí­pio da inviolabilidade da vida humana, razão pela qual entendo que deveria ser mantida a jurisprudência deste Tribunal, fixada nos acórdãos n.ºs 25/84 e 85/85, apenas compatível com o sistema das indicações. Fica, assim, igualmente fundamentado o meu voto de vencida quanto à alínea j) [actual al. i) do n.º 1] do mesmo n.º 1.º

 

Fica de igual modo justificado que, na falta de objec­ções à formulação da pergunta, me teria pronunciado no sentido de considerar preenchidos os requisitos de reali­zação do referendo que, na perspectiva atrás desenvolvi­da, incumbe ao Tribunal, neste momento, apreciar, possi­bilitando assim o conhecimento qualificado da concepção dominante sobre a matéria em causa. Tendo, porém, em conta as considerações precedentes, votei contra o segun­do ponto da decisão.» — Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.

 

Declaração de voto

 

Votei vencido quanto às alíneas e), g) e i) do n.º 1, e, consequentemente, quanto ao n.º 2 da decisão, pelas ra­zões que passo a expor:

 

1 — A minha discordância em relação à alínea e) as­senta fundamentalmente nas razões expostas na declara­ção de voto que juntei ao acórdão n.º 288/98 (a que per­tencem os passos retomados seguidamente). A meu ver, as exigências, constantes dos artigos 115.º, n.º 6, da Cons­tituição, e 7.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Regime do Refe­rendo, de que as perguntas objecto de referendo sejam formuladas com objectividade, clareza e precisão, são cruciais para assegurar a correcção e a idoneidade demo­crática do procedimento referendário. Elas visam permitir aos eleitores a leitura e compreensão acessível e sem ambiguidades da pergunta, evitando “que a vontade ex­pressa dos eleitores seja falsificada pela errónea represen­tação das questões” e eliminando a possível sugestão de respostas, directa ou implícita (J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anota­da, 3.ª ed., Coimbra, 1993, anot. X ao art. 118.º). Requer--se, assim, “a minoração, na medida do possível, do risco de leituras e entendimentos da questão pelos seus desti­natários que possam — directa ou implicitamente, por in­terrogações ou ambiguidades que suscitem no eleitorapontar para uma das respostas alternativas.

 

Sendo esta a finalidade precípua das referidas exigências, impõe-se concluir que elas devem ser apreciadas a partir justamen­te do ponto de vista dos destinatários, considerando mesmo, mais do que umtipo médio’ de eleitor, um tipo de eleitor com graus de instrução e literacia abaixo da média, e não podendo, assim, a precisão e o rigor técni­co-científicos da questão prevalecer, na medida em que sejam susceptíveis de afectar a clareza para aquele tipo de eleitor. Por outro lado, clareza e objectividade afigu­ram-se-me necessariamente atributos relativos, podendo dizer-se que esta ou aquela formulação é mais ou menos clara, ou mais ou menos objectiva, em termos de respeitar os requisitos constitucionais e legais mínimos, mas tendo de considerar-se neste juízo a maior ou menor frequência do uso de certas expressões na linguagem acessível aos destinatários da questão, bem como a existência de expres­sões ou formulações alternativas, muito próximas ou praticamente equivalentes, mas significativamente mais claras e objectivas”.

 

Continuo a considerar que a pergunta proposta não satisfaz o requisito de objectividade, designadamente, por o enquadramento na frase da expressãoem estabeleci­mento legalmente autorizado” se afigurar susceptível de conduzir a um enviesamento da resposta, ou, pelo menos, de despertar dúvidas nos destinatários. Com efeito, “a condição contida nesta parte final da pergunta pressupõe a existência de estabelecimentos legalmente autorizados a realizar a interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, mas estes só existirão em caso de resposta positiva à própria pergunta posta à consideração do elei­torado. A hipótese da pergunta pressupõe, pois, uma res­posta positiva, e pode predispor a esta resposta por se entender que, existindo estabelecimentos legalmente auto­rizados a realizar a interrupção voluntária da gravidez nas condições definidas, seria paradoxal penalizar esta inter­rupção”. A meu ver, este ponto pode, pelo menos, conti­nuar a despertar dúvidas ao leitor que ignore o estado actual da nossa legislação, no que toca à inexistência de tal autorização legal, e considero que o seu esclarecimen­to não é de remeter apenas para a campanha eleitoral, não devendo permitir-se qualquer enviesamento da questão a submeter a referendo. Nem creio que à utilização do insti­tuto do referendo seja inerente o risco de tais ambiguida­des. Deve antes dizer-se, a meu ver, que, não podendo simplesmente elencar-se nomes ou símbolos (como nos restantes actos eleitorais), e antes se tendo que formular questões — tarefa mais sujeita a manipulações e distor­ções — “por maioria de razão, a exigência de objectivida­de surge acrescida” (assim, Maria Benedita Urbano, O Referendo, Coimbra, 1998, p. 210). A resposta a este ar­gumento, no sentido da falta de objectividade da pergun­ta, que se contém no Acórdão n.º 288/98 e foi retomada na presente decisão (n.º 23), assenta, a meu ver, num equí­voco: o de separar a autorização legal aos estabelecimen­tos de saúde, a que se refere a questão, da realização da interrupção da gravidez por mera opção da mulher (diz-se, assim, que, já hoje sendo possível efectuar em certas con­dições a interrupção voluntária da gravidez, já existem “estabelecimentos de saúde legalmente autorizados”). É claro, porém, que a pergunta se refere — e é mesmo nes­se sentido que é entendida pelo “destinatário normal” — a estabelecimentos de saúde legalmente autorizados a rea­lizar a interrupção da gravidez por mera opção da mulher, e tal pressupõe já uma resposta positiva à pergunta (exigir--se-ia, pois, pelo menos, que se falasse de “estabelecimen­tos de saúde que venham a ser legalmente autorizados” a tanto).

 

Para além desta reserva, ficaram-me novamente dúvidas quanto à clareza do termo “despenalização”, não em face de hipóteses alternativas, de sentido equivalente mas indubitavelmente mais claras, segundo o critério que apon­tei e que julgo decisivo, como em relação à possível per­manência do juízo de ilicitude do aborto (embora sem pena, ou, mesmo, fora do domínio criminal).

 

2 — Votei também vencido quanto à alínea g) do n.º 1 da decisão, sobre o universo eleitoral do referendo pro­posto.

 

Entendo que no artigo 115.º, n.º 12, da Constituição, e no artigo 37.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Regime do Refe­rendo, que se referem a matérias que digam “também es­pecificamente respeito” aos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro: a) não se prevê a participação dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro em todos os referendos nacionais (como resulta da formulação e da própria localização sistemática das referidas normas); b) não se requer um interesse específico apenas dos cida­dãos não residentes, distinguindo-se a fórmula empregue, por exemplo, da do “interesse específicoque era exigido para a delimitação dos poderes legislativos das regiões autónomas (trata-se de matérias que digam também espe­cificamente respeito aos cidadãos não residentes em Por­tugal).

 

A meu ver, é excessiva a exigência de que a matéria do referendo “tenha a ver com a específica situação dos ci­dadãos portugueses residentes no estrangeiro”, ou de uma “particular incidência relativamente aos interesses da emigração portuguesa”. Por isso não é decisivo o critério da aplicação da lei penal no espaço, em que se baseia o presente Acórdão, sem aprofundar a dilucidação do sen­tido da formulação constitucional e legal. Em face destas, deve entender-se, a meu ver, que nas matérias que digam “também especificamente respeito” aos cidadãos não re­sidentes se incluem ainda aquelas que são susceptíveis de interessar a estes ao mesmo título que aos cidadãos que residem em Portugal, ou simplesmente as que não res­peitem a um interesse específico destes cidadãos residen­tes. É o que acontece, designadamente, com alterações da legislação nacional que impliquem, ou traduzam, uma alte­ração fundamental nos valores subjacentes à ordem jurí­dica nacional, ou uma “mudança de paradigma” na pro­tecção de bens jurídicos fundamentaiscomo seria, por exemplo, o caso (se esses referendos fossem constitucio­nalmente possíveis) com referendos relativos à reintrodu­ção da pena de morte ou da prisão perpétua. Como resul­ta do que direi a seguir, entendo que é igualmente o caso da presente alteração da legislação relativa à interrupção voluntária da gravidez, pelo facto de se passar a prescin­dir de qualquer indicação ou motivo para a sua realiza­ção, para além da opção de um dos progenitores.

 

Considerei, pois, que era de exigir o chamamento dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro a partici­par no presente referendo.

 

3 — Quanto à discordância em relação à alínea i) do n.º 1 da decisão, mantenho as razões expostas na declara­ção de voto anexa ao acórdão n.º 288/98 — Assim, acom­panho a consideraçãoque vem, aliás, no seguimento da anterior jurisprudência do Tribunal e da maioria da doutrina — de que a vida humana pré-natal é abrangida pela garantia de inviolabilidade constante do artigo 24.º da Constituição. Com uma formulação ampla, esta norma não se limita a garantir um direito fundamental à vida a todas as pessoas, mas consagra igualmente uma tutela não subjectivada do bem “vida humana em formação”, e, em meu entender, impõe igualmente ao legislador um corres­pondente dever de protecção. Como se pode ler na refe­rida declaração de voto, aceito, porém, “a tese de que esta protecção não tem que assumir as mesmas formas nem o mesmo grau de densificação da exigida para o direito à vida subjectivado em cada pessoa, bem como a tese de que tal protecção se pode e deve ir adensando ao longo do período de gestação.

 

Aceito, ainda, que, quando se veri­fique estarem outros direitos constitucionalmente protegi­dos em conflito com a vida intra-uterina, se possa e deva proceder a uma tentativa de optimização, não sendo esta possibilidade vedada por qualquer escala hierárquica de valores constitucionaisembora defenda que a inegá­vel importância do bemvida humana’, como pressuposto necessário de todos os outros direitos, e, desde logo, o seu carácter de comando prima facie (portanto, mesmo não invocando, nem a específica estrutura desse bem, nem a sua eventual consagração numa regra, assentes numa lógica de tudo ou nada), sempre requerem, pelo menos, a verificação da existência de um direito em conflito com esse bem (…), assim como a definição, pelo legislador, das circunstâncias em que a ponderação pode conduzir a uma limitação da tutela da vida humana intra-uterina”.

 

O que não acompanho é a conclusão de que a afirma­da “concordância práticaentre a liberdade, ou o “direito ao desenvolvimento da personalidade”, da mulher e a pro­tecção da vida intra-uterina “possa conduzir a desprote­ger inteiramente esta última nas primeiras dez semanas (durante as quais esse bem é igualmente objecto de pro­tecção constitucional), por a deixar à mercê de uma livre decisão da mulher, que se aceita será lícita, em abstracto, ou seja, independentemente da verificação de qualquer motivo ou indicação no caso concreto”. Por outras pala­vras, não concordo com que, pela via da alegada harmo­nização prática dos interesses em conflito, a Constituição permita chegar a uma “solução dos prazos”, com aceita­ção da totalindiferença dos motivosou de uma “equi­valência de razõespara proceder à interrupção voluntá­ria da gravidez, para a qual todas as razões podem servir — “quer seja realizada por absoluta carência de meios económicos e de inserção social, quer seja motiva­da por puro comodismo, quer resulte de um verdadeiro estado depressivo da mãe, quer vise apenas, por exemplo, selar a destruição das relações com o outro progenitor”.

 

Entendo que a garantia da inviolabilidade da vida hu­mana, incluindo a vida intra-uterina, pode ter de ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, se se verificar em concreto a presença de um motivo constitucionalmente relevante para a realização da interrupção voluntária da gravidez, pois “aquela ga­rantia há-de ter, pelo menos, o conteúdo de tutelar o bem em causa contra a liberdade da mulher de prática de ‘aborto a pedido’, sem invocação de qualquer motivo e, em princípio, com indiferença deste para a ordem jurídi­ca” — tendo igualmente por inconstitucional a solução de total liberdade da mãe quanto ao «destino» de uma vida humana que iniciou o seu percurso, v., entre outros, Maria Conceição Ferreira da Cunha, Constituição e cri­me, Porto, 1995, p. 386; no mesmo sentido Rabindranath Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade, Co­imbra, 1995, p. 166, n. 241, e, com uma análise comparatís­tica das soluções vigentes em vários sistemas europeus, João Loureiro, “Aborto: algumas questões jurí­dico-constitucionais (A propósito de uma reforma legisla­tiva)”, in Boletim da Faculdade de Direito, vol. 74, Co­imbra, 1998, pp. 327-403 — Ou seja, entendo que o dever de protecção da vida humana intra-uterina, que a Consti­tuição impõe, não pode deixar de ter como conteúdo mí­nimo a protecção contra a liberdade de pôr termo a esta vida intra-uterina, sem invocação de razões. Assim, con­sidero que o direito à liberdade da mulher, bem como o direito ao “livre desenvolvimento da personalidade” — direito que, aliás, se refere aqui apenas a um dos proge­nitores, e, onde, como se sabe, no limite tudo poderia caber (cf. Paulo Mota Pinto, “O direito ao livre desenvolvimen­to da personalidade”, in Portugal-Brasil — ano 2000, Stvdia Ivridica, 40, Coimbra, 2000, pp. 149-246) — não são suficientes para fundamentar a desprotecção da vida pré--natal, mesmo nas primeiras dez semanas, se não forem reforçados com a presença de uma indicação no caso concreto. E isto, não curando sequer de saber qual o tipo de indicação que seria constitucionalmente relevante ou a quem deve competir avaliá-la — pressuposto apenas que não basta a mera opção da mãe, desvinculada de qualquer controlo exterior.

 

Não encontro, nem no Acórdão n.º 288/98, nem na pre­sente decisão, razões que afastem a relevância constitu­cional da “indiferença dos motivos” (a consideração de que, em nome da liberdade de um dos progenitores, qual­quer motivo serve) para destruir um bem constitucional­mente tutelado. Em particular, é claro que a referência ao prazo das primeiras dez semanas (n.º 31 da decisão) ape­nas pode, na própria lógica de compatibilização com a protecção da vida intra-uterina, seguida pelos acórdãos de que dissenti, servir para delimitar o momento antes do qual não existe qualquer protecção. não existem argu­mentos para fundamentar a menor ponderação em termos de “concordância prática”, justamente até às primeiras dez semanas, da vida intra-uterina que se reconhece tutelada na Constituição, sendo evidente que mesmo tal restrição a um prazo inicial da gravidez conduz ao sacrifício total, pela interrupção da gravidez, do bem protegido.

 

Noto, aliás, que o presente aresto se recusou a consi­derar concretamente quaisquer elementos científicos, como os emergentes da chamadarevolução ecográfica”, relati­vos à caracterização do feto nas suas diversas fases de desenvolvimento, afastando-os apenas com a fundamen­tação, a meu ver extremamente insuficiente, de quenão dão, em si mesmos, solução aos conflitos de valores”, e resumindo o “valor conflituante”, no presente caso, à “li­berdade da mulher grávida”, ou ao “livre desenvolvimen­to da personalidade”. Ora, a “concordância prática” exige, como se sabe, o cumprimento de um ónus de argumenta­ção jurídica dirigido a fundamentar o tipo de concordân­cia a que se chega, sob pena de se esgotar numa merafórmula vazia” (no sentido de ligar a estrutura da ponde­ração a fazer para a concordância prática de direitos fun­damentais a uma teoria da argumentação jurídica que re­mete para uma teoria da argumentação prática em geral, v. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Frankfurt, 1985, p. 154).

 

O referido ónus de argumentação não é, por outro lado, cumprido com a consideração genérica, que ecoa mais do que uma vez no presente aresto (n.º 16 e 36), de que, sen­do a questão em causa discutida, e objecto de divisões profundas na sociedade, é de admitir (mesmo no plano constitucional) resolvê-la devolvendo a decisão ao voto directo do povo soberano. Independentemente de outras considerações que possa merecer este argumento (o pró­prio Ronald Dworkin, Life’s Dominion. An Argument About Abortion, Euthanasia and Individual Freedom, 1993, pp. 154-159, citado no Acórdão, conclui, aliás, o tratamen­to da relevância da coerção na matéria da interrupção da gravidez no sentido de que, se a questão for a de saber se o Estado pode impor quer a proibição dessa interrup­ção, “o facto de a escolha ser aprovada pela maioria não é melhor justificação num caso do que no outro”), deve notar-se que ele não pode ser relevante para o controlo da constitucionalidade de uma pergunta referendária. Na verdade, o parâmetro de constitucionalidade ou a intensi dade do respectivo controlo não variam entre o controlo da constitucionalidade da pergunta no referendo ou de uma norma jurídica aprovada pelo parlamento (por exemplo, um diploma aprovado na sequência do referendo), o que, além do mais, se torna evidente logo que se pensa, por exem­plo, em que para o resultado do referendo não releva apenas uma maioria constituinte (a Constituição proíbe, aliás, o referendo sobre alterações à Constituição), mas logo maioria simples.

 

Não pode, também, merecer o meu acordo a fundamen­tação que remete para a harmonização entre a vida intra--uterina, por um lado, e garantia de uma maternidade cons­ciente, por outro, e, em termos de conduzir ao sacrifício geral desta durante as primeiras dez semanas. Com efeito, subjacente “à afirmação da licitude da interrupção volun­tária da gravidez com base na garantia de uma maternida­de consciente parece-me estar uma visão do aborto como meio de contracepção, ou, mesmo, de planeamento fami­liar, que não considero constitucionalmente admissível (a garantia da maternidade consciente é, aliás, prevista na Constituição a par do direito ao planeamento familiar). E mesmo que se considerasse que a garantia da maternida­de consciente tem uma dimensão subjectiva que vai além do planeamento familiar, podendo incluir o aborto, não vejo o que poderia este argumento acrescentar à invocação do direito à liberdade, em termos de prevalecer em geral, du­rante as primeiras dez semanas, sobre a garantia da vida intra-uterina, a qual, como condição de base de todos os outros direitos, assume uma posição-chave”.

Consideraria, assim, a resposta afirmativa à pergunta — na medida em que conduz à despenalização da interrup­ção voluntária da gravidez por opção da mulher, e, por­tanto, com irrelevância dos motivos invocados para pôr termo à gravidezcomo inconstitucional, por violar o princípio da “proibição da insuficiência”, quanto à protec­ção da vida pré-natal (o “Unterma?verbot” — v., entre nós, José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucio­nal e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, 2003, p. 273), isto é, o “défice” de tutela de um bem cuja pro­tecção é constitucionalmente assegurada (sem que esta ga­rantia seja afastada pela proposta compatibilização com outros interesses constitucionalmente protegidos). Isto, uma vez que, por outro lado, não se divisam outros meios a que o legislador possa recorrer para proteger esse bem, afirmando a sua dignidade ética para a comunidade jurídi­ca, e que a protecção penal é, apesar de tudo, a única que se pode revestir de alguma eficácia jurídica (e notando igualmente que a questão submetida a apreciação não contende directamente com a da punibilidade do aborto clandestino, não sendo sequer líquido que uma resposta positiva viesse a contribuir para a diminuição deste, ou, muito menos, para a diminuição geral do número de abor­tos).

 

4 — Por último, e ainda a propósito da alínea i) do n.º 1 da decisão, discordei também da fundamentação empre­gue para justificar a não inconstitucionalidade de uma resposta negativa. O presente aresto inova aqui em rela­ção ao Acórdão n.º 288/98 — Mas a inovação, com uma pronúnciaincidental sobre o regime vigente, passa, a meu ver, ao lado do objecto de cognição do Tribunal no presente processo — a constitucionalidade da pergunta referendária — e é mesmo contraditória com o sentido que se atribui ao controlo pelo Tribunal, a propósito da res­posta positiva.

 

Com efeito, desde o Acórdão n.º 288/98 se entendeu que ao Tribunal não cabe, a propósito do controlo da constitucionalidade de uma pergunta de um referendo destinado a propor uma alteração do regime vigente, pro­nunciar-se sobre o concreto regime jurídico, em vigor ou que viesse provavelmente a ser aprovado. Antes lhe cabe apenas apreciar se uma das respostas à pergunta, ou eventualmente as duas, implicam necessariamente uma solução inconstitucionalimplicação necessária, esta, avaliada, naturalmente, em relação aos efeitos do referen­do, com os correspondentes deveres de agir ou de não agir da Assembleia da República delimitados pelo teor da pergunta a que se respondeu (cf., falando de acto legisla­tivo correspondente às perguntas objecto de resposta, ou de acto “de sentido correspondente”, os artigos 241.º e 243.º da Lei n.º 15-A/98, de 3 de Abril). Justamente por isso se afirmou no Acórdão n.º 288/98 que podem existir ou­tros elementos (como a exigência de um aconselhamento da mulher) que, não constando da pergunta, poderiam, porém, vir a ser previstos na legislação aprovada na sua sequência (n.º 52).

 

Uma resposta negativa apenas impede, pois, o legisla­dor de alterar o regime vigente no sentido corresponden­te à pergunta. E aplicado a tal resposta, o critério para a sua inconstitucionalidade — repete-se: o da implicação necessária de uma solução inconstitucional — significa que a resposta negativa seria inconstitucional se existisse uma imposição constitucional de alteração do regime vi­gente justamente no sentido previsto na pergunta, isto é, se a única alteração constitucionalmente aceitável fosse a correspondente ao sentido da pergunta. outras altera­ções (tal como os outros elementos que poderiam ser pre­vistos em caso de resposta positiva) não seriam abrangi­das pelo efeito do referendo. Resulta daqui, com toda a linearidade, que o Tribunal, a entender tratar desenvolvi­damente da questão de saber se a resposta negativa im­plicava necessariamente uma solução inconstitucionaldiversamente do Acórdão n.º 288/98, que se limitou a re­meter o problema da manutenção da incriminação para a liberdade de conformação do legislador (não deixando, a este propósito, de responder àquela questão) —, haveria de ter apurado se o legislador estava constitucionalmen­te vinculado a alterar o regime vigente justamente no sentido correspondente à resposta positiva.

 

Não foi, porém, assim que o presente Acórdão enten­deu dever abordar a questão, antes se pronunciando (n.º 35) sobre o regime vigente — com considerações re­lativas ao “sistema vigente” ou a uma “solução mais abrangente no sentido da exclusão da responsabilidade” (itálico aditado). Tais considerações não tinham, a meu ver, lugar no contexto do presente Acórdão, mesmo que fos­sem movidas pelo intuito de atalhar a qualquer alteração do regime vigente num sentido mais restritivoàquilo que (destoando numa decisão judicial que, além do mais, tem de pronunciar-se sobre a objectividade da pergunta referendária) o Acórdão qualifica, noutro passo (n.º 5), como umretrocesso” num sentido criminalizador. Pois tal alteração nunca esteve em causa nem pode ser “implica­ção necessária” de qualquer uma das respostas à pergun­ta. — Paulo Mota Pinto.

 

 

1 — Votei vencido quanto à decisão constante da alí­nea e), na parte em que, , se julga que a pergunta for­mulada na proposta de referendo satisfaz os requisitos da

objectividade e da clareza; votei com dúvidas a decisão constante da alínea g) e votei vencido quanto à decisão constante da alínea i), na parte em que se considera que a resposta afirmativa à pergunta formulada não impli­ca necessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição, todas as alíneas do ponto 38 do acórdão.

 

Tal posição fundamenta-se nas razões que passo, su­cintamente, a expor.

 

2 — Antes de as dar a conhecer, não posso, porém, deixar passar em branco a convocação feita no Acórdão [Parte II, ponto 9, epigrafada de “Enquadramento actual da questão objecto da proposta de referendo”] à cultura bíblica enquanto razão tida como susceptível de concitar dúvidas, no plano da racionalidade, sobre “a perspectiva doutrinária de que o crime reclama sempre a punição e não outra forma de superação”, por, ali, “o mal do pecadoque é a separação de Deus — é [ser] superado pelo per­dão e pela graça”.

 

Na verdade, tal abordagem apresenta-se efectuada não em termos ambíguos, como não consegue afastar, igual­mente, a suspeita de que a sua referência poderá ser vis­ta como estando, subliminar e utilitariamente, funcionali­zada para gerar alguma aceitação da doutrina do acórdão por parte de alguns sectores sociais que seguem, ou es­tão próximos de tal cultura, como regra de conduta da sua vida.

 

Omite-se ou ignora-se, porém, que, na doutrina bíblica, não tem qualquer pertinência, no plano da racionalidade, a afirmação da existência de qualquer relação ou sequer conexão, em termos de simples correspondência, e muito menos em termos de equivalência, entre crime e pena. Estes são conceitos que, nesse domínio, são totalmente imprestáveis. No plano de relação entre o Homem e Deus nãolugar para a existência das figuras de crime e de punição.

 

Segundo a doutrina bíblica, Deus é, em Si próprio, Amor e Vida. Por mor do acto de criação, Deus estabelece com o Homem uma relação pessoal de Amor. O pecado con­siste, assim, em um corte, voluntário e consciente, do Homem com a fonte da sua Vida e de Amor que apenas acontece quando aquele repudia, consciente e voluntaria­mente, a vontade manifestada de Deus. O mal do pecado traduz-se, pois, assim, no “sentimentoouefeito” de privação ou de falta que a pessoa criada, por puro acto de Amor, tem relativamente ao seu Criador, por se ter por abandonada quando, de acordo com o seu acto de cria­ção, continua a “ansiarpor Ele. A restauração da rela­ção pessoal de Amor entre o Homem e Deus representa o fim desse “sofrimento”, resultando de puro acto de mise­ricórdia, próprio do Amor do Criador, em face do acto de arrependimento da pessoa criada, traduzido na sua recon­ciliação com o Criador.

 

Não tem, pois, qualquer sentido ou utilidade a descon­textualizada convocação da doutrina bíblica para o thema decidendum. Ao invés, o que resulta dessa doutrina é que, correspondendo a vida a um acto pessoal do Amor de Deus, não deverá o Homem negar a sua contínua revela­ção real, no devir do tempo e dos tempos.

 

3 — Segundo penso, a pergunta formulada aos eleito­res não é clara e objectiva.

Note-se que se trata de exigências constitucionais (ar­tigo 115.º, n.º 6) e não de requisitos conformados pelo legislador ordinário (artigo 7.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo).

 

 

Como tal, o sentido que se lhes deve conferir, tem de ser, no meu ponto de vista, um sentido que se conjugue, com a máxima expansividade de protecção, decorrente da sua natureza de direitos e garantias fundamentais (arti­go 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa — CRP) com o princípio democrático do direito à participa­ção política e do direito ao sufrágio e ao respectivo exer­cício (artigo 48.º e 49.º da CRP).

 

Sendo assim, a pergunta há-de poder ser entendida, em toda a sua extensão, quanto ao seu conteúdo e projecção da resposta, por quem, nos termos constitucionais e le­gais, poderá ser eleitor.

Deste modo, não pode o grau de exigência desligar-se do universo real que constitui esse colégio eleitoral.

 

Assim, suscitam-se-nos ponderadas dúvidas sobre a clareza da pergunta na medida em que tal qual a pergunta é feita, esta supõe que o eleitor, para poder fazer um juízo ponderativo-decisório, conheça qual o regime vigente quan­to à penalização da interrupção voluntária de gravidez e, nomeadamente, as suas actuais causas de desculpabiliza­ção e de justificação.

 

Ora, parte relevante dos eleitores não será detentora de tais conhecimentos.

Além de que, a pergunta faz apelo a conceitos de ma­triz técnico -jurídica, como sejam os de “despenalização da interrupção voluntária da gravidez”, “por opção da mu­lher”, cuja inteligibilidade escapa a grande parte do colé­gio eleitoral, bem podendo, por isso, gerar a dúvida aos eleitores sobre se eles não estão assumidos na proposta em sentido diferente daquele pelo qual essa realidade empírica é expressada comummente, em linguagem vulgar, mas que é a seguida, normalmente, na comunicação polí­tica: aborto e completa liberalização dentro das 10 primei­ras semanas, desde que a mulher o queira e o mesmo seja efectuado em estabelecimento de saúde legalmente auto­rizado.

 

Para além disso, a utilização da expressão “estabeleci­mento de saúde legalmente autorizado” é, também, equí­voca, pois permite tanto uma acepção de estabelecimento de saúde (público ou privado), autorizado, apenas, para a prática do aborto nas condições propostas, como a de estabelecimento (público ou privado) autorizado, de pres­tação de serviços de saúde (pública), que pode praticar, igualmente, esses e outros actos abortivos, cuja prática não é punida no regime vigente.

 

E, do mesmo passo, a pergunta não é objectiva nem neutra no que importa à sua intencionalidade.

Na verdade, a referência a “estabelecimento de saúde legalmente autorizado”, para a prática da interrupção vo­luntária de gravidez, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez, deixa entender que a condição apenas existirá no caso prevalecer a resposta positiva, dado esse acto, nas condições propostas, não ser hoje autorizado em qualquer estabelecimento de saúde, predis­pondo por isso a uma tal resposta para que a condição seja possível.

 

Por outro lado, a previsão de que o aborto, por sim­ples opção da mulher, dentro do prazo assinalado, será efectuado em estabelecimento de saúde legalmente auto­rizado sugere uma ideia de completa inexistência de quais­quer outros valores constitucionais ou legais que tenham de entrar em confronto com a opção da mulher, ou seja, uma ideia de completa liberalização do aborto, desde que realizado dentro do prazo das 10 semanas e em estabele­cimento de saúde autorizado.

 

4 — Votei, ainda, com dúvidas quanto à questão do universo subjectivo eleitoral.

Não tendo, todavia, chegado a um juízo de não confor­midade constitucional, outra solução não poderia aceitar que a da aplicabilidade do princípio da presunção de cons­titucionalidade.

Diz o n.º 12 do artigo 115.º da CRP quenos referen­dos são chamados a participar cidadãos residentes no estrangeiro, regularmente recenseados ao abrigo do dis­posto no n. º 2 do artigo 121. º, quando recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito”.

 

Na verdade, se é certo que, na aplicação da lei penal, vigora o princípio da territorialidade (artigo 4.º do Código Penal) e que os cidadãos portugueses residentes no es­trangeiro não estão, em regra, sujeitos à aplicação da lei penal, salvo nas condições limitadas do artigo 5.º, n.º 1, alí­nea c), do mesmo código, argumentos estes que apontam para a solução da não inconstitucionalidade do universo eleitoral adoptado, também não o deixa de ser que a ques­tão pode ser vista fora do enfoque, apenas, da conexão com o direito penal, podendo argumentar-se que, estando em causa uma alteração tão profunda ao sistema de valo­res jurídicos do direito pátrio, essa alteração não é de todo indiferente à situação dos portugueses residentes no es­trangeiro, enquanto cidadãos que tendem a reger a sua vida por esses valores e esse direito e deles dão expres­são nos locais onde vivem. Neste aspecto, estar-se-ia perantematéria que lhes diria [diz] também especifica­mente respeito”.

 

Tal solução seria postulada, de resto, pela mesma lógi­ca substancial que justifica a participação dos portugue­ses residentes no estrangeiro nas eleições para o cargo de Presidente da República, podendo encontrar-se em tal circunstância a coincidência de universo eleitoral estabe­lecida no referido n.º 12 do artigo 115.º da CRP. A partici­pação dos portugueses, nestas eleições, também se expli­ca pelo facto de estar em causa a instituição representativa do povo português e dos valores constitucionais que sedimentou na sua Constituição. Subsistem-me, porém, dúvidas sobre se a Assembleia da República não goza de discricionariedade normativo-constitutiva, relativamente às situações em que a matéria objecto do referendo não diga directamente respeito aos portugueses residentes no es­trangeiro enquanto tal, como é o caso.

 

5.1 — Finalmente, votei vencido quanto à decisão cons­tante da alínea i) do ponto 38 do acórdão, na parte em que se considera que a resposta afirmativa à pergunta formulada não implica necessariamente uma solução jurí­dica incompatível com a Constituição.

 

Não irei expor longamente os fundamentos jurídico--constitucionais com base nos quais se considera que a vida humana uterina tem consagração e protecção consti­tucionais nos termos do artigo 24.º, n.º 1, da nossa Lei fundamental. E não o farei, exactamente, porque, quer o Acórdão n.º 288/98, ao qual constantemente se arrimou, de modo inequívoco, quer o presente Acórdão não dei­xam de pressupor, ainda que, neste, de forma não tão impressiva, que a vida uterina tem protecção constitucio­nal, correspondendo a um direito ou garantia fundamen­tais. Depois, porque acompanho, no essencial, os votos apostos àquele Acórdão n.º 288/98 pelos senhores conse­lheiros que votaram vencido e que aqui se recuperam.

 

Nesse ponto — e com naturais reflexos, como não po­derá deixar de ser quanto à solução desta questão — a nossa discordância com o acórdão reside, essencialmen­te, na intensidade de protecção jurídico-constitucional que se entende derivar de tal preceito, quer no que importa à dúvida, nele concitada, sobre a titularização/subjectivação do direito à vida humana no artigo 24.º, n.º 1 da CRP, quer na resposta a dar quando esse direito ou garantia funda­mentais entrem em conflito com outros direitos da mulher, mormente, a agora designada “liberdade de manter um projecto de vida” “como expressão do livre desenvolvi­mento da personalidade”.

 

Não obstante isso — e com referência à metodologia seguidanão é de passar em branco que o acórdão, ansiando, porventura, acentuar os argumentos que, na sua óptica, abonarão a favor da não inconstitucionalidade de uma solução jurídica perspectivada na senda de uma res­posta afirmativa ao referendo, discorre, essencialmente, sobre um diálogo de ponderação entre os direitos funda­mentais, susceptíveis de entrarem em conflito, a partir de uma “configuração mais radical” do âmbito da protecção da vida humana, como se a solução passasse, no caso concreto, por essa linha de protecção, esbatendo a exis­tência, no direito vigente, de causas de desculpabilização e de justificação que dão expressão, num plano autóno­mo e exterior, às exigências demandadas, no caso, por um juízo ponderativo de concordância prática entre os direi­tos tidos como estando em conflito.

 

Ao contrário do suposto como elemento de argumen­tação, não se afirma, nem se viu alguma vez defendido na ciência jurídica, que, tendo por referência a vida pré-natal e pós-natal, “tenha de existir uma protecção penal idênti­ca em todas as fases da vida”, como postulado ou decor­rência da inviolabilidade da vida humana ou que haja “uma argumentação a favor da inconstitucionalidade [da respos­ta afirmativa ao referendo] que nivele a vida em todos os seus estádios”.

 

Tal princípio constitucional não demanda que a protec­ção penal da vida humana tenha de ser idêntica, em in­tensidade, em todo o continuum da vida e em todas as circunstâncias de facto.

 

O que o princípio da inviolabilidade da vida humana reclama é que a violação do direito à vida (uterina e pós--uterina) tenha, sempre, protecção penal, valendo, dentro dos diferentes níveis dessa protecção, os princípios ge­rais de direito criminal, de matriz, igualmente, constitucio­nal, da justificação do facto, da culpa e do estado de necessidade.

 

Assim, não está o legislador ordinário impedido, em geral, de conformar diferentes níveis de protecção crimi­nal, expressos, maxime, no recorte do facto ilícito típico e da pena, para os diferentes momentos e circunstâncias do continuum em que se desenvolve a vida humana, diferen­ciando, dentro dele, a vida intra-uterina da pós-uterina. O que a Constituição reclama é que, salvo a existência de causas de desculpabilização ou de justificação, a vida seja penalmente protegida.

 

Em segundo lugar, o argumento de que não existe “uma linha de inflexível necessidade lógica”, como afirma o acór­dão, entre a definição da inviolabilidade da vida humana e a intervenção penal, “nomeadamente pela interferência de perspectivas de justificação, de desculpa ou ainda de afastamento da responsabilidade devido “à necessidade da pena assenta sobre uma patente incongruência lógica, dado que as dimensões alegadas para afastar a interven­ção penal são institutos que pressupõem, necessaria­mente, a existência dessa protecção penal.

 

Em terceiro lugar, a convocação do entendimento se­guido no referido Parecer do Conselho Consultivo da Pro­curadoria-Geral da República, segundo o qual na mente dos constituintes do artigo 24.º, n.º 1, da CRP não caberia a protecção da vida uterina teria sentido para quemposição que parece não ser, de modo assumido, a do acór­dão e não é, seguramente, a do Ac. 288/98, em que cons­tantemente se abona, nem dos votos de vencido a eles apostos — seguisse uma tese radical de exclusão do âm­bito de protecção conferida por tal artigo da vida intra--uterina.

 

5.2 — Sendo, assim, admitido como está, pelo acórdão e por todos os vencidos, que a vida humana intra-uterina goza de protecção constitucional, o que importa saber, é se, a operação de concordância prática dos direitos e valores constitucionalmente relevantes, presentes no caso, que o acórdão levou a cabo se apresenta efectuada com respeito pelo princípio constitucional que emerge do arti­go 18.º, n.os 2 e 3 da CRP.

 

Por nós, temos por seguro que não. E firmamos esse juízo, essencialmente, nas seguintes considerações.

Desde logo, porque não deixa de impressionar-nos que o acórdão perspective a tutela de inviolabilidade da vida humana, estabelecida no artigo 24.º, n.º 1, da CRP, desli­gada do ser que constitua o seu titular, acabando por re­duzir, subliminarmente, segundo uma óptica radical que tanto critica, o seu âmbito de protecção apenas aos fetos com mais de 10 semanas de gestação e às pessoas nasci­das.

 

Ora, não vemos, como melhor se verá adiante, que te­nha sentido falar-se de inviolabilidade da vida humana sem ser por referência ao ser que dela seja titular, seja este ser uma pessoa ou apenas um ser a caminho de ser pessoa (cf. Laura Palazzani, Il concetto di persona tra bioetica e diritto, Torino, 1996; A. M. Almeida Costa, “Abortamen­to provocado”, in Bioética, AA. VV. Coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia e Walter Osswald, Lisboa, 1996, pp. 201 e segs., e João Carlos Loureiro, “Estatuto do Em­brião”, in Novos Desafios à Bioética, AA. VV., coordena­da por Luís Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald e Mi­chel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs).

 

Do mesmo passo, não se compreende que se erija a essencial fundamento da tutela constitucional devida ao embrião/feto o princípio constitucional da dignidade hu­mana, quando este princípio supõe, precisamente, a exis­tência de um ser dotado de vida humana e o preceito do artigo 24.º, n.º 1, da CRP não não aponta em qual­quer sentido restritivo, como corresponderia a uma so­lução contrária ao princípio da “máxima efectividade e expansividade” dos direitos e garantias fundamentais, constantemente, invocado para justificar a inclusão nos direitos fundamentais de realidades que suscitam algu­ma dúvida.

 

Por outro lado, o acórdão não realizou qualquer juízo de concordância prática entre os dois valores ou direitos constitucionais, tidos como estando em conflito: o direito do ser, “embrião/feto humanos”, a nascer e a “liberdade da mulher a manter um projecto de vida, como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade”. E não efectuou, porque, pura e simplesmente, para fazer preva­lecer este último, rejeita a titularização, no âmbito do artigo 24.º, n.º 1, da CRP (subjectivação constitucional), do direito à vida humana e, decorrentemente, do conteúdo es­sencial do direito do feto a nascer, admitindo a possibili­dade de, sem censura penal, lhe tirar a vida humana.

 

De qualquer modo, pressuposta, como se defende na doutrina e jurisprudência constitucionais, a inexistência de hierarquia entre direitos constitucionais, precisamente com base na identidade da sua fonte, nunca a colisão de direi­tos constitucionais poderá ser resolvida, pelo legislador ordinário, com base num critério normativo de prevalência da liberdade da mulher a manter um projecto de vida à custa da morte do feto, titular constitucional de vida humana e da respectiva dignidade.

 

A operação de concordância prática entre direitos cons­titucionais, posicionados como estando em conflito, de­manda a realização de um juízo de ponderação (legislativa ou judicial) que satisfação ao princípio constitucional da máxima efectividade de protecção dos direitos e ga­rantias fundamentais.

Tal equivale por dizer que esse juízo deve efectuar-se de modo a tentar obter uma optimização do âmbito de eficácia da protecção constitucional conferida a tais direi­tos e que nunca poderá chegar a um resultado de elimi­nação de um deles em favor do outro, pois, neste caso, está-se, radicalmente, a eliminar o conteúdo essencial do preceito constitucional que reconhece a inviolabilidade da vida humana, na sua expressão de direito do titular da vida humana uterina a nascer e a violar-se frontalmente o dis­posto na parte final do artigo 18.º, n.º 3, da CRP.

 

[E a solução não varia se se fizer radicar, segundo a lógica dubitativa que o acórdão admite, a tutela constitu­cional do titular embrião/feto no princípio da dignidade de vida humanalógica essa, diga-se, incongruente, se referida à dignidade do embrião/feto, por essa dignidade da vida humana supor a existência da vida humana e de um seu titular, ou, então, contraditória, se a alegada dig­nidade disser respeito à mulher grávida, por, nesse caso, inexistir a perspectivada situação de colisão de direitos]. Por outro lado, o juízo de concordância prática não pode deixar de ter presente a estrutura e natureza dos concre­tos direitos ou garantias constitucionais, que se apresen­tam como estando em conflito, mormente para avaliação dos resultados sob a óptica do princípio da proporciona­lidade, na sua dimensão de justa medida, ao qual deve obediência.

 

Ora, nesta sede, não deve desconhecer-se que estão em causa direitos ou garantias constitucionais em concreto, radicados em diferentes titulares constitucionais: de um lado, a liberdade da mulher grávida a manter um projecto de vida e do outro o direito do concreto embrião/feto a nascer, em cada situação de gravidez. Cada situação de gravidez gera uma situação de existência de um concreto titular do direito à vida humana a nascer.

 

Nesta perspectiva, cabe acentuar que a Constituição, sempre que quer conferir uma especial intencionalidade protectora ou eficácia do âmbito de protecção constitu­cional a certos direitos ou garantias constitucionais, usa expressões reveladoras desse significado, como o adjecti­vo “inviolávelou expressões de exclusão como “nin­guém”, “quaisquer”, etc. (cf., por exemplo, quanto ao pri­meiro caso, os artigos 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1 e 34.º, n.º 1, e, quanto ao segundo caso, os artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, e, a ambas as situações, o artigo 13.º, n.º 2).

 

O direito à vida humana é protegido pela Constituição (artigo 24.º, n.º 1) como direito inviolável. O vocábulo “in­violável” poderá significar que se trata de um direito que não poderá ser violado em caso algum, mesmo pelo Estado legislador. Nesta óptica, apenas, se conceberão causas de exclusão que consubstanciem, perante a Cons­tituição, situações de não violação, como sejam as cau­sas constitucionais de desculpabilização ou de justifica­ção.

 

Trata-se, deste modo, de um direito ou garantia consti­tucional que se encontra dotado de uma especial força de tutela constitucional. E bem se compreende que o seja, porquanto se trata de um direito fundante de todos os outros, de um direito que é pressuposto necessário de todos os outros, pois sem titulares de vida humana não poderá falar-se em dignidade humana ou sequer constituir--se comunidade organizada em Estado de direito democrá­tico.

 

Ao contrário, o direito ou garantia fundamental que se apresenta em colisão com ele — a liberdade da mulher a manter um projecto de vida como expressão do livre de­senvolvimento da sua personalidadenão se apresenta dotado constitucionalmente de uma tal força excludente de lesão.

 

Na verdade, essa liberdade é não a liberdade a que se refere o artigo 27.º, n.º 2, da CRP, a liberdade física ou li­berdade de “ir e vir” — essa sim dotada de tal força ex­cludente — mas sim uma específica dimensão do princípio do desenvolvimento da personalidade, consagrado no ar­tigo 26.º, n.º 1.

Assim sendo. Existente um direito à vida humana titu­larizado no ser resultante da partogénese celular, ser esse diferente, não biológica e geneticamente (cf. Fernando J. Regateiro, Manual de Genética Médica, Coimbra, 2003, pp. 310 a 312 e Fernando Regateiro, “Doenças Genéticas”, in Comissão de Ética — Das Bases Teóricas à Activida­de Quotidiana, AA. VV. Coordenada por Maria do Céu Patrão Neves, 2.ª edição, Coimbra, 2002, pp. 351 e 352), como também constitucionalmente (cf., entre outros, João Carlos Loureiro, “Estatuto do Embrião”, in Novos Desa­fios à Bioética, AA. VV., coordenada por Luís Archer, Jor­ge Biscaia, Walter Osswald e Michel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs., e A. M. Almeida Costa, op. cit., pp. 210 e segs.), do ser da sua mãe ou mulher grávida — seja ele uma pessoa ou não, mesmo numa acepção constitucio­nal — e podendo ele estar em colisão com o direito a manter um projecto de vida como expressão do livre de­senvolvimento da sua personalidade, titularizado na mu­lher grávida, não pode deixar, numa ponderação de con­cordância prática dos valores constitucionais, de adoptar-se, do ponto de vista da sua estrutura e natureza constitucional, uma solução que não acarrete o sacrifício do titular da vida humana.

 

Anote-se, de resto, que o (implícito) reconhecimen­to de uma alteridade de titularidade constitucional do ser embrião/feto em relação à sua mãe é que justifica que o próprio acórdão, na esteira, aliás, do de 1998, procure in­tentar uma demonstração de existência de concordância prática entre o direito titularizado da mulher grávida e o direito respeitante ao embrião/feto.

 

O aborto importa a morte do concreto titular da vida humana, do concreto embrião/feto. Com ele extingue-se o direito de se desenvolver no seio materno (e de mais tar­de nascer), de acordo com a informação codificada no DNA, a vida humana do concreto feto advindo do espe­cífico ovo ou zigoto, este, por sua vez, resultante da fe­cundação do concreto ovócito pelo concreto espermato­zóide. O ser irrepetível advindo da partogénese celular deixa de existir, saindo violado, por completo, o seu direi­to à vida humana.

 

Pelo contrário, o prosseguimento da vida uterina não extingue a liberdade da mulher a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade, mas tão , quando muito, a obriga a que adapte, para o futuro, o seu projecto de vida às novas circunstâncias, tal qual pode acontecer por for­ça de muitas outras circunstâncias possíveis naturalis­ticamente, como, por exemplo, a doença, o desemprego, acidentes, etc.

 

Ela continua a ser titular de um direito pessoal ao livre desenvolvimento, de o poder exercer e manifestar, repeti­damente, em todas as outras condições da sua vida. Se­guindo a lógica do acórdão, a mulher grávida manterá a sua liberdade de desenvolver o seu projecto de vida quan­tas as vezes que optar pela interrupção da gravidez. Po­rém, em todas essas vezes, ocorrerá a extinção do direito à vida humana de um concreto titular — o concreto feto em gestação.

 

Nesta linha de pensamento, há-de convir-se que a in­terrupção voluntária de gravidez, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez, assume tão a natu­reza de um simples meio de contracepção ou mesmo de planeamento familiar cuja determinação do concreto con­teúdo corresponde a um direito absoluto da mulher grávi­da, fazendo irrelevar, para o concreto embrião/feto, qual­quer protecção constitucional do seu direito à vida humana, consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da CRP.

 

Ou seja, a concepção do acórdão assenta numa ideia de completa liberalização do aborto, condicionando-o a condições que visam apenas acautelar o aspecto de saú­de da mulher abortanda e não em qualquer ideia de que deve ser efectuada uma ponderação de direitos ou valo­res: contra a vontade, de livre opção, da mulher de abor­tar, nas primeiras 10 semanas de gravidez, em estabeleci­mento de saúde legalmente autorizado, nada (absoluto) se pode opor.

 

Trata-se, por outro lado, de uma solução cuja admissi­bilidade não vemos como possa ser acolhida pelo princí­pio constitucional da proporcionalidade, na sua acepção de justa medida. Essa desproporcionalidade torna-se pa­tente não quando abandona, por inteiro, a natureza do direito que está em colisão com o direito da mulher grávi­da, permitindo o seu sacrifício, de plano, nas primeiras 10 semanas, como quando a valoração acaba por ficar depen­dente apenas da decorrência de simples prazos de gesta­ção, e da aleatoriedade decisória que, durante eles, pode­rá ser feita, livremente, pela mulher grávida, podendo ser levada a cabo, sem censura penal, num limite em que o feto tem até forma humana (desde as 8 semanas) (cf. Fernando J. Regateiro, Manual de Genética Médica, Co­imbra, 2003, pp. 310 a 312).

 

Como se verifica dos seus termos, o acórdão invoca a realização de uma concordância prática dos direitos em questão no plano abstracto, indicando até, nesse sentido, a existência de vários regimes de protecção da maternida­de, que identifica.

 

Todavia, a primeira objecção que poderá fazer-se a pro­pósito de tal atitude é que, posta a questão em termos abstractos (plano do conteúdo/extensão do direito objec­tivo à vida humana), no plano de constitucionalidade, caberia ao próprio legislador constitucional resolvê-la e não ao legislador ordinário, mormente no que toca ao conteú­do essencial do direito, que é aquele que é tocado pelo aborto.

 

E não se esgrima, contra esta posição, como está pres­suposto pelo acórdão, para justificar a existência de um juízo ponderativo de concordância prática, que tal ope­ração permite enquadrar constitucionalmente as causas de desculpabilização e de justificação da interrupção volun­tária de gravidez existentes na lei em vigor, pois estas, apenas, correspondem a concretizações, relativamente aos concretos direitos constitucionais que estão em causa, de princípios constitucionais autónomos, que valem para todo o direito criminal — as causas de justificação e de des­culpabilização.

 

Depois a tese do acórdão sofre de um verdadeiro ilo­gismo: é que os direitos cuja existência alega, apenas, constituirão direitos para quem tiver a sorte de não ser abortado. A sua eficácia depende da existência de titula­res de direito à vida humana que tenham nascido.

 

A vida humana não existe sem um titular e não é pos­sível falar-se de violação, que o preceito constitucional proíbe, sem ser relativamente à posição jurídica de quem se encontre investido na titularidade de um direito.

 

De contrário, o que está em causa é, ainda, a definição do conteúdo constitucional desse direito, dos seus con­tornos, do seu conteúdo essencial, no mínimo. E, a ser assim, tal domínio não cabe nos poderes do legislador ordinário, mas nos do constitucional.

 

Essa é, também, a razão pela qual repudiamos a tese, admitida no acórdão (pontos 7 a 10), sobre a admissibi­lidade de uma dúvida interpretativa sobre a solução, em abstracto, no plano da constitucionalidade, de um con­flito de valores ou direitos constitucionais, como a que está, em causa, na proposta de referendo, poder ser de­volvida ao eleitorado, através de mecanismos como o referendo e não de eleições em que possam ser assumi­dos poderes constituintes por parte da Assembleia da República.

 

É que o voto expresso neste caso, desde que afirma­tivo, apenas pode traduzir uma posição de poder político legislativo ordinário, no sentido transportado pela pergun­ta, ou seja, corporiza, apenas, uma posição de poder le­gislativo ordinário, não incorporando quaisquer poderes de definição do conteúdo dos direitos e garantias consti­tucionais, possível através da concessão/assumpção de poderes constituintes.

Resta, por último, apreciar a posição em que se abona o acórdão, segundo a qual não se esgota, no domínio penal, o âmbito de protecção do direito constitucional à vida humana e de que não existe uma imposição constitu­cional à criminalização.

 

Estamos de acordo quanto à primeira consideração, mas não podemos acompanhar, de forma alguma, a segunda proposição.

 

E não podemos, porque entendemos que existem direi­tos constitucionais cuja existência e exercício hão-de, ne­cessariamente, impor a criminalização das atitudes que os violarem, por, na sua defesa, o legislador ordinário dever usar todos os meios constitucionalmente possíveis e en­tre estes, evidentemente, a sua última ratio — o direito criminal.

 

É o caso do direito à vida humana uterina e pós-uteri­na. Trata-se de um direito que é pressuposto necessário da existência de todos os demais (direito com pretensão de absoluto), de um direito sem cuja existência, em seres concretos, não é concebível qualquer princípio de digni­dade da pessoa humana e existência de uma comunidade politicamente organizada em Estado.

 

O direito à vida humana de qualquer titular constitu­cional que ele seja, nascido ou não nascido, porque a Constituição os não distingue, é um direito fundante do Homem e da sociedade organizada.

Na mesma situação se encontra, por exemplo, a protec­ção do princípio democrático do Estado de direito. Sem protecção do princípio democrático do Estado de direito, por todos os meios constitucionalmente permitidos, este não poderá existir e subsistir. Sendo assim, não poderá o legislador ordinário deixar de utilizar na sua protecção a última ratio — o direito criminal. — Benjamim Rodrigues.

 

Declaração de voto

 

Votei vencido por entender que: (i) a formulação da pergunta não satisfaz os requisitos constitucionais e le­gais da clareza e da objectividade; (ii) é injustificada a restrição do “universo eleitoral” aos eleitores residentes no território nacional; e (iii) a resposta afirmativa é sus­ceptível de conduzir a uma solução jurídica inconstitucio­nal.

 

1 — A falta de clareza e de objectividade da pergunta.

 

1.1 — A Constituição da República Portuguesa (CRP) exige, no seu artigo 115.º, n.º 6, que as questões objecto de referendo sejam “formuladas com objectividade, cla­reza e precisão”, tendo a Lei Orgânica do Regime do Referendo (Lei n.º 15-A/98, de 3 de Abril, alterada pela Lei Orgânica n.º 4/2005, de 8 de Setembro — LORR) reiterado que “as perguntas são formuladas com objectividade, clareza e precisão (...), sem sugerirem, directa ou indi­rectamente, o sentido das respostas”.

 

Os requisitos da clareza e da precisão implicam que a pergunta seja formulada “de modo unívoco e explícito, sem ambiguidades” (Acórdão n.º 704/2004), insusceptível de “comportar mais do que uma interpretação” (Acórdão n.º 531/98). O requisito da objectividade impede a utiliza­ção de formulações susceptíveis de “induzir os eleitores em erro, influenciando o sentido da resposta” (Acórdão n.º 531/98).

Entendo que a pergunta ora em apreciação não é cla­ra quando utiliza a expressãoem estabelecimento de saú­de legalmente autorizado”, e não é objectiva quando usa a expressão “despenalização da interrupção voluntária da gravidez”.

 

1.2 — A primeira expressão é susceptível de duas in­terpretações: tratar-se de estabelecimento de saúde legal­mente autorizado a praticar abortos (autorização específi­ca) ou tratar-se de estabelecimento de saúde legalmente autorizado a funcionar como estabelecimento de saúde tout court (autorização genérica).

 

No Acórdão n.º 288/98 o Tribunal Constitucional inter­pretou a expressão naquele primeiro sentido, interpretação que foi mantida pelo precedente acórdão. Afigura-se-me, porém, que é a segunda a interpretação correcta, como, a meu ver, resulta da história das iniciativas parlamentares pertinentes, em que a expressão surge como equivalente a “estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reco­nhecido” (cf. Projectos de Lei n.os 177/VII, 235/VII, 236/ VII, 417/VII, 451/VII, 453/VII, 16/VIII, 64/VIII, 1/IX, 89/IX, 405/IX, 409/IX, 1/X, 6/X, 12/X, 19/X e 166/X), que é, aliás, a utilizada no corpo do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal. O que se pretendeu exigir terá sido que o aborto fosse praticado em estabelecimento de saúde, quer oficial, quer legalmente autorizado (no sentido de oficialmente reconhecido), e não em quaisquer outras instalações, mas não se terá querido limitar tais intervenções a estabeleci­mentos de saúde especificamente autorizados a praticar abortos (admitindo que estas autorizações específicas exis­tam ou venham a existir). A simples existência desta dua­lidade de interpretações demonstra a falta de clareza desta parte da pergunta.

 

1.3 — Mais grave, porém, é a falta de objectividade que deriva do uso da expressão “despenalização da interrup­ção voluntária da gravidez”.

 

Interessará começar por recordar as oito formulações propostas para a pergunta ao longo das diversas tentati­vas de processo referendário nesta matéria:

 

Não existindo razões médicas, o aborto deve ser livre durante as primeiras 12 semanas?” (Projecto de Resolução n.º 38/VII, apresentado pelo PSD, Diário da Assembleia da República (DAR), II Série-A, n.º 12, de 9/1/1997);

 

Não existindo razões médicas, o aborto deve ser livre durante as primeiras 10 semanas?” (Projecto de Resolução n.º 75/VII, apresentado pelo PSD, DAR, II-A, n.º 23, de 15/ 1/1998);

 

“1 — Concorda que o aborto seja livre nas primeiras 10 semanas de gravidez? 2 — Concorda que razões de natureza económica ou social possam justificar o aborto por constituírem perigo grave para a saúde da mulher?” (proposta de substituição do Projecto n.º 75/VII, apresen­tada pelo PSD e CDS-PP, DAR, I, n.º 51, de 20/3/1998);

 

“Concorda com a despenalização da interrupção vo­luntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legal­mente autorizado?” (proposta de substituição do Projecto n.º 75/VII, apresentada pelo PS (DAR, I, n.º 51, de 20/3/ 1998), que viria a ser adoptada pela Resolução da Assem­bleia da República n.º 16/98 (Diário da República (DR), I Série-A, n.º 76, de 31/3/1998), e retomada no Projecto de Resolução n.º 69/X, apresentado pelo PS (DAR, II-A, n.º 50, de 22/9/2005), adoptado pela Resolução da Assem­bleia da República n.º 52-A/2005 (DR, I-A, Supl. ao n.º 188, de 29/9/2005), e no Projecto de Resolução n.º 148/X, apre­sentadas pelo PS (DAR, II-A, n.º 2, de 21/9/2006), adopta­do pela Resolução da Assembleia da República n.º 54-A/ 2006 (DR, I Série, 2.º Supl. ao n.º 203, de 20/10/2006));

 

“Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez, com o consentimento da mulher, em estabelecimento legal de saúde?” (Projecto de Resolução n.º 7/X, apresentado pelo BE, DAR, II-A, n.º 4, de 2/4/2005);

 

“Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado nas primeiras 10 semanas de gravidez, com o consentimento da mulher, em estabelecimento legal de saúde?” (Projecto de Resolução n.º 9/X, apresentado pelo PS (DAR, II-A, n.º 4, de 2/4/2005), adoptado pela Resolu­ção da Assembleia da República n.º 16-A/2005 (DR, I-A, Supl. ao n.º 78, de 21/4/2005));

 

“Concorda com a despenalização do aborto realiza­do nas primeiras 16 semanas de gravidez, com o consen­timento da mulher, em estabelecimento legal de saúde”(proposta de substituição do Projecto n.º 9/X, apresenta­do pelo CDS-PP, DAR, II-A, n.º 8, de 22/4/2005);

 

“Concorda com a liberalização do aborto, se realiza­do, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” (Propos­ta de substituição do Projecto n.º 148/X, apresentada pelo CDS, DAR, II-A, n.º 12, de 28/10/2006).

 

Nestas formulações são utilizados os conceitos de “li­beralização”, “despenalização” e “descriminalização”, que, como é sabido, têm sentidos bem diferenciados e efeitos distintos, desde logo o de que, como assinala JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Comentário Conimbricense do Código

Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra, 1999, p. 178), “se a interrupção for um facto ilícito, ainda que não punível, o Estado se sentirá desobrigado das prestações sociais decorrentes da intervenção médica — de acordo com o princípio de que não podem ser dispendidos dinheiros públicos com factos constitutivos de ilícitos penais”.

 

Tenho por evidente que a medida legislativa que os proponentes do referendo visam aprovar, na hipótese de resposta afirmativa vinculativa, não consiste numa mera despenalização (sem descriminalização). Não se trata, na verdade, de previsão de situações de não aplicação de penas a determinados autores de condutas que continu­am a ser qualificadas como criminalmente ilícitas (como acontece com as propostas de eliminação do n.º 3 do ar­tigo 140.º do Código Penal, constantes dos Projectos de Lei n.os 308/X (PCP), 309/X (Os Verdes) e 317/X (BE), que, essas sim, conduzem à não punição da mulher grávida em todas as situações de crimes de aborto, praticados fora das previsões do artigo 142.º), mas muito mais do que isso. Trata-se de deixar de considerar como crime, relati­vamente a todos os participantes nessas intervenções (e não apenas à mulher grávida), o aborto praticado, nas primeiras dez semanas de gravidez, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. E não se trata apenas de afastar a ilicitude criminal, mas toda e qualquer ilicitude. E ainda mais: trata-se de assegurar, pelo próprio Estado, designadamente através do serviço na­cional de saúde, a prática desses actos. Isto é: pretende-se passar de uma situação de “crime punível”, não a uma situação de “crime não punível”, mas a uma situação de “não crime”, de “não ilícito” e de “direito a prestação do Estado”.

 

Nem se diga, como foi aduzido no debate parlamen­tar, que não se trata de “descriminalização” por o crime de aborto continuar a ser punível quando praticado para além das 10 semanas. A questão, porém, é que um con­junto de situações (prática do aborto, por opção da mulher, até às 10 semanas de gravidez, sem que se veri­fiquem as “indicações” do artigo 142.º), que eram consi­deradas crime e como tal punidas, deixam de ser consi­deradas como crime relativamente a todos os intervenientes nessas práticas.

Neste contexto, embora fosse sustentável que, em ri­gor, se trata de uma “legalização” do aborto em causa [na apresentação da Projecto de Resolução foi expressamente referido: “(...) ao legalizar a interrupção voluntária da gravidez sob determinadas condições, não se está, como é evidente, a liberalizar o aborto, está-se apenas a alar­gar, de forma razoável e equilibrada, o elenco das ex­cepções, hoje admitidas na lei, à regra geral de crimi­nalização que permanece em vigor. (…) Por isso, propomos a realização desta consulta popular, onde a única questão a decidir é saber se «sim» ou «não» à licitude da interrupção voluntária da gravidez, nas pri­meiras 10 semanas, em estabelecimento autorizado” — DAR, I, n.º 14, de 20/10/2006, p. 8 (sublinhados acrescen­tados)], a pergunta a formular, para ser objectiva, teria, no mínimo, de referir a intenção de “deixar de constituir cri­me tal conduta. Isto é: devia ter sido mantida a formula­ção dos Projectos de Resolução n.os 7/X (BE) e 9/IX (PS) — “Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado nas primeiras 10 [12 para o BE] semanas de gravidez, com o consentimento da mulher, em estabele­cimento legal de saúde?” — acolhida na Resolução da Assembleia da República n.º 16-A/2005.

 

A isto acresce que, quer na discussão pública em cur­so sobre este tema, quer, mais relevantemente, na apre­sentação parlamentar da iniciativa referendária, se tem sistematicamente insistido na associação desta iniciativa ao propósito de pôr termo à perseguição criminal, julga­mento, condenação e prisão das mulheres grávidas que pratiquem aborto. E o uso da expressão “despenalização”, na pergunta, pode propiciar o entendimento de que é esse propósito que se visa alcançar, o que não corresponde à realidade. Na verdade, face ao apontado desiderato, a aprovação da medida legislativa que resultará de eventual resposta positiva vinculativa ao referendo surge como inadequada, por defeito e por excesso: por defeito, por­que não evitará a perseguição criminal das mulheres que pratiquem aborto para além das 10 semanas fora das indi­cações do artigo 142.º do Código Penal e ainda das que pratiquem aborto dentro das 10 semanas, mas fora de es­tabelecimento de saúde legalmente autorizado; por exces­so, porque exclui da incriminação, não apenas as mulhe­res grávidas, mas todos os intervenientes no acto em causa.

 

Não se leia nas considerações precedentes qualquer tomada de posição negativa quanto ao mérito da iniciati­va. Não é disso que se visa nesta sede, em que apenas se trata de verificar o respeito dos requisitos de clareza e de objectividade exigíveis à pergunta do referendo.

 

E, pelas razões expostas, concluo que, para além da falta de clareza da expressãoestabelecimento de saúde legal­mente autorizado”, a expressão “despenalização da inter­rupção voluntária da gravideznão respeita o requisito da objectividade, pois se mostra susceptível de “induzir os eleitores em erro, influenciando o sentido da resposta”.

 

2 — A definição do “universo eleitoral”.

A proposta referendária limita a intervenção no referen­do aos “cidadãos eleitores recenseados no território na­cional”.

 

O precedente acórdão (n.º 26), para considerar justifi­cada esta limitação, invoca argumentos (ser a “aplicação da lei penal portuguesa a cidadãos residentes no estran­geiro relativamente excepcional e condicionada” e não ter a matéria do referendo “a ver especificamente com a par­ticular situação dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro”), que não posso acompanhar.

 

Com efeito, afigura-se-me de todo impertinente o argu­mento extraído das regras sobre a aplicação no espaço da lei penal portuguesa. Não pode constituir critério adequado para aferir da relevância da participação no referendo dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro a circuns­tância de, por regra, as normas penais portuguesas lhes não serem aplicáveis. O interesse na participação no referendo não pode resultar da susceptibilidade de ser autor ou vítima dos crimes em causa.

 

Por outro lado, a CRP (artigo 115.º, n.º 12) não restrin­ge a participação dos cidadãos residentes no estrangeiro aos referendos sobre matéria que apenas lhes diga especificamente respeito, mas sim sobre matériaque lhes diga também especificamente respeito”. E em lado algum a CRP manda considerar esses cidadãos “na sua condi­ção de emigrantes”, condição que, aliás, muitos deles não terão.

 

que atender que não é à generalidade dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro que é facultada a participação no referendo, nem sequer ao grupo, mais redu­zido, dos que, estando recenseados, são eleitores da As­sembleia da República. É, apenas, ao grupo estrito de ci­dadãos portugueses a quem, apesar de residirem no estrangeiro, foi admitida a participação nas eleições para Presidente da República por mantenham “laços de efec­tiva ligação à comunidade nacional” (artigo 121.º, n.º 2, da CRP, para que remete o artigo 115.º, n.º 12) e que efec­tivamente exercitaram esse direito de recenseamento (o que revela a actualidade do seu interesse na participação nos assuntos públicos nacionais), designadamente titula­res de órgãos da União Europeia e de organizações inter­nacionais, diplomatas e outros funcionários e agentes em serviço em representações externas do Estado, funcioná­rios e agentes das comunidades e da União Europeia e de organizações internacionais, professores de escolas portuguesas, cooperantes (artigo 1.º-A, n.º 1, da Lei Elei­toral para Presidente da RepúblicaDecreto-Lei n.º 319-A/76, de 3 de Maio, alterado, por último, pela Lei Orgânica n.º 5/2005, de 8 de Setembro); cônjuges ou equi­parados, parentes ou afins, que vivam com os cidadãos atrás mencionados (artigo 1.º-A, n.º 2, da mesma Lei); e os cidadãos que não estejam ausentes do território nacional para além de determinados limites temporais, consoante sejam residentes nos Estados membros da União Europeia ou nos países de língua oficial portuguesa ou nos demais Estados ou que se tenham deslocado a Portugal e aqui permanecido durante determinado período de tempo em época recente (artigo 1.º-B da mesma Lei).

 

Por outro lado, a matéria em causa no referendo, como o evidencia a intensidade do debate público que a tem rodeado ao longo de um dilatado período de tempo, está directamente ligada à definição dos valores fundamentais estruturantes da comunidade nacional, problemática que não pode deixar de afectar os portugueses que, apesar de residentes no estrangeiro, têm manifestado laços de efec­tiva ligação à comunidade nacional e revelado interesse actual na intervenção directa na vida política nacional.

 

Não se vislumbra motivo justificado para excluir este grupo de cidadãos portugueses da participação num refe­rendo que, atenta a matéria sobre que versa, também lhes diz especificamente respeito, e no qual, aliás, irão partici­par cidadãos estrangeiros residentes em Portugal — os referidos no artigo 38.º da LORR.

 

3 — A inconstitucionalidade da solução legislativa deri­vada de eventual resposta positiva vinculativa ao refe­rendo.

 

3.1 — Apesar da notória divisão de posições revelada pelos quatro acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitu­cional sobre a problemática do aborto (Acórdãos n.os 25/ 84, 85/85, 288/98 e o presente), num aspecto crucial verificou-se unanimidade por parte dos 31 juízes das di versas formações que subscreveram esses acórdãos: to­dos eles, nemine discrepante, assumiram que a vida intra-uterina constitui um bem constitucionalmente tute­lado, donde deriva a obrigação do Estado de a defender.

 

O reconhecimento da dignidade constitucional da vida intra-uterina (comum, aliás, à generalidade das pronúncias de diversos Tribunais Constitucionais da nossa área civi­lizacional) — que é independente de concepções filosófi­cas ou religiosas sobre o início da vida humananão impede, como é óbvio, a admissão de que a sua tutela seja menos forte do que a da vida das pessoas humanas (des­de sempre revelada na diferenciação das penas aplicáveis aos crimes de aborto e de homicídio) e que possa conhe­cer gradações consoante a fase de desenvolvimento do feto, designadamente em sede de ponderação da solução do conflito entre esse valor e outros valores igualmente dignos de protecção constitucional, relacionados com a mulher grávida.

 

O que se me afigura constitucionalmente inadmissível, por incompatível com o reconhecido dever do Estado de tutelar a vida intra-uterina — com consequente posterga­ção da concepção primária do feto como uma víscera da mulher, sobre a qual esta deteria total liberdade de dispo­sição — é admitir que, embora na fase inicial de desen­volvimento do feto, se adopte solução legal que represente a sua total desprotecção, com absoluta prevalência da “liberdade de opção” da mulher grávida, sem que o Esta­do faça o mínimo esforço no sentido da salvaguarda da vida do feto, antes adoptando uma posição de neutral indiferença ou, pior ainda, de activa promoção da destrui­ção dessa vida.

 

Não acompanho, assim, o argumento expendido no n.º 48 do Acórdão n.º 288/98 e retomado no n.º 31 do pre­cedente acórdão, que vislumbra uma ponderação de inte­resses no “contexto global” da regulação da matéria, como que “compensando” a desprotecção total da vida intra-uterina nas primeiras 10 semanas com a protecção total (ou quase total) nos últimos períodos de gestação, argumento que se me afigura inaceitável face à inarredá­vel individualidade e infungibilidade de cada vida huma­na, mesmo que intra-uterina. Como se afirmou na declaração de voto do Cons. TAVARES DA COSTA aposta àquele

acórdão, na vida intra-uterina manifesta-se “uma forma de vida que, desde logo, contém um acabado programa ge­nético, único e irrepetível, o qual, se entretanto não co­nhecer destruição, culminará, inevitavelmente, com o nas­cimento de um ser humano” (sublinhado acrescentado) —

cf., ainda, sobre este ponto, JORGE MIRANDA e RUI MEDEI‑

ROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, pp. 230—232).

 

3.2 — Não excluo, porém, compartilhar da convicção de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (obra citada, p. 172) “de que mesmo um sistema que combinasse equilibradamente o sistema das indicações com o sistema dos prazos não mereceria censura constitucional se nele assentasse o le­gislador ordinário; nomeadamente se um tal sistema se combinasse por sua vez, como deve, com um consistente e adequado sistema de aconselhamento” (negrito no ori­ginal, sublinhado acrescentado).

 

Isto é: admitiria considerar não inconstitucional uma solução legislativa que, no período inicial da gestação, acabasse por conceder prevalência à opção da mulher grávida, desde que fosse associada à imposição de um sistema de aconselhamento, designadamente se este acon-selhamento não fosse um aconselhamento meramente in­formativo, mas antes um aconselhamento orientado para a salvaguarda da vida.

 

Como resulta dos elementos de direito comparado lar­gamente referidos no Acórdão n.º 288/98 (cf. também JOÃO CARLOS SIMÕES GONÇALVES LOUREIRO, “Aborto: algumas questões jurídico-constitucionais (A propósito de uma reforma legislativa)”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXIV, Coimbra, 1998, pp. 327-403), há, na nossa área civilizacional, três modelos fundamentais em matéria de criminalização do aborto.

 

Um primeiro grupo engloba os países em que vigora a proibição total: Irlanda e Malta.

O segundo grupo é integrado pelos países que reco­nhecem apenas o modelo das indicações, isto é, “o re­conhecimento de situações taxativamente indicadas e objectivamente controláveis (i. e., controláveis por tercei­ro) perante as quais a lei permite o sacrifício da vida intra-uterina” (FIGUEIREDO DIAS, local citado, p. 171). É caso, embora com variações quanto ao tipo de “indi­cações” consideradas relevantes e a sua relacionação com os períodos de gestação, da Itália, Reino Unido, Lu­xemburgo, Suíça, Finlândia, Portugal e Espanha. [Em pa­rêntesis refira-se que, ao contrário do que com frequên­cia se refere no debate público, não vigora em Espanha um sistemaliberal”, perante o qual seria chocantemente contrastante o “limitado” sistema português. O sistema legal espanhol é estritamente um sistema de indicações. O que ocorre é que, na prática, uma interpretação latís­sima da indicação relacionada com a “saúde psíquica” da mulher grávida conduziu a uma permissividade na práti­ca do aborto, sobretudo emclínicas privadas”, que têm como objecto exclusivo do sua actividade a prática abor­tiva (segundo informa JOÃO LOUREIRO, estudo citado, p. 339, 98% dos abortos realizados nas clínicas privadas apresentam comoindicação” o risco para a saúde psí­quica da mãe)].

 

terceiro grupo compreende os países que associam modelo das indicações com o modelo dos prazos, se­gundo o qual o aborto será permitido, sem necessidade de justificação por parte da grávida ou do seu controlo por terceiro, dentro de certo prazo. Neste grupo, há ainda que distinguir entre os que não associam (Áustria, Dina­marca, Suécia e Grécia) e os que associam ao método dos prazos um sistema de aconselhamento obrigatório mera­mente informativo (Bélgica, França, Luxemburgo) ou um aconselhamento obrigatório orientado para a salvaguarda da vida (Holanda, Itália, Alemanha) e um período de refle­xão (Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgo).

 

Na Holanda, estabeleceu-se, no artigo 5.º da Wet af­breking zwangerschap, de 1 de Maio de 1981, “um pro­cesso de aconselhamento obrigatório visando analisar al­ternativas à interrupção voluntária da gravidez e que o médico, se a mulher achar que a situação de emergência não poderá ser resolvida de outro modo, se certifique que a mulher manifestou e manteve o seu pedido de livre von­tade após cuidadosa reflexão e na consciência da sua responsabilidade pela vida pré-natal e por si própria e pelos seus” (JOÃO LOUREIRO, estudo citado, p. 366-367).

 

Em Itália, durante os primeiros 90 dias da gravidez, a decisão de abortar cabe à mulher, mas sujeita a consulta em centro de consulta familiar, que a deve esclarecer e ponderar em conjunto com ela e com o autor da concep­ção (se a mulher assim consentir) todas as soluções pos síveis, com o objectivo de ajudar a mulher a ultrapassar as causas que poderiam conduzi-la a interromper a sua gravidez (cf. n.º 38 do Acórdão n.º 288/98).

 

Finalmente, na Alemanha, na sequência directa de pro­nunciamentos do respectivo Tribunal Constitucional, a possibilidade de prática de aborto, nas primeiras 12 se­manas, a pedido da mulher, está dependente de aconse­lhamento obrigatório especificamente dirigido à protec­ção da vida embrionária e fetal, dispondo o n.º 1 do § 219 do Código Penal alemão (cf. JOÃO LOUREIRO, local ci­tado, p. 389):

 

“O aconselhamento serve a protecção da vida que está por nascer. Deve orientar-se pelo esforço de encorajar a mulher a prosseguir a gravidez e de lhe abrir perspectivas para uma vida com a criança. Deve ajudá-la a tomar uma decisão responsável e em consciência. A mulher deve ter a consciência de que o feto, em cada uma das fases de gravidez, também tem o direito próprio à vida e que, por isso, de acordo com o sistema legal, uma interrupção da gravidez apenas pode ser considerada em situações de excepção, quando a mulher fica sujeita a um sacrifício que pelo nascimento da criança é agravado e se torna tão pesado e extraordinário que ultrapassa o limite do que se lhe pode exigir.”

 

A meu ver, atento o quadro constitucional português vigente, não pode deixar-se de considerar inconstitucio­nal um sistema que, na parte em que acolhe o método dos prazos, não o condicione a um sistema de aconselhamen­to orientado para a salvaguarda da vida. Na verdade, após se reconhecer que a vida intra-uterina constitui um valor constitucionalmente tutelado, cuja defesa incumbe ao Es­tado, é contraditório e incongruente considerar cons­titucionalmente aceitável uma solução em que a vida do feto é sacrificada, por mera opção da mulher, sem que o Estado tome qualquer iniciativa nesse domínio, a mínima das quais seria condicionar o aborto à obrigatoriedade de aconselhamento e de um período de reflexão. Aconselha­mento este que, nos sistemas legais que o acolhem, não surge como mecanismo estranho à solução penal (como as consultas de planeamento familiar), mas antes se inse­re no estrito domínio penal, como condição da não incri­minação ou punição do aborto.

 

3.3 — É certo que, quer o Acórdão n.º 288/98, quer o precedente acórdão, acabem por reconhecer a relevância da introdução, na lei que vier a ser aprovada na sequên­cia de eventual resposta afirmativa vinculativa ao referen­do, da “obrigatoriedade de uma prévia consulta de acon­selhamento, em que possa ser dada à mulher a informação necessária sobre os direitos sociais e os apoios de que poderia beneficiar no caso de levar a termo a gravidez, bem como o estabelecimento de um período de reflexão entre essa consulta e a intervenção abortiva, para assegurar que a mulher tomou a sua decisão de forma livre, informada e não precipitada, evitando-se a interrupção da gravidez motivada por súbito desespero” (n.º 52 do Acórdão n.º 288/ 98, retomado no n.º 34 do precedente acórdão).

 

Acontece, porém, que, perante os termos em que está formulada a pergunta do referendo, se a lei aprovada na sua sequência não contemplar esse condicionamento (e, como veremos, é mesmo questionável que o possa inse­rir), ela não poderá ser vetada pelo Presidente da Repú­blica nem sujeita a fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional com o fundamento de ser inconstitucionala não consagração do aconselhamento obrigatório como condição de não punibilidade.

É o que resulta, a meu ver, da força vinculativa consti­tucionalmente atribuída à resposta afirmativa ao referen­do, com participação neste de mais de metade dos eleito­res inscritos no recenseamento.

 

As diversas iniciativas legislativas surgidas, neste do­mínio, na última década, na parte em que visavam a intro­dução do sistema dos prazos (Projectos de Lei n.os 177/235/VII, 236/VII, 417/VII, 451/VII, 453/VII, 16/VIII, 64/1/IX, 89/IX, 405/IX, 409/IX, 1/X, 6/X, 12/X, 19/X, 166/ X, 308/X, 309/X e 317/X), previram o condicionamento da não punibilidade do aborto, por opção da mulher, aos seguintes requisitos: ser a interrupção da gravidez efectuada por médico ou sob a sua direcção; ser feita em estabelecimento de saúde oficial ou ofi­cialmente reconhecido; durante as primeiras 10 ou 12 semanas de gravidez; com invocação de motivos relacionados com a pre­servação da integridade moral e dignidade social da mu­lher e com uma maternidade consciente e responsável; e após consulta num centro de acolhimento familiar ou comissão de apoio à maternidade.

 

 

A proposta de referendo apenas contempla, como con­dições de “despenalização” (rectius, descriminalização), para além da opção da mulher, o prazo de 10 semanas e a natureza do estabelecimento de saúde.

 

Do carácter vinculativo do referendo (artigo 115.º, n.º 1, da CRP) resulta que o sentido da vontade popular sobe­rana, por esse meio directamente expressa, se impõe aos órgãos de soberania que sejam chamados a intervir no subsequente processo legislativo. Impõe à Assembleia da República e ao Governo a aprovação, em prazo certo, do acto legislativo de sentido correspondente à resposta afir­mativa (artigo 241.º da LORR) e proíbe ao Presidente da República a recusa de promulgação do acto legislativopor discordância com o sentido apurado em referendo com eficácia vinculativa” (artigo 242.º da LORR).

 

Desta última proibição de veto presidencial (sem dis­tinção entre veto político e veto por inconstitucionalida­de) resulta a impossibilidade de fiscalização preventiva, pelo Tribunal Constitucional, da constitucionalidade do acto legislativo concretizador da pronúncia referendária, desde que o sentido desse acto caiba dentro do alcance de tal pronúncia. Isto é, tal como JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, Coimbra, 2006, p. 309), entendo que será admissível o Presidente da República requerer ao Tribunal Constitu­cional a fiscalização preventiva da lei concretizadora da pronúncia referendária “apenas naquilo em que ela esti­ver para além do conteúdo da proposta referendada, ou no tocante a inconstitucionalidade orgânica ou formal”. Trata-se de entendimento também subscrito por MARIA BENEDITA URBANO (O ReferendoPerfil Histórico‑

-Evolutivo do Instituto. Configuração Jurídica do Refe­rendo em Portugal, Coimbra, 1998, p. 287: “(...) isto equi­vale à impossibilidade de o PR utilizar o seu veto políti­co e de pedir a fiscalização preventiva das normas concretizadoras da consulta referendária, pelo menos na parte em que elas se limitem a traduzir correctamente a vontade popular”), por LUÍS BARBOSA RODRIGUES (O Refe‑

rendo Português a Nível Nacional, Coimbra, 1994, pp. 230-231, onde após, referir estar vedado ao Presiden­te da República recusar a promulgação da lei que con­cretize o resultado do referendo, acrescenta: “No que se refere ao Tribunal Constitucional (...) parece líquido que este não deverá pronunciar-se preventivamente acerca da concretização normativa do resultado do referendo, mes­mo se instado pelo Presidente da República a fazê-lo”), mesmo por VITALINO CANAS (Referendo NacionalIntrodução e Regime, Lisboa, 1998, pp. 23 e 35 e nota 37), que, apesar de admitir que o Presidente da Repúbli­ca peça “a fiscalização preventiva da constitucionalida­de de quaisquer normas constantes de um acto executor da decisão dos cidadãos expressa em referendo, tenham elas ligação directa com essa execução ou não e seja o referendo vinculativo ou não”, reconhece que, “quando Tribunal Constitucional tenha efectuado aquilo que se designou por fiscalização pré-preventiva das normas, a sua jurisdição se reduza à averiguação sobre se a norma produzida na sequência do referendo coincide com a norma pré-avaliada”.

 

No caso concreto, se, face a resposta afirmativa vincu­lativa ao referendo, a Assembleia da República aprovar uma lei em que condicione a “despenalização” do aborto às três condições expressas na pergunta (opção da mu­lher, período de 10 semanas e estabelecimento de saúde legalmente autorizado) — hipótese em que não vejo como se poderá sustentar que a lei desrespeite o sentido da resposta —, a questão da inconstitucionalidade dessa solução legislativa, por se entender que seria indispensá­vel a imposição de uma consulta de aconselhamento e/ou de um período de reflexão, não poderá ser colocada ao Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventi­va, contrariamente ao que pressupõem o Acórdão n.º 288/ 98 e o precedente acórdão, sendo mesmo questionável a constitucionalidade da imposição, pelo legislador, de ou­tras condições de “despenalização” para além das que constam da pergunta, tal como seria inconstitucional, por exemplo, a fixação do período de gravidez em 8 semanas, em vez das 10 semanas que da mesma constam.

 

A solução para evitar o aparecimento irremediável de soluções legislativas inconstitucionais consiste no parti­cular rigor que o Tribunal Constitucional deve colocar na apreciação da constitucionalidade das soluções legislati­vas emergentes das respostas (positiva ou negativa). Não basta, contrariamente à decisão que no presente acórdão obteve maioria, que nenhuma das respostas implique ne­cessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição. O que importa assegurar é que nenhuma das possíveis soluções jurídicas que caibam no sentido da resposta (relativamente às quais o Tribunal Constitucio­nal, pelas razões expostas, não terá oportunidade de se voltar a pronunciar em sede de fiscalização preventiva) viole a Constituição.

 

No presente caso, a meu ver, não apenas uma das so­luções possíveis, mas até a solução que directamente resultará da resposta afirmativa, se se converter a formu­lação literal desta em artigo de lei, é inconstitucional, atenta a completa falta de intervenção do Estado na tutela da vida intra-uterina, bem constitucionalmente protegido, que exi­giria, no mínimo, a imposição da obrigatoriedade de uma consulta de aconselhamento e de um período de reflexãoantes da consumação do aborto. Ora, em vez dessa inter­venção para salvaguarda da vida, de tal solução resulta­rá, nem sequer uma posição de neutralidade ou de indife­rença do Estado (que seria criticável), mas inclusivamente uma posição de promoção do aborto, atra­vés da facilitação da sua prática, por mera opção da mu­lher grávida, sem invocação de motivos, nos serviços públicos de saúde, tendencialmente gratuitos. — Mário José de Araújo Torres.

 

Declaração de voto

 

1 — Coincidem, no presente aresto, duas matérias de difícil resolução. A primeira tem a ver com a os requisitos formais e substantivos da convocação de referendo, e a segunda diz respeito à natureza da questão especificamen­te tratada: a descriminalização do crime de aborto quando voluntariamente praticado “nas primeiras 10 semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado”.

 

2 — Votei em sentido contrário à solução encontrada pelo Tribunal em resposta a estas duas questões, pois entendo, essencialmente, que a pergunta formulada não espelha com clareza, precisão e objectividade — como a Constituição impõe — a matéria que é colocada à consi­deração dos cidadãos, e também porque entendo que uma resposta positiva à pergunta determina violação do n.º 1 do artigo 24.º da Constituição.

 

3 — As cautelas com que a lei rodeia a convocação de referendo explicam-se pelo peso que, nas democracias ocidentais, é conferido à opinião pública expressa em su­frágio universal, fora dos momentos eleitorais determina­dos pelos ciclos políticos previstos na Constituição. É, assim, essencial — ao fim e ao cabo para garantir a genui­nidade da resposta dos cidadãos —, que a pergunta seja absolutamente clara e objectiva, não na sua locução gramatical, mas também no seu conteúdo, expondo a ques­tão por forma a permitir a sua completa apreensão. Não é, a meu ver, o caso em presença, pois a pergunta não es­clarece, nem deixa espaço para que se perceba, que, actual­mente, a lei não penaliza sempre a interrupção voluntá­ria da gravidez (artigo 142.º do Código Penal). Em suma, a pergunta pode falsamente fazer concluir que o tratamento jurídico do aborto se desenvolve na dicotomia crime/des­criminalização, sem ocorrência de situações justificativas de não punibilidade previstas no actual sistema legal. Ao colocar deficientemente os dados da questão, a per­gunta não é, a meu ver, precisa nem objectiva.

 

4 — Quanto à segunda questão, entendo muito simples­mente que se a Constituição, no aludido preceito, prote­ge, sem excepção, a vida humana, é necessário que se conclua que esse dever de protecção legal se estende a todas as formas de vida humana e, portanto, à vida intra‑uterina. O que não significa que se imponha um grau de intensidade necessariamente igual na protecção de todas as formas de vida. Significa, isso sim, que se me afigura constitucionalmente desconforme que se retirem comple­tamente todos os obstáculos legais à morte da vida intra‑uterina, nesse período de 10 semanas.

 

5 — Para além disto, acompanho, embora com dúvidas, a solução perfilhada nas alíneas b), c), d), g) e h) da deci­são. — Carlos Pamplona de Oliveira.