constitucionalmente
insuportável, o
princípio da inviolabilidade da
vida humana consagrado
no artigo
24.º, n.º 1 da
Constituição. Em
nosso entender, deste
princípio decorre
igualmente a protecção da
vida intra-uterina, uma
vez que “funcionando o
direito à vida
como pressuposto e
condição de todos os
restantes direitos
do ser
humano, (…), é o
momento de origem da
vida que
torna
operativo
postulado
constitucional da sua
inviolabilidade” (Paulo Otero,
Direito da Vida,
Coimbra, 2004, p. 82).
Do
reconhecimento da protecção
constitucional da vida
intra-uterina não
decorre
porém, em
nosso entender,
que lhe
deva ser necessariamente
dispensada uma tutela
jurídico-penal
idêntica em todas as
fases da vida e
que uma tal
tutela seja absoluta.
Designadamente, aceitamos
que uma
lógica de ponderação
de valores
e de
concordância prática
como a que se exprime
no método
das
indicações (tal
como consagrado
presentemente entre
nós ou
porventura noutras
variantes) possa conduzir à
não punibilidade de
certas situações de
interrupção voluntária
da gravidez. É
por
isso aliás
que não temos
por constitucionalidade
inadmissível uma
resposta negativa à
pergunta formulada, uma
vez
que a solução
jurídica que dela
resultaria — a insusceptibilidade de
alterar,
nos termos
contemplados na pergunta,
o regime da
interrupção voluntária da
gravidez, com a consequente
manutenção da situação
presente — não contraria,
em nosso
entender a Constituição. O
que já contrariará a
Constituição, pelo
contrário, será uma solução
legislativa que, num
dado período
(dez
semanas, no
texto da pergunta), permita o
sacrifício de um
bem jurídico
constitucionalmente protegido,
por simples
vontade da mãe,
independentemente de
toda e qualquer
outra consideração
ou procedimento. Em
tais casos,
não poderá falar-se em
nosso entender de
concordância prática
ou de ponderação de
valores, uma vez
que nenhuma protecção é dispensada ao
bem jurídico vida. É
certo que o
acórdão sustenta,
diferentemente, existir
ainda aqui uma
ponderação, ou uma
tentativa de concordância
prática, entre o
bem jurídico
vida (do
feto)
o
direito à
autodeterminação da
mulher grávida.
Simplesmente, entendemos
que, com a
solução legal proposta, ao
fazer prevalecer
sempre, em
todos os casos e independentemente
das
circunstâncias, o que
se designa por
“direito ao
livre
desenvolvimento da
personalidade da
mulher”, se está
afinal a postergar
completamente a protecção da
vida intra-uterina que
cremos ser objecto de
tutela
constitucional.
Também
não ignoramos que o
acórdão pretende responder a
esta objecção considerando
existir uma protecção do
bem jurídico
vida, como
que vista
diacronicamente, uma vez
que se a ponderação se
faz nas primeiras dez
semanas a favor do
direito ao livre
desenvolvimento da mãe
grávida ela
passa
depois por
admitir uma tentativa de
concordância prática
nos termos do
método das indicações
para, no período
final da gravidez, reverter à
protecção total
do bem
jurídico vida.
Não podemos porém
aceitar esta versão, na
medida em
que a protecção dos
bens jurídicos
não pode ser
vista em abstracto,
desenraizada da
consideração dos seus
titulares que, no
sistema proposto, o bem
jurídico vida é,
sempre e
independentemente das
circunstâncias, desconsiderado nas primeiras
dez semanas,
não lhe sendo
nunca pois,
em tal
período, dispensada qualquer
protecção. É por
conduzir
assim, no período considerado, a
essa total
desconsideração do bem de
vida, quando radicado
num sujeito, sejam
quais forem os
motivos que levam à
decisão da mãe,
que entendemos que o
sistema proposto contraria o
imperativo de protecção da
vida intra-uterina
constitucionalmente consagrado,
com o que temos
por justificada a
nossa discordância
com a conclusão
formulada
na alínea
i) do n.º 1.
4 —
Finalmente, não temos
por conseguida a justificação fornecida
pelo acórdão para
a definição
do
universo eleitoral a
que procede a
proposta. Na verdade,
explicar a restrição deste
universo aos cidadãos
residentes em
Portugal pela
circunstância de a aplicação da
lei penal portuguesa
se orientar
em
princípio por
um critério de
natureza territorial é
conceber o interesse dos
cidadãos portugueses residentes no
estrangeiro de forma redutora,
excluindo-o por
não
serem eventuais
potenciais integrantes
do círculo
de pessoas
susceptíveis de serem abrangidas
pelo
comando de uma norma
incriminadora. Ora,
diversamente, e também
atento o relevante
interesse nacional
reconhecido à questão
objecto do
referendo, a participação dos portugueses no
estrangeiro (rectius, daqueles de
entre estes chamados a
participar) justifica-se pela
particular ligação destes (traduzida
pelo recenseamento) à
vida nacional e pela
circunstância de a questão a
decidir integrar
como que o património
cultural da comunidade
em que se têm
por inseridos.
Nestes
termos, não temos
por congruente a fundamentação
dada pelo
acórdão a este
propósito. Simplesmente, dispondo
a Constituição,
no seu
artigo 115.º, n.º 12,
que os cidadãos
portugueses residentes no
estrangeiro
regularmente
recenseados
são chamados as participar
nos referendos “quando
recaiam sobre
matéria que
lhes diga também
especificamente respeito”,
não temos por
claro o que se
deva entender a
este propósito.
Ou seja, se é para
nós nítido
que tal ocorre num
eventual referendo
sobre a vinculação de
Portugal a um
tratado
europeu, já temos
dúvidas que uma
questão central da
vida comunitária diga
especificamente respeito
aos
cidadãos residentes no estrangeiro,
muito embora
não se possa duvidar
que lhes diga
igualmente respeito. É
por não podermos
excluir, sob
reserva de melhor
estudo, que o citado
preceito constitucional vise como
fundadas razões
limitar
em maior
grau a participação dos residentes no
estrangeiro nas
iniciativas referendárias,
que nos limitamos a
dar conta das nossas
dúvidas a este
respeito, sem
dissentir contudo da solução a
que o acórdão chegou a
este respeito na
alínea g) do n.º 1 da
decisão. — Rui Manuel
Moura
Ramos.
Declaração de
voto
Votei vencida
quanto às alíneas e),
h) e i) do n.º 1.º e, consequentemente,
quanto ao n.º 2.º da
decisão, pelas
razões que indiquei no
voto de vencida que
juntei ao acórdão
n.º 288/98,
que transcrevo, e que
a meu
ver
não são
postas em
causa pelo presente
acórdão:
«Votei vencida
quanto à alínea f) [correspondente
à actual al. e) do n.º 1] do n.º 1.º
porque entendo
que
a pergunta
não satisfaz,
tanto quanto podia e
devia satisfazer, os
requisitos
constitucionalmente exigidos de objectividade,
clareza e
precisão.
No
plano da objectividade, importaria
sobretudo garantir, na medida do
possível, a neutralidade da
pergunta relativamente às
posições dominantes no
debate público da
questão, em
especial a posição
que se traduz em
manter o actual
sistema
legal de não
punibilidade do aborto
terapêutico, eugénico
ou criminológico, nas
condições definidas pelo
artigo 142.º do Código
Penal, o qual se
não pode confundir de
modo nenhum
com a ideia de penalização
absoluta da
interrupção voluntária
da gravidez.
Ora,
nos termos
em que se
encontra formulada, a pergunta
sugere uma escolha
entre penalização e despenalização
que não exprime a
alternativa emergente
dos debates
que
lhe deram origem, e
que se coloca entre a
despenalização relativa da
lei actual e a
despenalização absoluta
até às dez
semanas de
gravidez.
Quanto aos
requisitos da clareza
e da precisão,
eles
mostram-se imperfeitamente
cumpridos,
tanto do ponto de
vista da resposta
positiva ao referendo,
como do ponto de
vista da resposta
negativa. Com efeito, uma
resposta positiva pode ser entendida
como favorável a uma simples eliminação
da incriminação do aborto, mantendo-se
este, no entanto, como um acto não
lícito para outros efeitos, da mesma
forma que pode ser entendida no sentido
da liberalização — e, portanto, da
licitude — do aborto nas primeiras dez
semanas de gravidez, como sugere a parte
final da pergunta ao referir-se à sua
prática em estabelecimento legalmente
autorizado. Uma resposta negativa, por
seu lado, pode traduzir, quer o
entendimento de que a criminalização
deve ser mantida nos termos actuais,
quer a opinião de que tanto deve ser
despenalizado o aborto realizado em
estabelecimento legalmente autorizado
como o que é executado fora desses
estabelecimentos.
Votei vencida
quanto à alínea i)
[actual al. h) do n.º 1] do n.º 1.º
por
ter sérias dúvidas
quanto à possibilidade de o
Tribunal
Constitucional, na fase de
fiscalização preventiva da
constitucionalidade e da
legalidade da proposta
de referendo,
se pronunciar
sobre a constitucionalidade material da
pergunta do ponto de
vista da eventual
desconformidade de alguma das
respostas
possíveis. Os referendos exigem
um grau de
simplificação das questões
que normalmente
inviabilizará um
juízo
fundado sobre a
conformidade
constitucional das
respostas hipotéticas.
Só mais
tarde, se e quando uma
lei vier a ser
aprovada em
consequência do referendo,
e
em face dos
termos concretos da regulamentação
que nela se contiver, o
Tribunal
Constitucional estará
em condições de se
pronunciar acerca da
adequação
constitucional das
soluções adoptadas. O
referendo apenas
produz consequências mediatas
sobre a
ordem jurídica,
relativamente indeterminadas e,
não obstante o efeito
vinculativo sobre
o
legislador, aliás
sem qualquer
sanção eficaz,
também incertas.
Poderá,
em sentido
contrário, argumentar-se
que há questões
em que os
parâmetros
constitucionais são
tão nítidos e
peremptórios que
não oferecerá
dificuldades um
juízo sobre a
constitucionalidade de uma
questão submetida a
referendo, ainda
que reduzida à sua
máxima simplificação. Mesmo,
todavia, que fosse
esse o caso
presente, a apreciação da constitucionalidade
material da pergunta,
quanto a este
aspecto, encontra-se inviabilizada
por força de
imprecisões e ambiguidades de
que, a meu
ver, ela padece. Refiro-me,
nomeadamente, à incerteza
do significado de uma
resposta positiva, a
que acima aludi,
pois a diferença
entre a liberalização
e a simples
despenalização do
aborto tem decerto profundas
implicações constitucionais.
Se, no limite, se
poderia
talvez
defender que a
simples descriminalização é
compatível com o
princípio da inviolabilidade da
vida humana, ficando
esta protegida por
formas de
tutela
jurídica sem carácter
penal, já,
porém, a li-beralização, no
sentido de tornar a
interrupção voluntária
da gravidez
um acto
lícito não
condicionado por
qualquer causa
justificativa, me
parece inconciliável
com o princípio
da inviolabilidade
da
vida humana,
razão pela
qual entendo que
deveria ser mantida a
jurisprudência deste
Tribunal, fixada nos
acórdãos n.ºs 25/84 e 85/85,
apenas compatível
com o sistema das
indicações. Fica,
assim, igualmente
fundamentado o meu
voto de vencida quanto
à alínea j)
[actual al. i) do n.º 1] do
mesmo n.º 1.º
Fica de
igual modo justificado
que, na falta de
objecções à formulação
da
pergunta, me teria pronunciado no
sentido de considerar preenchidos
os requisitos
de realização do
referendo que, na
perspectiva atrás
desenvolvida, incumbe ao
Tribunal, neste
momento, apreciar, possibilitando
assim o conhecimento
qualificado da concepção
dominante sobre a
matéria em
causa. Tendo, porém,
em conta as
considerações precedentes, votei
contra o segundo ponto da
decisão.» — Maria dos
Prazeres Pizarro
Beleza.
Declaração de
voto
Votei vencido
quanto às alíneas e),
g) e i) do n.º 1, e, consequentemente,
quanto ao n.º 2 da
decisão, pelas razões
que passo a
expor:
1 — A
minha discordância
em relação à
alínea e) assenta
fundamentalmente nas
razões expostas na declaração de
voto que juntei ao
acórdão n.º 288/98 (a
que pertencem os
passos retomados
seguidamente). A meu
ver, as exigências,
constantes dos artigos
115.º, n.º 6, da Constituição,
e 7.º, n.º 2, da
Lei Orgânica do
Regime do Referendo, de que as
perguntas objecto de
referendo sejam formuladas
com objectividade,
clareza e precisão,
são cruciais
para assegurar a correcção e a
idoneidade
democrática do procedimento referendário.
Elas visam permitir aos
eleitores a leitura e
compreensão acessível
e sem
ambiguidades da pergunta,
evitando “que
a
vontade expressa dos
eleitores seja falsificada
pela errónea representação das
questões” e eliminando a
possível sugestão de
respostas, directa ou
implícita (J. J. Gomes Canotilho/Vital
Moreira,
Constituição da
República Portuguesa anotada, 3.ª ed., Coimbra,
1993, anot. X ao art. 118.º).
Requer--se, assim,
“a minoração, na medida
do
possível, do risco de
leituras e
entendimentos da questão
pelos seus
destinatários que
possam — directa
ou implicitamente, por
interrogações ou
ambiguidades
que suscitem no
eleitor — apontar
para uma das respostas
alternativas.
Sendo esta a
finalidade precípua
das referidas exigências,
impõe-se
concluir que
elas devem ser apreciadas a
partir justamente do
ponto de vista dos
destinatários, considerando
mesmo, mais do
que um
‘tipo
médio’ de
eleitor, um
tipo de eleitor
com graus de
instrução e literacia
abaixo da média, e
não podendo, assim, a
precisão e o rigor
técnico-científicos da questão
prevalecer, na
medida em
que sejam susceptíveis de afectar a
clareza para
aquele tipo de
eleitor. Por
outro lado,
clareza e objectividade afiguram-se-me
necessariamente atributos
relativos, podendo dizer-se
que esta ou aquela
formulação é mais
ou menos
clara, ou
mais ou
menos objectiva, em
termos de respeitar os
requisitos
constitucionais e
legais mínimos,
mas tendo de considerar-se neste
juízo a maior
ou menor frequência do
uso de certas
expressões na
linguagem acessível
aos destinatários
da questão,
bem como a
existência de expressões
ou
formulações
alternativas, muito
próximas ou
praticamente equivalentes,
mas significativamente
mais claras e
objectivas”.
Continuo a
considerar que a
pergunta proposta
não satisfaz o
requisito de objectividade, designadamente,
por o enquadramento na
frase da expressão
“em
estabelecimento
legalmente autorizado” se afigurar
susceptível de conduzir
a um
enviesamento da resposta,
ou, pelo
menos, de despertar
dúvidas nos
destinatários. Com efeito, “a
condição contida nesta parte final da
pergunta pressupõe a existência de
estabelecimentos legalmente autorizados
a realizar a interrupção voluntária da
gravidez por opção da mulher, mas estes
só existirão em caso de resposta
positiva à própria pergunta posta à
consideração do eleitorado. A hipótese
da pergunta pressupõe, pois, uma
resposta positiva, e pode predispor a
esta resposta por se entender que,
existindo estabelecimentos legalmente
autorizados a realizar a interrupção
voluntária da gravidez nas condições
definidas, seria paradoxal penalizar
esta interrupção”. A meu ver, este
ponto pode, pelo menos, continuar a
despertar dúvidas ao leitor que ignore o
estado actual da nossa legislação, no
que toca à inexistência de tal
autorização legal, e considero que o seu
esclarecimento não é de remeter apenas
para a campanha eleitoral, não devendo
permitir-se qualquer enviesamento da
questão a submeter a referendo. Nem
creio que à utilização do instituto do
referendo seja inerente o risco de tais
ambiguidades. Deve antes dizer-se, a
meu ver, que, não podendo simplesmente
elencar-se nomes ou símbolos (como nos
restantes actos eleitorais), e antes se
tendo que formular questões — tarefa
mais sujeita a manipulações e
distorções — “por maioria de razão, a
exigência de objectividade surge
acrescida” (assim, Maria Benedita
Urbano, O Referendo, Coimbra, 1998, p.
210). A resposta a este argumento, no
sentido da falta de objectividade da
pergunta, que se contém no Acórdão n.º
288/98 e foi retomada na presente
decisão (n.º 23), assenta, a meu ver,
num equívoco: o de separar a
autorização legal aos estabelecimentos
de saúde, a que se refere a questão, da
realização da interrupção da gravidez
por mera opção da mulher (diz-se, assim,
que, já hoje sendo possível efectuar em
certas condições a interrupção
voluntária da gravidez, já existem
“estabelecimentos de saúde legalmente
autorizados”). É claro, porém, que a
pergunta se refere — e é mesmo nesse
sentido que é entendida pelo
“destinatário normal” — a
estabelecimentos de saúde legalmente
autorizados a realizar a interrupção da
gravidez por mera opção da mulher, e tal
pressupõe já uma resposta positiva à
pergunta (exigir--se-ia, pois, pelo
menos, que se falasse de
“estabelecimentos de saúde que venham a
ser legalmente autorizados” a tanto).
Para
além desta reserva,
ficaram-me novamente
dúvidas quanto à
clareza do termo
“despenalização”, não
só em
face de hipóteses
alternativas, de
sentido equivalente
mas indubitavelmente
mais claras,
segundo o critério
que apontei e que
julgo decisivo,
como
em relação à
possível permanência
do juízo de
ilicitude
do aborto (embora
sem pena,
ou, mesmo,
fora do domínio
criminal).
2 — Votei
também vencido quanto
à alínea g)
do n.º 1 da
decisão, sobre o
universo eleitoral do
referendo
proposto.
Entendo
que no artigo 115.º,
n.º 12, da Constituição,
e no
artigo 37.º, n.º 2, da
Lei Orgânica do
Regime do Referendo, que se
referem a matérias
que
digam “também
especificamente
respeito” aos cidadãos
portugueses residentes no
estrangeiro: a)
não se prevê a participação dos
cidadãos portugueses residentes no
estrangeiro em
todos os referendos
nacionais (como
resulta da formulação
e da
própria localização
sistemática das referidas
normas); b) não se
requer um
interesse
específico apenas dos
cidadãos não
residentes, distinguindo-se a
fórmula empregue, por
exemplo, da do “interesse
específico”
que era exigido
para a delimitação dos poderes
legislativos das
regiões autónomas (trata-se de
matérias que digam
também especificamente
respeito aos cidadãos
não residentes em
Portugal).
A
meu ver, é
excessiva a exigência
de que a
matéria do
referendo “tenha a ver
com a específica
situação dos cidadãos portugueses residentes no
estrangeiro”, ou de
uma “particular
incidência
relativamente aos
interesses da
emigração portuguesa”.
Por isso
não é decisivo o
critério da aplicação da
lei penal no
espaço, em
que se baseia o presente
Acórdão, sem
aprofundar a dilucidação do sentido da
formulação
constitucional e
legal. Em
face destas, deve entender-se, a
meu ver,
que nas matérias
que digam “também
especificamente respeito”
aos
cidadãos não
residentes se incluem
ainda aquelas
que são susceptíveis
de interessar a
estes ao
mesmo título
que aos cidadãos
que residem em
Portugal, ou
simplesmente as que
não respeitem a um
interesse específico
destes cidadãos
residentes.
É o que
acontece, designadamente,
com alterações da
legislação nacional
que impliquem, ou
traduzam, uma alteração
fundamental nos
valores subjacentes à
ordem jurídica
nacional, ou uma “mudança
de
paradigma” na protecção de
bens jurídicos
fundamentais — como
seria, por
exemplo, o
caso (se esses
referendos fossem constitucionalmente
possíveis) com
referendos relativos à
reintrodução da pena
de morte
ou da prisão
perpétua. Como
resulta do que
direi a seguir, entendo
que é
igualmente o caso da
presente alteração da legislação
relativa à interrupção
voluntária da gravidez,
pelo facto de se passar a prescindir de
qualquer indicação
ou motivo
para a sua realização,
para além da
opção de um dos
progenitores.
Considerei,
pois, que
era de exigir o chamamento dos
cidadãos portugueses residentes no
estrangeiro a participar
no presente
referendo.
3 —
Quanto à discordância
em relação à
alínea i) do n.º 1 da
decisão, mantenho as
razões expostas na declaração de
voto anexa ao
acórdão n.º 288/98 —
Assim, acompanho a
consideração — que
vem, aliás,
no seguimento da
anterior
jurisprudência do
Tribunal e da maioria
da doutrina
— de que a
vida humana
pré-natal é abrangida
pela garantia de
inviolabilidade
constante do artigo
24.º da
Constituição. Com
uma formulação ampla, esta norma não se
limita a garantir um direito fundamental
à vida a todas as pessoas, mas consagra
igualmente uma tutela não subjectivada
do bem “vida humana em formação”, e, em
meu entender, impõe igualmente ao
legislador um correspondente dever de
protecção. Como se pode ler na referida
declaração de voto, aceito, porém, “a
tese de que esta protecção não tem que
assumir as mesmas formas nem o mesmo
grau de densificação da exigida para o
direito à vida subjectivado em cada
pessoa, bem como a tese de que tal
protecção se pode e deve ir adensando ao
longo do período de gestação.
Aceito,
ainda, que,
quando se verifique estarem
outros direitos
constitucionalmente protegidos
em conflito
com a vida
intra-uterina, se possa e
deva
proceder a uma tentativa de optimização,
não sendo esta possibilidade vedada
por qualquer
escala hierárquica de
valores
constitucionais —
embora defenda que a
inegável importância
do bem
‘vida
humana’,
como pressuposto necessário de
todos os outros
direitos, e, desde
logo, o seu carácter
de comando
prima facie (portanto,
mesmo
não invocando, nem a
específica estrutura
desse bem,
nem a
sua eventual
consagração numa
regra, assentes numa
lógica de tudo
ou nada),
sempre requerem, pelo
menos, a verificação
da existência
de um
direito em
conflito com
esse bem (…),
assim como a
definição, pelo
legislador, das
circunstâncias em
que a ponderação pode
conduzir a uma limitação da
tutela da vida
humana intra-uterina”.
O
que não acompanho é a
conclusão de que a
afirmada “concordância
prática”
entre a liberdade,
ou o “direito ao
desenvolvimento da
personalidade”, da
mulher e a protecção da
vida intra-uterina “possa
conduzir a desproteger
inteiramente esta
última nas primeiras
dez semanas
(durante as
quais
esse bem é
igualmente objecto de protecção
constitucional), por a
deixar à mercê de uma
livre decisão da
mulher, que se aceita
será lícita,
em
abstracto, ou
seja,
independentemente da
verificação de
qualquer motivo
ou indicação no
caso concreto”.
Por outras palavras,
não concordo com
que, pela
via da alegada harmonização prática dos
interesses em
conflito, a
Constituição permita chegar a uma
“solução dos
prazos”,
com aceitação da
total “indiferença dos
motivos” ou de uma
“equivalência
de
razões” para
proceder à interrupção
voluntária
da gravidez,
para a qual todas as
razões podem servir — “quer
seja realizada
por absoluta
carência de meios económicos e de
inserção social,
quer seja motivada
por puro comodismo,
quer resulte de um
verdadeiro estado
depressivo da mãe,
quer vise apenas,
por exemplo,
selar a destruição das
relações com o
outro
progenitor”.
Entendo
que a garantia da
inviolabilidade da
vida humana,
incluindo a vida
intra-uterina, pode
ter de ceder
perante outros
direitos ou
interesses
constitucionalmente protegidos, se se
verificar em
concreto a presença de
um motivo
constitucionalmente
relevante para a
realização da
interrupção voluntária
da gravidez,
pois “aquela garantia há-de
ter, pelo
menos, o conteúdo de
tutelar o bem em
causa contra a
liberdade da mulher de
prática de ‘aborto a
pedido’, sem
invocação de qualquer
motivo e, em
princípio, com
indiferença deste para a
ordem jurídica” — tendo
igualmente por
inconstitucional a solução de
total liberdade da
mãe quanto ao «destino»
de uma vida
humana que
já iniciou o seu
percurso, v., entre
outros, Maria Conceição
Ferreira da Cunha,
Constituição e crime,
Porto, 1995, p. 386; no mesmo
sentido Rabindranath
Capelo de Sousa, O
direito geral de
personalidade, Coimbra, 1995, p. 166, n. 241, e,
com uma análise
comparatística
das
soluções vigentes em
vários sistemas
europeus, João
Loureiro, “Aborto: algumas
questões jurídico-constitucionais (A
propósito de uma reforma legislativa)”, in
Boletim da Faculdade de
Direito, vol. 74, Coimbra, 1998, pp. 327-403 —
Ou seja, entendo que o
dever de protecção da vida
humana intra-uterina,
que a Constituição impõe,
não pode deixar de
ter como
conteúdo mínimo a protecção
contra a liberdade de
pôr termo a esta
vida intra-uterina,
sem invocação de
razões. Assim,
considero que
o
direito à liberdade da
mulher, bem
como o direito ao “livre
desenvolvimento
da personalidade”
—
direito que,
aliás, se refere aqui
apenas a um dos
progenitores, e, onde,
como se sabe, no limite
tudo poderia
caber (cf. Paulo Mota
Pinto, “O direito ao
livre desenvolvimento da
personalidade”, in Portugal-Brasil —
ano 2000, Stvdia Ivridica, 40, Coimbra, 2000, pp.
149-246) — não
são
suficientes para
fundamentar a desprotecção da vida
pré--natal, mesmo
nas primeiras
dez semanas, se
não forem reforçados
com a presença de uma
indicação no caso
concreto. E isto,
não curando sequer de
saber qual o
tipo de indicação
que seria
constitucionalmente
relevante ou a
quem deve competir avaliá-la —
pressuposto apenas
que
não basta a
mera opção da
mãe, desvinculada de
qualquer controlo
exterior.
Não
encontro, nem no
Acórdão n.º 288/98,
nem na presente
decisão, razões
que afastem a
relevância constitucional da “indiferença
dos motivos”
(a
consideração de que,
em nome da
liberdade de um dos
progenitores,
qualquer
motivo serve) para
destruir um bem
constitucionalmente
tutelado. Em
particular, é claro
que a referência ao
prazo das primeiras
dez semanas (n.º 31 da
decisão) apenas pode, na
própria lógica de
compatibilização com
a protecção da
vida intra-uterina,
seguida pelos
acórdãos de que
dissenti, servir
para
delimitar o momento
antes do qual
não existe qualquer
protecção. Já
não
existem argumentos para
fundamentar a
menor ponderação
em termos de “concordância
prática”,
justamente até às
primeiras dez
semanas, da
vida intra-uterina
que se reconhece tutelada na
Constituição, sendo
evidente que
mesmo tal
restrição a um
prazo inicial da
gravidez conduz ao sacrifício
total, pela
interrupção da gravidez, do
bem protegido.
Noto,
aliás, que o
presente aresto se recusou a considerar
concretamente quaisquer
elementos científicos,
como os emergentes da
chamada “revolução
ecográfica”, relativos
à
caracterização do
feto nas suas diversas
fases de
desenvolvimento, afastando-os
apenas com a
fundamentação, a meu
ver
extremamente
insuficiente, de que
“não dão,
em
si mesmos,
solução aos conflitos de
valores”, e resumindo o “valor
conflituante”, no presente
caso, à “liberdade da
mulher grávida”, ou ao
“livre
desenvolvimento da
personalidade”. Ora, a
“concordância
prática” exige,
como se sabe, o cumprimento de
um ónus de
argumentação jurídica
dirigido a fundamentar
o tipo de
concordância
a que se
chega, sob
pena de se esgotar numa
mera “fórmula
vazia” (no sentido de
ligar a estrutura da ponderação
a fazer
para a concordância
prática de direitos fundamentais
a uma teoria
da
argumentação jurídica
que remete para uma
teoria da argumentação
prática em
geral, v. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte,
Frankfurt, 1985, p. 154).
O referido ónus de
argumentação não é,
por outro
lado, cumprido com a
consideração genérica,
que ecoa mais do
que uma vez no
presente aresto (n.º 16 e 36), de
que, sendo a questão
em causa discutida, e objecto de
divisões profundas na sociedade, é
de admitir (mesmo
no
plano constitucional)
resolvê-la devolvendo a
decisão ao
voto directo do povo
soberano.
Independentemente de outras
considerações que
possa merecer
este
argumento (o próprio
Ronald Dworkin, Life’s Dominion. An
Argument About Abortion, Euthanasia and
Individual Freedom, 1993, pp. 154-159, citado no
Acórdão, conclui,
aliás, o tratamento da
relevância da coerção
na matéria
da
interrupção da gravidez no
sentido de que, se a
questão for a de saber se o
Estado pode impor
quer a proibição dessa
interrupção, “o facto de a
escolha
ser aprovada
pela maioria
não é melhor
justificação num caso
do que no
outro”), deve notar-se
que ele
não pode ser
relevante para o controlo da
constitucionalidade de uma
pergunta referendária. Na
verdade, o parâmetro de
constitucionalidade ou
a intensi dade do
respectivo controlo não variam
entre o controlo da constitucionalidade da
pergunta no referendo
ou de uma norma
jurídica aprovada
pelo parlamento
(por
exemplo,
um diploma
aprovado na sequência do
referendo), o que,
além do mais, se
torna evidente
logo que se
pensa, por exemplo,
em que
para o resultado do
referendo não
releva apenas uma
maioria constituinte
(a Constituição
proíbe,
aliás, o referendo
sobre alterações à
Constituição), mas
logo maioria
simples.
Não
pode, também,
merecer o
meu acordo a
fundamentação que
remete para a
harmonização entre a
vida intra--uterina,
por um
lado, e garantia de
uma maternidade
consciente,
por outro, e,
em termos de
conduzir ao sacrifício
geral desta durante as
primeiras dez
semanas.
Com efeito, subjacente “à
afirmação da licitude da interrupção
voluntária da gravidez com base na
garantia de uma maternidade consciente
parece-me estar uma visão do aborto como
meio de contracepção, ou, mesmo, de
planeamento familiar, que não considero
constitucionalmente admissível (a
garantia da maternidade consciente é,
aliás, prevista na Constituição a par do
direito ao planeamento familiar). E
mesmo que se considerasse que a garantia
da maternidade consciente tem uma
dimensão subjectiva que vai além do
planeamento familiar, podendo incluir o
aborto, não vejo o que poderia este
argumento acrescentar à invocação do
direito à liberdade, em termos de
prevalecer em geral, durante as
primeiras dez semanas, sobre a garantia
da vida intra-uterina, a qual, como
condição de base de todos os outros
direitos, assume uma posição-chave”.
Consideraria,
assim, a resposta
afirmativa à pergunta — na
medida em
que conduz à despenalização da interrupção
voluntária da gravidez
por opção da
mulher, e,
portanto,
com irrelevância dos
motivos invocados
para pôr termo à
gravidez — como
inconstitucional, por
violar o princípio da “proibição
da insuficiência”,
quanto à protecção da
vida pré-natal (o
“Unterma?verbot” — v.,
entre
nós, José Joaquim Gomes Canotilho,
Direito Constitucional e
Teoria da
Constituição, 7.ª ed., Coimbra, 2003, p. 273),
isto é, o “défice” de
tutela de um
bem cuja protecção é
constitucionalmente assegurada (sem
que esta garantia seja
afastada pela
proposta compatibilização
com outros
interesses
constitucionalmente protegidos).
Isto, uma vez
que, por
outro lado,
não se divisam outros
meios a que o
legislador possa recorrer
para proteger
esse bem, afirmando a
sua dignidade
ética para a
comunidade jurídica, e
que a protecção penal
é, apesar
de tudo, a
única que se pode
revestir de alguma eficácia
jurídica (e notando
igualmente que a
questão submetida a apreciação não
contende directamente com
a da punibilidade do
aborto clandestino,
não sendo sequer
líquido que uma
resposta positiva
viesse a contribuir
para a
diminuição deste, ou,
muito menos,
para a diminuição
geral do número de
abortos).
4 —
Por último, e
ainda a propósito da
alínea i) do n.º 1 da
decisão, discordei
também da
fundamentação empregue para
justificar a não
inconstitucionalidade de uma
resposta
negativa. O presente aresto inova
aqui em relação ao
Acórdão n.º 288/98 —
Mas a inovação,
com uma pronúncia
“incidental”
sobre o
regime vigente, passa, a
meu ver, ao
lado do objecto de
cognição do Tribunal
no presente
processo — a
constitucionalidade da pergunta
referendária — e é
mesmo contraditória
com o sentido
que se atribui ao controlo pelo
Tribunal, a propósito da resposta
positiva.
Com
efeito, já
desde o Acórdão n.º
288/98 se entendeu que
ao
Tribunal não cabe, a
propósito do controlo da constitucionalidade de uma
pergunta de um
referendo destinado a propor uma
alteração do regime
vigente, pronunciar-se
sobre o concreto
regime jurídico,
em vigor
ou que viesse
provavelmente a ser
aprovado.
Antes lhe cabe
apenas apreciar se uma das
respostas à pergunta,
ou eventualmente as
duas, implicam necessariamente uma
solução
inconstitucional — implicação
necessária, esta, avaliada,
naturalmente, em
relação aos efeitos do
referendo, com
os
correspondentes
deveres de agir
ou de não
agir da Assembleia da República
delimitados pelo
teor da
pergunta a que se respondeu (cf.,
falando de acto legislativo
correspondente às
perguntas objecto de
resposta, ou de acto
“de sentido
correspondente”, os
artigos 241.º e 243.º da
Lei n.º 15-A/98, de 3 de
Abril). Justamente
por isso se afirmou no
Acórdão n.º 288/98 que
podem existir
outros
elementos (como a
exigência de um
aconselhamento da mulher)
que, não constando da
pergunta, poderiam, porém,
vir a ser
previstos na
legislação aprovada na
sua sequência (n.º 52).
Uma
resposta negativa
apenas impede, pois, o legislador
de alterar o
regime vigente no sentido
correspondente
à pergunta. E aplicado
a tal
resposta, o critério
para a sua inconstitucionalidade —
repete-se: o da implicação
necessária de uma solução
inconstitucional — significa que a
resposta negativa
só seria inconstitucional se
existisse uma imposição
constitucional de alteração do
regime vigente
justamente no sentido
previsto na pergunta,
isto é, se a única
alteração
constitucionalmente
aceitável fosse a correspondente
ao sentido
da pergunta.
Já outras alterações (tal
como os
outros elementos
que poderiam ser
previstos
em
caso de resposta
positiva) não seriam
abrangidas pelo
efeito do
referendo. Resulta daqui,
com toda a
linearidade, que o
Tribunal, a entender
tratar desenvolvidamente da questão de
saber se a resposta
negativa implicava necessariamente uma
solução inconstitucional —
diversamente do
Acórdão n.º 288/98,
que se limitou a remeter o
problema da manutenção
da incriminação
para a
liberdade de
conformação do
legislador (não
deixando, a este
propósito, de
responder àquela questão) —, haveria de
ter apurado se o legislador
estava constitucionalmente
vinculado a
alterar o regime vigente
justamente no sentido
correspondente à
resposta
positiva.
Não
foi, porém,
assim
que o presente
Acórdão entendeu dever
abordar a questão,
antes se pronunciando (n.º 35)
sobre o regime vigente —
com considerações
relativas ao “sistema
vigente”
ou a uma “solução
mais abrangente no
sentido da exclusão da
responsabilidade” (itálico
aditado).
Tais considerações
não tinham, a meu
ver, lugar no
contexto do presente
Acórdão, mesmo
que fossem movidas
pelo intuito de
atalhar a qualquer alteração do
regime vigente num sentido
mais restritivo —
àquilo que (destoando
numa decisão
judicial
que, além do
mais, tem de pronunciar-se
sobre a objectividade da pergunta
referendária) o Acórdão
qualifica, noutro
passo (n.º 5), como
um “retrocesso” num
sentido criminalizador. Pois
tal alteração nunca
esteve em
causa
nem pode ser “implicação
necessária” de
qualquer uma das
respostas à pergunta. — Paulo
Mota
Pinto.
1 — Votei vencido
quanto à decisão
constante da alínea e), na
parte em
que, aí, se julga
que a pergunta formulada na
proposta de referendo
satisfaz os requisitos
da
objectividade e da
clareza; votei com
dúvidas a decisão
constante da alínea g)
e votei vencido quanto
à
decisão constante da
alínea i), na parte
em que
aí se considera que a
resposta afirmativa à
pergunta formulada não implica
necessariamente uma solução
jurídica incompatível
com a Constituição,
todas as alíneas
do ponto 38 do
acórdão.
Tal
posição fundamenta-se nas
razões que
passo, sucintamente,
a expor.
2 —
Antes de as dar a
conhecer, não posso,
porém, deixar
passar em
branco a convocação feita no
Acórdão [Parte II,
ponto 9, epigrafada de “Enquadramento actual da
questão objecto da proposta de
referendo”] à cultura
bíblica enquanto
razão
tida como
susceptível de
concitar dúvidas,
no plano da
racionalidade, sobre
“a perspectiva
doutrinária de que o
crime reclama sempre a
punição e não
outra forma de
superação”, por,
ali, “o mal do
pecado — que é a
separação de Deus — é
[ser] superado
pelo
perdão e pela
graça”.
Na verdade,
tal abordagem
apresenta-se efectuada não
só em
termos ambíguos,
como não consegue
afastar,
igualmente, a
suspeita de que a
sua referência poderá
ser vista como estando,
subliminar e utilitariamente, funcionalizada
para gerar alguma aceitação
da doutrina
do acórdão
por parte de
alguns sectores
sociais que seguem,
ou estão
próximos de tal
cultura, como
regra de conduta da
sua
vida.
Omite-se
ou ignora-se, porém,
que, na doutrina
bíblica, não
tem
qualquer pertinência,
no plano da
racionalidade, a afirmação da
existência de qualquer
relação ou
sequer conexão,
em termos de
simples
correspondência, e
muito menos
em termos de
equivalência, entre
crime e pena.
Estes são
conceitos que, nesse
domínio, são
totalmente
imprestáveis. No plano
de relação
entre o
Homem e Deus
não há lugar
para a existência das
figuras de crime e de
punição.
Segundo a
doutrina bíblica, Deus
é, em
Si
próprio, Amor e
Vida. Por
mor do acto de
criação, Deus
estabelece com
o Homem
uma relação
pessoal de
Amor. O pecado
consiste, assim,
em
um corte,
voluntário e
consciente, do Homem
com a fonte da
sua Vida e de
Amor que
apenas acontece quando
aquele repudia,
consciente e voluntariamente,
a
vontade manifestada de
Deus. O mal do
pecado traduz-se, pois,
assim, no “sentimento”
ou “efeito” de
privação ou de
falta que a
pessoa criada,
por puro acto de
Amor, tem
relativamente ao seu
Criador, por se
ter por abandonada
quando, de acordo
com o seu acto de
criação, continua a “ansiar”
por Ele. A
restauração da relação
pessoal de Amor
entre o Homem e
Deus representa o fim
desse “sofrimento”, resultando de
puro acto de
misericórdia, próprio
do Amor do
Criador, em
face do acto de
arrependimento da pessoa
criada, traduzido na
sua reconciliação com
o Criador.
Não
tem, pois,
qualquer
sentido ou
utilidade a descontextualizada convocação da
doutrina bíblica para o thema
decidendum. Ao invés,
o
que resulta dessa
doutrina é que,
correspondendo a vida
a
um acto pessoal do
Amor de Deus,
não deverá o Homem
negar a sua
contínua revelação
real, no devir do
tempo e dos
tempos.
3 —
Segundo penso, a
pergunta formulada aos eleitores
não é clara e
objectiva.
Note-se
que se trata de
exigências
constitucionais
(artigo
115.º, n.º 6) e
não só de
requisitos conformados pelo
legislador ordinário
(artigo 7.º
da Lei
Orgânica do Regime do
Referendo).
Como
tal, o sentido
que se lhes deve
conferir, tem de ser, no
meu ponto de
vista, um
sentido que se
conjugue, com
a máxima
expansividade de protecção, decorrente da
sua natureza de
direitos e garantias
fundamentais (artigo 18.º, n.º 2, da
Constituição da
República Portuguesa — CRP)
com o princípio
democrático do direito
à participação política
e do
direito ao sufrágio e
ao respectivo
exercício (artigo
48.º e 49.º da CRP).
Sendo
assim, a pergunta há-de
poder ser
entendida, em
toda a sua
extensão, quanto ao
seu conteúdo e
projecção da resposta,
por quem,
nos termos
constitucionais e legais, poderá
ser eleitor.
Deste
modo, não pode o
grau de exigência
desligar-se do universo
real que constitui
esse colégio
eleitoral.
Assim, suscitam-se-nos
ponderadas dúvidas
sobre a clareza da
pergunta na medida
em que
tal qual a
pergunta é feita, esta supõe
que o eleitor,
para poder fazer
um juízo
ponderativo-decisório, conheça
qual o
regime vigente quanto à penalização da
interrupção voluntária
de gravidez e,
nomeadamente, as
suas actuais causas de
desculpabilização e de
justificação.
Ora,
parte relevante dos
eleitores não será
detentora de tais
conhecimentos.
Além
de que, a
pergunta faz
apelo a conceitos de
matriz
técnico
-jurídica, como
sejam os de “despenalização da
interrupção voluntária
da gravidez”, “por
opção da mulher”,
cuja inteligibilidade
escapa a grande
parte do colégio
eleitoral, bem podendo,
por isso,
gerar a dúvida aos
eleitores sobre se
eles não estão
assumidos na proposta
em sentido
diferente daquele pelo
qual essa realidade
empírica é expressada
comummente, em
linguagem vulgar,
mas que é a
seguida, normalmente,
na comunicação
política:
aborto e
completa liberalização
dentro das 10 primeiras
semanas, desde
que a mulher o queira
e o mesmo
seja efectuado
em estabelecimento de
saúde legalmente
autorizado.
Para
além disso, a utilização da
expressão “estabelecimento de
saúde legalmente
autorizado” é, também,
equívoca,
pois permite tanto uma
acepção de
estabelecimento de
saúde (público
ou privado),
autorizado, apenas,
para a
prática do aborto nas
condições propostas,
como a de
estabelecimento
(público
ou
privado) autorizado, de prestação de
serviços de saúde
(pública),
que pode
praticar, igualmente,
esses e outros actos
abortivos, cuja
prática já
não é punida no regime
vigente.
E, do
mesmo passo, a
pergunta não é objectiva
nem neutra no
que importa à sua
intencionalidade.
Na verdade, a
referência a “estabelecimento
de
saúde legalmente
autorizado”, para a
prática da
interrupção voluntária de
gravidez, por
opção da mulher, nas
primeiras 10 semanas
de gravidez,
deixa entender
que a condição
apenas existirá no
caso prevalecer a
resposta positiva,
dado esse acto, nas
condições propostas,
não ser
hoje autorizado em
qualquer
estabelecimento de
saúde, predispondo
por isso a uma
tal resposta
para que a
condição seja
possível.
Por
outro lado, a
previsão de que o
aborto, por
simples opção da
mulher, dentro do
prazo assinalado, será
efectuado em
estabelecimento de
saúde legalmente
autorizado sugere uma ideia de
completa inexistência de
quaisquer
outros valores
constitucionais ou
legais que tenham de
entrar em
confronto com a
opção da mulher,
ou seja, uma ideia de completa
liberalização do aborto,
desde que realizado
dentro do prazo das 10
semanas e em
estabelecimento
de
saúde autorizado.
4 — Votei,
ainda, com
dúvidas quanto à
questão do universo subjectivo
eleitoral.
Não
tendo, todavia,
chegado a um
juízo de não
conformidade
constitucional,
outra solução
não poderia
aceitar que a da aplicabilidade
do princípio
da
presunção de
constitucionalidade.
Diz o n.º 12 do
artigo 115.º da CRP
que “nos referendos
são chamados a participar
cidadãos residentes no
estrangeiro,
regularmente recenseados ao abrigo
do disposto
no n. º 2 do
artigo 121. º, quando
recaiam sobre
matéria
que lhes diga
também especificamente
respeito”.
Na verdade, se é
certo que, na
aplicação da lei
penal, vigora o
princípio da territorialidade (artigo
4.º do Código
Penal) e que os
cidadãos portugueses residentes no estrangeiro
não estão, em
regra, sujeitos à
aplicação da lei
penal, salvo nas
condições limitadas do
artigo 5.º, n.º 1, alínea c), do
mesmo código,
argumentos estes
que apontam para a
solução da não
inconstitucionalidade do
universo
eleitoral adoptado,
também não o
deixa de ser
que a
questão pode
ser vista
fora do enfoque,
apenas, da conexão
com o direito
penal, podendo argumentar-se
que, estando em
causa uma alteração tão
profunda ao sistema de
valores jurídicos do
direito pátrio, essa
alteração não
é de
todo indiferente à
situação dos portugueses residentes no
estrangeiro, enquanto
cidadãos que tendem a
reger a sua
vida por
esses valores e
esse direito e deles
dão expressão
nos
locais onde vivem.
Neste aspecto,
estar-se-ia perante
“matéria
que
lhes diria [diz]
também
especificamente
respeito”.
Tal
solução seria postulada, de
resto, pela
mesma lógica
substancial que
justifica a participação dos
portugueses residentes no
estrangeiro nas
eleições para o
cargo de Presidente da
República, podendo encontrar-se
em tal
circunstância a
coincidência de
universo eleitoral
estabelecida no referido n.º 12 do
artigo 115.º da CRP. A
participação dos portugueses, nestas
eleições, também se
explica pelo facto de
estar
em causa a
instituição representativa do
povo português e dos
valores
constitucionais que
sedimentou na sua
Constituição. Subsistem-me,
porém, dúvidas
sobre se a Assembleia da
República não
goza de discricionariedade normativo-constitutiva,
relativamente às
situações em
que a matéria objecto
do referendo
não diga directamente
respeito aos portugueses
residentes no estrangeiro
enquanto
tal, como é o
caso.
5.1 —
Finalmente, votei vencido
quanto à decisão
constante da alínea
i) do ponto 38 do
acórdão, na
parte em
que aí se considera
que a resposta
afirmativa à pergunta formulada
não implica necessariamente uma
solução jurídica
incompatível com a
Constituição.
Não
irei expor
longamente os
fundamentos jurídico--constitucionais
com base
nos quais se considera
que a vida
humana uterina tem
consagração e protecção constitucionais
nos termos do
artigo 24.º, n.º 1, da
nossa Lei
fundamental. E não o
farei, exactamente, porque,
quer o Acórdão n.º
288/98, ao qual
constantemente se arrimou,
aí de modo
inequívoco, quer o
presente Acórdão
não deixam de pressupor,
ainda que, neste, de
forma não
tão impressiva, que a
vida uterina tem protecção constitucional,
correspondendo a um
direito ou
garantia
fundamentais.
Depois,
porque acompanho, no
essencial, os votos
apostos àquele
Acórdão n.º 288/98
pelos senhores
conselheiros que
votaram vencido e
que aqui se recuperam.
Nesse ponto — e
com naturais
reflexos, como
não poderá deixar de
ser quanto à
solução desta questão — a
nossa discordância
com o acórdão reside,
essencialmente,
na
intensidade de protecção jurídico-constitucional
que se entende derivar de
tal preceito,
quer no que importa à
dúvida, nele concitada,
sobre a titularização/subjectivação do
direito à vida
humana no artigo 24.º,
n.º 1 da CRP, quer
na
resposta a dar
quando esse
direito ou
garantia
fundamentais entrem
em conflito
com outros
direitos da mulher,
mormente, a agora
designada “liberdade
de manter
um projecto de vida” “como
expressão do
livre desenvolvimento da
personalidade”.
Não
obstante isso — e
com referência à
metodologia seguida —
não é de passar
em branco
que o acórdão,
ansiando, porventura,
acentuar os
argumentos que, na
sua óptica, abonarão a
favor da não inconstitucionalidade
de uma solução
jurídica
perspectivada na senda
de uma resposta
afirmativa
ao referendo,
discorre,
essencialmente, sobre
um diálogo de
ponderação entre os
direitos
fundamentais,
susceptíveis de entrarem
em
conflito, a partir de uma “configuração
mais
radical” do âmbito da
protecção da vida
humana, como se a
solução passasse, no caso
concreto, por essa
linha de protecção, esbatendo a existência, no
direito vigente, de
causas de desculpabilização e de
justificação que dão
expressão, num plano
autónomo e exterior,
às
exigências demandadas, no
caso, por
um juízo ponderativo
de concordância
prática
entre os direitos tidos
como estando em
conflito.
Ao
contrário do suposto
como elemento de
argumentação, não
se afirma,
nem se viu alguma vez
defendido na ciência
jurídica, que, tendo
por referência a
vida pré-natal e
pós-natal, “tenha de existir uma
protecção penal
idêntica
em todas as fases da
vida”, como
postulado ou
decorrência da
inviolabilidade da
vida humana
ou que haja “uma
argumentação a favor da
inconstitucionalidade [da resposta
afirmativa ao
referendo] que nivele
a vida
em
todos os seus
estádios”.
Tal
princípio
constitucional não
demanda que a
protecção penal
da
vida humana tenha de
ser idêntica,
em intensidade, em
todo o continuum da
vida e em todas as
circunstâncias de facto.
O
que o princípio da
inviolabilidade da
vida humana reclama é
que a violação do
direito à vida
(uterina e pós--uterina) tenha,
sempre, protecção
penal, valendo, dentro
dos diferentes
níveis
dessa protecção, os
princípios gerais de
direito criminal, de
matriz, igualmente,
constitucional, da
justificação do facto, da
culpa e do estado de
necessidade.
Assim,
não está o legislador
ordinário impedido, em
geral, de conformar
diferentes níveis de
protecção criminal,
expressos, maxime, no
recorte do facto ilícito
típico e da pena,
para os diferentes
momentos e
circunstâncias do continuum
em que se desenvolve a
vida humana,
diferenciando, dentro
dele, a
vida intra-uterina da pós-uterina. O
que a Constituição
reclama é que,
salvo a
existência de causas
de desculpabilização ou
de
justificação, a vida
seja penalmente
protegida.
Em
segundo lugar, o
argumento de que
não existe “uma linha
de inflexível
necessidade lógica”,
como afirma o acórdão,
entre a definição da
inviolabilidade da
vida humana e a
intervenção penal,
“nomeadamente pela
interferência de
perspectivas de
justificação, de
desculpa ou
ainda de afastamento da
responsabilidade
devido “à necessidade
da pena”
assenta
sobre uma patente
incongruência lógica,
dado que as
dimensões alegadas para
afastar a intervenção penal
são já
institutos que
pressupõem, necessariamente,
a
existência dessa protecção
penal.
Em
terceiro lugar, a
convocação do entendimento
seguido no referido
Parecer do Conselho
Consultivo da Procuradoria-Geral da
República, segundo o
qual na mente dos
constituintes do
artigo 24.º, n.º 1, da CRP
não caberia a protecção da
vida uterina só teria
sentido para
quem — posição
que parece não
ser, de modo assumido, a do
acórdão e não
é,
seguramente, a do Ac. 288/98,
em que
constantemente se
abona, nem dos
votos de vencido a
eles apostos —
seguisse uma tese
radical de exclusão do
âmbito de protecção conferida
por
tal artigo da
vida intra--uterina.
5.2 — Sendo,
assim, admitido como
está, pelo
acórdão e
por todos os vencidos,
que a vida
humana intra-uterina
goza de protecção
constitucional, o que
importa saber, é se, a
operação de
concordância prática dos
direitos e valores
constitucionalmente
relevantes, presentes
no caso,
que o
acórdão levou a cabo
se apresenta efectuada com
respeito pelo
princípio
constitucional que
emerge do artigo 18.º, n.os 2 e 3 da
CRP.
Por
nós, temos por
seguro que
não. E firmamos esse
juízo, essencialmente,
nas seguintes
considerações.
Desde
logo, porque
não deixa de
impressionar-nos que
o
acórdão perspective a
tutela de
inviolabilidade da
vida humana,
estabelecida no artigo
24.º, n.º 1, da CRP, desligada
do ser
que constitua o seu
titular, acabando por reduzir,
subliminarmente,
segundo uma óptica
radical que
tanto critica, o seu
âmbito de protecção
apenas aos fetos
com mais de 10
semanas de gestação e
às pessoas
nascidas.
Ora,
não vemos, como
melhor se verá
adiante, que
tenha sentido
falar-se de
inviolabilidade da
vida humana
sem ser
por referência ao
ser que dela seja
titular, seja este
ser já uma pessoa
ou apenas
um ser a
caminho de ser
pessoa (cf. Laura Palazzani, Il
concetto di persona tra bioetica e
diritto, Torino, 1996; A. M. Almeida
Costa, “Abortamento provocado”, in
Bioética, AA. VV.
Coordenada por Luís
Archer, Jorge Biscaia e Walter Osswald,
Lisboa, 1996, pp. 201 e segs., e João
Carlos Loureiro,
“Estatuto
do
Embrião”, in Novos
Desafios à Bioética,
AA. VV., coordenada por
Luís Archer, Jorge Biscaia, Walter
Osswald e Michel
Renaud,
Porto 2001, pp. 110 e segs).
Do
mesmo passo,
não se compreende que
se erija a essencial
fundamento da tutela
constitucional devida
ao embrião/feto
o
princípio
constitucional da
dignidade humana,
quando este
princípio supõe,
precisamente, a existência de
um ser dotado de
vida humana e o
preceito do artigo 24.º, n.º 1, da
CRP não
só
não aponta em
qualquer
sentido restritivo,
como corresponderia a uma solução
contrária ao princípio
da “máxima efectividade
e
expansividade” dos
direitos e garantias
fundamentais,
constantemente,
invocado para
justificar a inclusão
nos direitos
fundamentais de
realidades que
suscitam alguma dúvida.
Por
outro lado, o
acórdão não realizou
qualquer juízo de
concordância prática
entre os dois
valores ou
direitos
constitucionais, tidos
como estando em
conflito: o direito do
ser, “embrião/feto
humanos”, a nascer e a “liberdade
da mulher a
manter um projecto de
vida, como
expressão do livre
desenvolvimento da sua
personalidade”. E não
efectuou, porque,
pura
e simplesmente,
para
fazer prevalecer este
último, rejeita a titularização, no
âmbito do artigo 24.º,
n.º 1, da CRP (subjectivação
constitucional), do
direito à vida
humana e, decorrentemente, do
conteúdo essencial do
direito do feto a
nascer, admitindo a possibilidade de,
sem censura
penal, lhe
tirar a vida
humana.
De
qualquer modo,
pressuposta, como
se defende na
doutrina e
jurisprudência
constitucionais, a
inexistência de hierarquia
entre direitos
constitucionais,
precisamente com
base na identidade da
sua fonte,
nunca a colisão de
direitos constitucionais
poderá
ser resolvida, pelo
legislador ordinário,
com base num
critério normativo de
prevalência da
liberdade da mulher a
manter um projecto de
vida à custa da
morte do feto,
titular constitucional de
vida humana e da
respectiva
dignidade.
A
operação de
concordância prática
entre direitos
constitucionais, posicionados
como estando em
conflito, demanda a
realização de um
juízo de ponderação
(legislativa
ou
judicial) que
dê satisfação ao
princípio
constitucional da máxima
efectividade de protecção dos
direitos e garantias
fundamentais.
Tal
equivale por
dizer
que esse
juízo deve efectuar-se de
modo a tentar
obter uma optimização do âmbito de
eficácia da protecção
constitucional conferida a
tais direitos e que
nunca poderá chegar a
um resultado de eliminação
de um
deles em
favor do
outro, pois, neste
caso, está-se,
radicalmente, a eliminar o
conteúdo essencial do
preceito constitucional
que reconhece a
inviolabilidade da
vida humana, na
sua expressão de
direito do titular da
vida humana uterina a
nascer e a violar-se frontalmente
o disposto
na parte
final do artigo 18.º,
n.º 3, da CRP.
[E a solução
não varia se se fizer radicar,
segundo a lógica
dubitativa que
o
acórdão admite, a
tutela constitucional do titular
embrião/feto no
princípio da dignidade
de vida
humana —
lógica essa, diga-se,
incongruente, se referida à
dignidade do
embrião/feto,
por essa dignidade da
vida humana
supor a existência da
vida humana e de
um seu
titular, ou,
então, contraditória,
se a alegada dignidade disser
respeito à
mulher grávida, por,
nesse caso,
inexistir a perspectivada
situação de
colisão de direitos].
Por outro
lado, o juízo de
concordância prática
não pode deixar de
ter presente a
estrutura e natureza
dos concretos direitos
ou garantias
constitucionais, que
se apresentam como
estando
em conflito,
mormente para avaliação dos
resultados sob a
óptica do princípio da
proporcionalidade, na sua
dimensão de justa
medida, ao qual deve
obediência.
Ora, nesta
sede, não
deve desconhecer-se que
estão
em causa
direitos ou
garantias
constitucionais em
concreto, radicados em
diferentes titulares
constitucionais: de um
lado, a liberdade da
mulher grávida a manter
um projecto de vida e
do outro o
direito do
concreto
embrião/feto a
nascer, em
cada situação de
gravidez. Cada
situação de gravidez gera uma
situação de existência
de um
concreto
titular do direito à
vida humana a
nascer.
Nesta
perspectiva, cabe acentuar
que a Constituição,
sempre que
quer conferir uma
especial intencionalidade protectora
ou eficácia do
âmbito de protecção constitucional a
certos direitos
ou garantias
constitucionais, usa
expressões reveladoras desse
significado, como o
adjectivo “inviolável”
ou expressões de
exclusão como
“ninguém”, “quaisquer”, etc. (cf.,
por
exemplo, quanto ao
primeiro caso,
os
artigos 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1 e 34.º, n.º 1, e,
quanto ao segundo
caso, os artigos 26.º,
n.º 1, 27.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, e, a
ambas as
situações, o artigo
13.º, n.º 2).
O
direito à vida
humana é protegido
pela Constituição
(artigo
24.º, n.º 1)
como direito
inviolável. O vocábulo
“inviolável” só
poderá significar
que se trata de
um direito
que não poderá
ser violado em
caso algum,
mesmo pelo
Estado legislador.
Nesta óptica,
apenas, se conceberão
causas de
exclusão que
consubstanciem, perante
a
Constituição,
situações de não
violação, como sejam
as causas constitucionais
de desculpabilização
ou de justificação.
Trata-se, deste
modo, de um
direito ou
garantia constitucional
que se encontra dotado
de uma especial
força
de tutela
constitucional. E bem se
compreende que
o seja,
porquanto se trata de
um direito fundante de
todos os outros, de
um direito
que é pressuposto necessário de
todos os outros,
pois sem
titulares de vida
humana não poderá
falar-se em
dignidade
humana ou
sequer constituir--se
comunidade organizada
em Estado de
direito
democrático.
Ao
contrário, o direito
ou garantia
fundamental que se
apresenta em
colisão
com ele — a
liberdade da mulher a
manter um projecto de
vida como
expressão do livre
desenvolvimento da sua
personalidade — não se
apresenta dotado
constitucionalmente de
uma
tal força
excludente de
lesão.
Na verdade, essa
liberdade é não a
liberdade a que se
refere o artigo
27.º, n.º 2, da CRP, a
liberdade física
ou liberdade de “ir e
vir” — essa sim dotada de
tal força excludente
— mas
sim uma
específica dimensão do
princípio do
desenvolvimento da
personalidade, consagrado no
artigo 26.º, n.º 1.
Assim sendo. Existente
um direito à
vida humana
titularizado no ser
resultante da partogénese
celular, ser
esse diferente,
não só biológica e
geneticamente (cf. Fernando J.
Regateiro, Manual
de
Genética Médica,
Coimbra, 2003, pp. 310 a 312 e Fernando
Regateiro, “Doenças
Genéticas”, in
Comissão de
Ética — Das
Bases Teóricas à
Actividade Quotidiana, AA. VV.
Coordenada
por
Maria do Céu
Patrão
Neves, 2.ª edição,
Coimbra, 2002, pp. 351 e 352),
como
também
constitucionalmente (cf.,
entre outros, João
Carlos Loureiro,
“Estatuto
do Embrião”,
in Novos
Desafios à
Bioética, AA. VV.,
coordenada por Luís
Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald e
Michel Renaud, Porto
2001, pp. 110 e segs., e A. M. Almeida
Costa, op. cit., pp. 210
e segs.), do ser da
sua mãe
ou mulher grávida —
seja ele
já uma
pessoa ou
não, mesmo numa
acepção constitucional — e podendo
ele estar
em colisão
com o direito a
manter um projecto de
vida como
expressão do livre
desenvolvimento da sua
personalidade, titularizado na
mulher grávida, não
pode deixar, numa
ponderação de
concordância prática
dos valores
constitucionais, de adoptar-se, do
ponto de vista da
sua estrutura e
natureza
constitucional, uma solução
que não acarrete o
sacrifício do titular da
vida
humana.
Anote-se, de
resto, que
só o (implícito)
reconhecimento de uma
alteridade de
titularidade
constitucional do ser
embrião/feto
em relação à
sua mãe é
que justifica que o
próprio acórdão, na
esteira, aliás, do de
1998, procure intentar
uma demonstração de
existência de
concordância prática
entre o direito
titularizado da mulher
grávida e o
direito respeitante ao
embrião/feto.
O aborto importa a
morte do concreto
titular da vida
humana, do concreto
embrião/feto.
Com ele extingue-se o direito
de se desenvolver no seio materno (e de
mais tarde nascer), de acordo com a
informação codificada no DNA, a
vida humana
do concreto
feto
advindo do específico ovo
ou zigoto,
este, por
sua vez,
resultante da fecundação do
concreto ovócito pelo
concreto espermatozóide. O ser
irrepetível advindo da partogénese
celular
deixa de existir, saindo violado,
por completo, o
seu direito à vida
humana.
Pelo
contrário, o prosseguimento da
vida uterina não
extingue a liberdade
da
mulher a manter
um projecto de vida
como expressão do
livre desenvolvimento
da sua
personalidade,
mas tão
só, quando
muito, a obriga a que
adapte, para o
futuro, o
seu projecto de vida
às novas
circunstâncias, tal
qual pode acontecer
por força de muitas outras
circunstâncias
possíveis
naturalisticamente,
como, por
exemplo, a doença, o desemprego,
acidentes, etc.
Ela
continua a ser
titular de
um direito
pessoal ao livre
desenvolvimento, de o poder
exercer e manifestar, repetidamente,
em todas as outras
condições da sua
vida. Seguindo a
lógica do acórdão, a
mulher grávida manterá a
sua liberdade de
desenvolver o seu projecto de
vida quantas as vezes
que optar
pela interrupção da
gravidez. Porém, em todas essas
vezes, ocorrerá a
extinção do direito à
vida humana de
um concreto
titular — o concreto
feto em
gestação.
Nesta
linha de pensamento,
há-de convir-se que
a interrupção
voluntária de gravidez,
por opção da
mulher, nas primeiras 10
semanas de gravidez, assume
tão só a natureza de
um simples
meio de contracepção
ou mesmo de
planeamento familiar
cuja determinação do
concreto conteúdo corresponde a
um direito
absoluto da mulher
grávida, fazendo irrelevar,
para o
concreto
embrião/feto,
qualquer protecção
constitucional do seu
direito à vida
humana, consagrado no
artigo 24.º, n.º 1, da CRP.
Ou
seja, a concepção
do
acórdão assenta numa
ideia de completa
liberalização do
aborto, condicionando-o a
condições que visam
apenas acautelar o
aspecto de saúde da mulher
abortanda e não
em
qualquer ideia de que
deve ser efectuada uma
ponderação
de direitos
ou
valores: contra a
vontade, de livre
opção, da mulher de
abortar, nas primeiras 10
semanas de
gravidez, em estabelecimento de
saúde legalmente
autorizado, nada
(absoluto)
se pode
opor.
Trata-se,
por outro
lado, de uma solução
cuja admissibilidade
não vemos como possa
ser acolhida pelo princípio
constitucional da proporcionalidade, na
sua acepção de
justa medida. Essa
desproporcionalidade torna-se patente
não
só quando
abandona, por
inteiro, a natureza do
direito que está
em colisão
com o direito da
mulher grávida, permitindo o
seu sacrifício, de
plano, nas primeiras 10
semanas, como
quando a valoração acaba
por ficar
dependente
apenas da
decorrência de simples
prazos de gestação, e
da aleatoriedade decisória
que, durante
eles, poderá ser
feita, livremente,
pela mulher grávida,
podendo ser
levada a
cabo, sem
censura penal, num
limite em
que o feto tem
até já
forma humana
(desde as 8
semanas) (cf. Fernando J.
Regateiro, Manual
de
Genética Médica,
Coimbra, 2003, pp. 310 a 312).
Como
se verifica dos seus
termos, o acórdão
invoca a realização
de uma
concordância prática dos
direitos em
questão no plano abstracto,
indicando até,
nesse
sentido, a existência
de vários
regimes de protecção da
maternidade, que
identifica.
Todavia, a
primeira objecção que
poderá fazer-se a propósito de
tal
atitude é que,
posta a questão
em termos abstractos (plano
do
conteúdo/extensão do
direito objectivo à
vida humana), no
plano de constitucionalidade, caberia ao
próprio legislador
constitucional resolvê-la e
não ao legislador
ordinário, mormente no
que toca ao conteúdo
essencial do direito,
que é aquele
que é tocado pelo
aborto.
E
não se esgrima,
contra esta posição,
como está pressuposto
pelo acórdão,
para justificar a
existência de um
juízo ponderativo de
concordância prática,
que só
tal operação permite
enquadrar constitucionalmente as
causas de desculpabilização e de
justificação da
interrupção voluntária de
gravidez existentes na lei
em vigor, pois
estas, apenas,
correspondem a concretizações,
relativamente aos
concretos direitos
constitucionais que
estão em
causa, de
princípios
constitucionais autónomos,
que valem para
todo o direito
criminal — as causas
de
justificação e de desculpabilização.
Depois a
tese do acórdão sofre
de um
verdadeiro
ilogismo: é que
os
direitos cuja
existência alega,
apenas, constituirão
direitos para
quem tiver a sorte de
não ser abortado. A
sua eficácia depende
da existência
de titulares de
direito à vida
humana que tenham
nascido.
A
vida humana
não existe sem
um titular e
não é possível falar-se de
violação, que o
preceito constitucional proíbe,
sem ser
relativamente à
posição jurídica de
quem se encontre investido na titularidade de
um
direito.
De
contrário, o que está
em causa é,
ainda, a definição do
conteúdo
constitucional desse
direito, dos seus
contornos,
do seu
conteúdo essencial, no
mínimo. E, a ser
assim, tal
domínio não cabe
nos poderes do
legislador ordinário,
mas nos do
constitucional.
Essa é,
também, a razão
pela qual repudiamos a
tese, admitida no
acórdão (pontos 7 a
10), sobre
a admissibilidade de uma
dúvida interpretativa
sobre a solução,
em abstracto, no plano
da constitucionalidade, de
um conflito de
valores ou
direitos
constitucionais, como
a que está,
em
causa, na proposta de
referendo, poder
ser devolvida ao eleitorado,
através de mecanismos
como o referendo e
não de eleições
em que possam
ser assumidos poderes
constituintes por
parte da Assembleia da
República.
É
que o voto
expresso neste caso,
desde que afirmativo,
apenas pode traduzir uma
posição de poder
político legislativo
ordinário, no sentido
transportado pela
pergunta,
ou seja, corporiza,
apenas, uma posição de
poder legislativo ordinário,
não incorporando quaisquer
poderes de definição
do conteúdo
dos
direitos e garantias
constitucionais, só
possível através da
concessão/assumpção de
poderes
constituintes.
Resta,
por último,
apreciar a posição
em que se
abona o acórdão,
segundo a qual
não se esgota, no
domínio penal, o
âmbito de protecção do
direito constitucional
à vida
humana e de
que não existe uma
imposição constitucional à criminalização.
Estamos de
acordo quanto à
primeira consideração,
mas já
não podemos acompanhar, de
forma alguma, a segunda
proposição.
E
não podemos, porque
entendemos que
existem direitos
constitucionais cuja
existência e exercício
hão-de, necessariamente, impor
a criminalização das
atitudes que os
violarem, por,
na sua
defesa, o legislador
ordinário dever
usar todos os
meios
constitucionalmente
possíveis e entre
estes, evidentemente,
a sua
última ratio — o
direito criminal.
É o
caso do direito à
vida humana uterina e
pós-uterina. Trata-se de
um
direito que é
pressuposto necessário
da
existência de todos os
demais (direito
com pretensão de
absoluto), de um
direito sem
cuja existência,
em seres
concretos, não é
concebível qualquer
princípio de dignidade da pessoa
humana e existência de
uma comunidade
politicamente organizada
em
Estado.
O
direito à vida
humana de qualquer
titular constitucional que
ele seja, nascido ou
não nascido, porque a
Constituição os não
distingue, é um
direito fundante do
Homem e da sociedade
organizada.
Na
mesma situação se
encontra, por
exemplo, a protecção do
princípio democrático
do Estado
de direito.
Sem protecção do
princípio democrático
do Estado
de direito,
por todos os
meios
constitucionalmente permitidos,
este não poderá
existir e subsistir. Sendo
assim, não poderá o
legislador ordinário
deixar de utilizar na
sua protecção a última
ratio — o direito
criminal. — Benjamim
Rodrigues.
Declaração de
voto
Votei vencido
por entender
que: (i) a formulação
da pergunta
não satisfaz os
requisitos
constitucionais e legais da
clareza e da objectividade; (ii) é injustificada a
restrição do “universo
eleitoral” aos
eleitores residentes no
território nacional; e
(iii) a resposta
afirmativa é susceptível de
conduzir a uma solução
jurídica inconstitucional.
1 — A
falta de clareza e de
objectividade da pergunta.
1.1 — A
Constituição da
República Portuguesa (CRP) exige, no
seu artigo 115.º, n.º
6, que as
questões
objecto de referendo
sejam “formuladas
com objectividade, clareza e
precisão”, tendo a Lei
Orgânica do Regime do
Referendo (Lei n.º
15-A/98, de 3 de Abril,
alterada
pela Lei
Orgânica n.º 4/2005, de 8 de
Setembro — LORR) reiterado
que “as perguntas
são formuladas com
objectividade, clareza
e
precisão (...), sem
sugerirem, directa ou
indirectamente, o
sentido das
respostas”.
Os
requisitos da clareza
e da precisão
implicam
que a pergunta seja formulada “de
modo unívoco e
explícito, sem
ambiguidades” (Acórdão
n.º 704/2004), insusceptível de “comportar
mais do
que uma interpretação”
(Acórdão
n.º 531/98). O
requisito da objectividade impede a utilização de
formulações susceptíveis de “induzir
os eleitores
em erro, influenciando o
sentido da resposta” (Acórdão
n.º 531/98).
Entendo
que a pergunta
ora em apreciação
não é clara quando
utiliza a expressão
“em
estabelecimento de saúde
legalmente autorizado”, e
não é objectiva quando
usa a expressão
“despenalização da
interrupção
voluntária da
gravidez”.
1.2 — A
primeira expressão é
susceptível de duas interpretações:
tratar-se de
estabelecimento de
saúde
legalmente autorizado
a praticar
abortos (autorização
específica) ou
tratar-se de
estabelecimento de
saúde legalmente
autorizado a funcionar
como
estabelecimento de
saúde tout court (autorização
genérica).
No
Acórdão n.º 288/98 o
Tribunal
Constitucional interpretou a
expressão naquele primeiro
sentido, interpretação
que foi mantida pelo precedente
acórdão. Afigura-se-me,
porém, que é a
segunda a
interpretação correcta,
como, a meu
ver, resulta da história das
iniciativas
parlamentares
pertinentes, em
que a expressão surge
como equivalente a “estabelecimento
de
saúde oficial
ou oficialmente
reconhecido” (cf. Projectos de
Lei n.os 177/VII, 235/VII, 236/ VII, 417/VII,
451/VII, 453/VII, 16/VIII, 64/VIII,
1/IX, 89/IX, 405/IX, 409/IX, 1/X, 6/X,
12/X, 19/X e 166/X), que
é,
aliás, a utilizada no
corpo do n.º 1 do
artigo 142.º do Código
Penal. O que se
pretendeu exigir terá
sido que o
aborto fosse praticado em
estabelecimento de
saúde, quer
oficial, quer
legalmente autorizado (no
sentido de
oficialmente reconhecido), e
não em quaisquer
outras instalações,
mas não se terá
querido limitar
tais intervenções a
estabelecimentos de saúde
especificamente autorizados a
praticar abortos
(admitindo que
estas autorizações específicas existam
ou venham a
existir). A
simples existência
desta dualidade
de
interpretações demonstra a
falta de clareza desta
parte da pergunta.
1.3 —
Mais grave,
porém, é a falta de
objectividade que
deriva do uso da
expressão “despenalização da interrupção
voluntária da
gravidez”.
Interessará
começar por
recordar as oito
formulações propostas
para a pergunta ao
longo das diversas tentativas de
processo referendário nesta
matéria:
“Não
existindo razões
médicas, o aborto
deve ser
livre
durante as primeiras 12
semanas?” (Projecto de
Resolução n.º 38/VII, apresentado
pelo PSD, Diário da Assembleia da
República (DAR), II Série-A, n.º
12, de 9/1/1997);
“Não
existindo razões
médicas, o aborto
deve ser
livre
durante as primeiras 10
semanas?” (Projecto de
Resolução n.º 75/VII, apresentado
pelo PSD, DAR, II-A, n.º 23, de 15/ 1/1998);
“1 — Concorda
que o aborto seja
livre nas primeiras 10
semanas de gravidez? 2 — Concorda
que razões de
natureza económica ou
social possam justificar o
aborto por constituírem
perigo grave
para a saúde da
mulher?” (proposta de
substituição do Projecto n.º 75/VII, apresentada
pelo PSD e CDS-PP, DAR, I, n.º 51, de
20/3/1998);
“Concorda
com a despenalização da
interrupção voluntária da
gravidez, se realizada, por
opção da mulher, nas
10 primeiras semanas,
em estabelecimento de
saúde
legalmente
autorizado?” (proposta
de
substituição do Projecto n.º 75/VII, apresentada
pelo PS (DAR, I, n.º 51, de 20/3/ 1998),
que viria a ser adoptada
pela Resolução da
Assembleia da República
n.º 16/98 (Diário
da República
(DR), I Série-A, n.º 76, de 31/3/1998),
e retomada
no Projecto de Resolução
n.º 69/X, apresentado
pelo PS (DAR, II-A, n.º 50, de 22/9/2005),
adoptado pela
Resolução da Assembleia da
República n.º 52-A/2005 (DR, I-A, Supl. ao n.º 188,
de 29/9/2005), e no Projecto de
Resolução n.º 148/X,
apresentadas pelo PS (DAR,
II-A, n.º 2, de 21/9/2006), adoptado
pela
Resolução da Assembleia da
República n.º 54-A/ 2006 (DR, I
Série, 2.º Supl. ao n.º 203, de 20/10/2006));
“Concorda
que deixe de constituir
crime o aborto realizado nas
primeiras 12 semanas
de gravidez,
com o consentimento da
mulher, em
estabelecimento legal
de saúde?”
(Projecto de
Resolução n.º 7/X, apresentado
pelo BE, DAR, II-A, n.º 4, de 2/4/2005);
“Concorda
que deixe de constituir
crime o aborto realizado nas
primeiras 10 semanas
de gravidez,
com o consentimento da
mulher, em
estabelecimento legal
de saúde?”
(Projecto de
Resolução n.º 9/X, apresentado
pelo PS (DAR, II-A, n.º 4, de 2/4/2005),
adoptado pela
Resolução da Assembleia da
República n.º 16-A/2005 (DR, I-A, Supl. ao n.º 78,
de 21/4/2005));
“Concorda
com a despenalização do aborto
realizado nas primeiras 16
semanas de
gravidez, com o consentimento da
mulher, em
estabelecimento legal
de saúde”(proposta
de
substituição do Projecto n.º 9/X, apresentado
pelo CDS-PP, DAR, II-A, n.º 8, de 22/4/2005);
“Concorda
com a liberalização do
aborto, se realizado, por
opção da mulher, nas
primeiras 10 semanas,
em estabelecimento de
saúde legalmente
autorizado?” (Proposta de
substituição do Projecto
n.º 148/X, apresentada pelo
CDS, DAR, II-A, n.º 12,
de 28/10/2006).
Nestas
formulações são
utilizados os conceitos
de “liberalização”, “despenalização” e
“descriminalização”, que,
como é sabido, têm
sentidos bem diferenciados e
efeitos distintos,
desde logo o de
que, como assinala
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS
(Comentário
Conimbricense do
Código
Penal,
Parte Especial,
Tomo I, Coimbra, 1999, p. 178), “se a
interrupção for um
facto ilícito,
ainda
que não punível, o
Estado se sentirá desobrigado das
prestações sociais
decorrentes da intervenção
médica — de acordo
com o princípio de
que não podem
ser dispendidos dinheiros
públicos com factos
constitutivos de ilícitos
penais”.
Tenho
por evidente
que a medida
legislativa que os
proponentes do referendo
visam
aprovar, na hipótese de
resposta afirmativa
vinculativa, não
consiste numa
mera despenalização (sem
descriminalização).
Não se trata, na
verdade, de previsão de
situações de não
aplicação de penas a
determinados autores
de condutas
que
continuam a ser
qualificadas como
criminalmente ilícitas (como
acontece
com as propostas de
eliminação do n.º 3 do
artigo 140.º do
Código Penal,
constantes dos Projectos de
Lei n.os 308/X (PCP), 309/X (Os
Verdes) e 317/X (BE),
que, essas sim,
conduzem à não
punição
da mulher
grávida em
todas as situações
de
crimes de aborto, praticados
fora das previsões do
artigo 142.º), mas
muito mais do
que isso. Trata-se de
deixar de considerar
como crime,
relativamente a todos
os participantes nessas
intervenções (e não
apenas à mulher
grávida), o aborto
praticado, nas primeiras
dez semanas de
gravidez, por
opção da mulher,
em estabelecimento de
saúde legalmente
autorizado. E não
se
trata apenas de
afastar a ilicitude criminal,
mas toda e
qualquer ilicitude. E
ainda mais: trata-se
de assegurar,
pelo próprio
Estado, designadamente
através do serviço
nacional de saúde,
a prática
desses actos. Isto
é: pretende-se
passar de uma situação de “crime
punível”, não
a uma situação
de “crime
não punível”, mas a
uma situação
de “não
crime”, de “não
ilícito” e de “direito
a prestação
do
Estado”.
Nem
se diga, como
foi aduzido no
debate parlamentar, que
não se trata de
“descriminalização” por
o
crime de aborto
continuar a ser punível
quando praticado para
além das 10 semanas. A
questão, porém, é
que um
conjunto
de situações
(prática do
aborto,
por opção da
mulher, até às 10
semanas de gravidez,
sem que se verifiquem
as “indicações”
do
artigo 142.º), que
eram consideradas crime
e
como tal punidas,
deixam de ser
consideradas como
crime relativamente a
todos os intervenientes nessas
práticas.
Neste
contexto, embora fosse
sustentável que,
em rigor, se trata de
uma “legalização”
do aborto
em causa [na
apresentação da Projecto de
Resolução foi
expressamente referido: “(...) ao
legalizar a interrupção
voluntária da gravidez
sob determinadas
condições, não se
está, como
é evidente,
a liberalizar o
aborto, está-se
apenas a alargar, de
forma razoável e equilibrada, o
elenco das excepções,
já hoje admitidas na
lei, à regra
geral de criminalização
que permanece em
vigor. (…) Por
isso, propomos a
realização desta consulta
popular, onde a
única questão a
decidir é saber se «sim»
ou
«não» à
licitude da
interrupção voluntária
da gravidez, nas
primeiras 10
semanas, em
estabelecimento autorizado” — DAR,
I, n.º 14, de 20/10/2006, p. 8
(sublinhados acrescentados)], a
pergunta a formular, para
ser objectiva, teria, no mínimo, de
referir a intenção de “deixar
de constituir
crime”
tal
conduta. Isto é: devia
ter sido mantida a formulação dos Projectos de
Resolução n.os 7/X (BE) e 9/IX (PS) — “Concorda
que deixe de constituir
crime o aborto realizado nas
primeiras 10 [12 para o
BE]
semanas de gravidez,
com o consentimento da
mulher, em
estabelecimento
legal
de saúde?”
— acolhida na
Resolução da Assembleia da
República n.º 16-A/2005.
A
isto acresce que,
quer na discussão
pública em curso
sobre este
tema, quer,
mais relevantemente,
na apresentação parlamentar
da
iniciativa referendária, se tem sistematicamente
insistido na associação
desta
iniciativa ao propósito de
pôr termo à perseguição criminal,
julgamento, condenação
e prisão
das mulheres
grávidas
que pratiquem aborto. E o
uso da expressão
“despenalização”, na pergunta,
pode propiciar
o entendimento
de que
é esse
propósito
que se visa
alcançar, o que
não corresponde à realidade. Na
verdade, face ao apontado
desiderato, a
aprovação da medida
legislativa que
resultará de eventual
resposta positiva
vinculativa ao referendo
surge
como inadequada, por
defeito e por
excesso: por
defeito,
porque
não evitará a perseguição criminal das
mulheres que pratiquem
aborto para além
das 10 semanas
fora
das indicações
do
artigo 142.º do Código
Penal e ainda das
que pratiquem aborto
dentro das 10 semanas,
mas fora de
estabelecimento de saúde
legalmente autorizado;
por excesso, porque
exclui da incriminação,
não
apenas as mulheres grávidas,
mas todos os
intervenientes no acto em
causa.
Não
se leia nas considerações
precedentes
qualquer tomada de
posição negativa
quanto ao mérito da
iniciativa. Não
é disso
que se visa nesta
sede, em
que apenas se
trata de verificar o
respeito dos
requisitos de clareza
e de objectividade
exigíveis à
pergunta do
referendo.
E, pelas
razões expostas, concluo
que, para
além da falta de
clareza da expressão
“estabelecimento
de
saúde
legalmente
autorizado”, a expressão
“despenalização da interrupção
voluntária da
gravidez” não
respeita o requisito
da objectividade, pois
se mostra
susceptível de “induzir
os
eleitores em
erro, influenciando o sentido da
resposta”.
2 — A
definição do “universo
eleitoral”.
A
proposta referendária limita a
intervenção no referendo aos “cidadãos
eleitores
recenseados no território
nacional”.
O precedente
acórdão (n.º 26), para
considerar justificada esta
limitação, invoca
argumentos (ser a “aplicação
da lei
penal portuguesa a
cidadãos residentes no estrangeiro
relativamente excepcional e
condicionada” e não
ter a
matéria do referendo
“a ver especificamente
com a
particular situação
dos cidadãos
portugueses residentes no
estrangeiro”), que
não posso
acompanhar.
Com
efeito, afigura-se-me de
todo impertinente o
argumento extraído das
regras
sobre a aplicação no
espaço da lei
penal portuguesa. Não
pode constituir
critério
adequado para
aferir da
relevância da participação no
referendo dos cidadãos
portugueses residentes no
estrangeiro a
circunstância de, por
regra, as normas
penais portuguesas
lhes não serem
aplicáveis. O interesse
na participação no
referendo não pode
resultar da susceptibilidade de ser
autor ou
vítima dos crimes
em causa.
Por
outro lado, a CRP (artigo
115.º, n.º 12)
não restringe a participação dos
cidadãos residentes no
estrangeiro aos
referendos sobre
matéria que
apenas lhes diga
especificamente respeito,
mas sim
sobre matéria
“que
lhes diga
também especificamente
respeito”. E em
lado algum a CRP
manda considerar
esses cidadãos “na
sua condição de
emigrantes”, condição
que, aliás,
muitos deles não
terão.
Há
que atender
que não é à
generalidade dos
cidadãos portugueses residentes no
estrangeiro que é
facultada a participação no
referendo,
nem sequer ao
grupo, mais reduzido,
dos que,
estando recenseados,
são eleitores da
Assembleia da República.
É,
apenas, ao grupo
estrito de cidadãos portugueses a
quem, apesar de
residirem no estrangeiro,
foi admitida a participação nas
eleições para
Presidente da
República por
mantenham “laços
de efectiva
ligação à comunidade
nacional” (artigo
121.º, n.º 2, da CRP, para
que
remete o artigo
115.º, n.º 12) e
que efectivamente exercitaram
esse direito de
recenseamento (o que
revela a actualidade do
seu
interesse na participação
nos assuntos
públicos nacionais),
designadamente titulares de
órgãos da
União Europeia e de organizações
internacionais,
diplomatas e
outros funcionários e
agentes em
serviço em
representações
externas do Estado,
funcionários
e
agentes das
comunidades e da União Europeia e
de organizações
internacionais,
professores de escolas
portuguesas, cooperantes (artigo
1.º-A, n.º 1, da
Lei Eleitoral para
Presidente da
República —
Decreto-Lei n.º 319-A/76, de 3 de
Maio, alterado, por
último, pela
Lei Orgânica n.º
5/2005, de 8 de Setembro);
cônjuges ou
equiparados, parentes
ou afins,
que vivam com os
cidadãos atrás
mencionados (artigo
1.º-A, n.º 2, da
mesma Lei); e os
cidadãos que
não estejam ausentes
do território
nacional
para além de
determinados limites
temporais, consoante
sejam residentes nos
Estados membros da
União Europeia ou
nos países de
língua oficial
portuguesa ou
nos
demais Estados
ou que se tenham
deslocado a Portugal e
aqui permanecido
durante determinado
período de tempo
em época
recente (artigo 1.º-B
da mesma
Lei).
Por
outro lado, a
matéria em
causa no referendo,
como o evidencia a
intensidade do debate
público que a tem
rodeado ao longo
de um
já dilatado período de
tempo, está directamente
ligada à definição dos
valores fundamentais
estruturantes da
comunidade
nacional, problemática
que não pode
deixar de afectar os portugueses
que, apesar de
residentes no estrangeiro,
têm manifestado
laços de efectiva
ligação à comunidade
nacional e revelado
interesse actual na
intervenção directa na
vida política
nacional.
Não
se vislumbra motivo
justificado
para excluir este
grupo de cidadãos
portugueses da participação num
referendo que,
atenta a matéria
sobre que
versa, também
lhes diz especificamente
respeito, e no qual,
aliás, irão participar
cidadãos
estrangeiros residentes
em Portugal — os referidos no
artigo 38.º da LORR.
3 — A inconstitucionalidade da
solução legislativa derivada de
eventual resposta
positiva vinculativa ao referendo.
3.1 —
Apesar da notória
divisão de posições revelada
pelos quatro
acórdãos proferidos pelo
Tribunal Constitucional
sobre a problemática
do aborto (Acórdãos
n.os 25/ 84, 85/85, 288/98 e o
presente), num aspecto
crucial verificou-se unanimidade
por parte dos 31
juízes das di versas
formações
que subscreveram esses
acórdãos: todos eles,
nemine discrepante,
assumiram
que a vida
intra-uterina constitui um
bem
constitucionalmente
tutelado,
donde
deriva a obrigação do
Estado de a
defender.
O
reconhecimento da
dignidade
constitucional da vida
intra-uterina (comum,
aliás, à generalidade
das pronúncias
de
diversos Tribunais
Constitucionais da
nossa área
civilizacional) — que
é
independente de concepções
filosóficas ou
religiosas
sobre o início da
vida humana —
não impede, como é
óbvio, a admissão de
que a sua
tutela seja menos
forte do que a da
vida das pessoas
humanas (desde sempre
revelada na
diferenciação das
penas aplicáveis aos
crimes de aborto e de
homicídio) e que possa
conhecer gradações
consoante a fase de
desenvolvimento do
feto, designadamente
em sede de
ponderação da solução do
conflito entre
esse valor e
outros valores
igualmente dignos de
protecção constitucional,
relacionados
com a mulher
grávida.
O
que se me afigura
constitucionalmente
inadmissível, por
incompatível com o
reconhecido dever do
Estado de
tutelar a vida intra-uterina —
com consequente postergação da
concepção primária do
feto como uma
víscera da mulher,
sobre a qual esta
deteria total
liberdade de disposição — é
admitir que,
embora na fase
inicial de desenvolvimento do
feto, se adopte solução
legal que represente a
sua total
desprotecção, com
absoluta prevalência
da “liberdade
de
opção” da mulher
grávida, sem
que o Estado faça o
mínimo esforço
no
sentido da salvaguarda
da vida do
feto,
antes adoptando uma
posição de neutral
indiferença ou,
pior ainda, de activa
promoção da destruição dessa
vida.
Não
acompanho, assim,
o
argumento expendido no n.º 48 do
Acórdão n.º 288/98 e retomado no n.º 31 do precedente
acórdão,
que vislumbra uma
ponderação de interesses no “contexto
global” da regulação da
matéria,
como que “compensando”
a desprotecção total
da
vida intra-uterina nas primeiras 10
semanas com a
protecção total
(ou
quase total)
nos últimos
períodos de gestação,
argumento que se
me afigura inaceitável
face à inarredável
individualidade e infungibilidade de
cada vida
humana, mesmo
que intra-uterina.
Como se afirmou na
declaração de voto do
Cons. TAVARES DA COSTA
aposta
àquele
acórdão, na
vida intra-uterina manifesta-se “uma
forma de vida
que, desde
logo, contém um
acabado programa
genético, único
e irrepetível, o
qual, se entretanto
não conhecer
destruição, culminará, inevitavelmente,
com o nascimento de
um ser
humano” (sublinhado acrescentado) —
cf.,
ainda, sobre
este ponto, JORGE MIRANDA e RUI
MEDEI‑
ROS,
Constituição Portuguesa Anotada,
tomo I, Coimbra, 2005, pp. 230—232).
3.2 —
Não excluo, porém,
compartilhar da convicção de JORGE
DE FIGUEIREDO DIAS
(obra
citada, p. 172) “de
que mesmo
um sistema
que combinasse equilibradamente o
sistema das indicações
com o sistema dos
prazos não mereceria
censura constitucional
se nele assentasse o legislador
ordinário; nomeadamente
se um
tal
sistema se combinasse
por sua
vez, como deve,
com um consistente e
adequado sistema
de aconselhamento” (negrito
no original, sublinhado acrescentado).
Isto
é: admitiria considerar
não
inconstitucional uma solução
legislativa que, no
período inicial da
gestação, acabasse por
conceder prevalência à
opção da mulher
grávida, desde
que
fosse associada
à
imposição de um
sistema de aconselhamento, designadamente se
este acon-selhamento
não fosse um
aconselhamento meramente
informativo,
mas antes
um aconselhamento orientado para a
salvaguarda da
vida.
Como
resulta dos elementos
de
direito comparado
largamente referidos no
Acórdão n.º 288/98 (cf.
também JOÃO CARLOS SIMÕES GONÇALVES
LOUREIRO, “Aborto: algumas
questões jurídico-constitucionais (A
propósito de uma reforma
legislativa)”, Boletim
da Faculdade de
Direito, vol. LXXIV,
Coimbra, 1998, pp. 327-403), há, na
nossa
área civilizacional,
três modelos
fundamentais em
matéria de criminalização do
aborto.
Um
primeiro grupo engloba os
países em
que vigora a proibição
total: Irlanda e
Malta.
O
segundo grupo é
integrado pelos
países
que reconhecem
apenas o modelo das
indicações, isto é, “o
reconhecimento
de
situações
taxativamente indicadas e objectivamente
controláveis (i. e., controláveis
por terceiro)
perante as quais a
lei permite o
sacrifício da vida
intra-uterina” (FIGUEIREDO
DIAS,
local citado, p. 171). É
caso, embora
com variações quanto
ao tipo de
“indicações”
consideradas
relevantes e a sua
relacionação com
os
períodos de gestação,
da Itália, Reino
Unido, Luxemburgo,
Suíça, Finlândia, Portugal e Espanha. [Em
parêntesis refira-se
que, ao contrário do
que com
frequência
se refere no debate
público, não vigora
em Espanha um
sistema “liberal”,
perante o qual seria
chocantemente contrastante o “limitado”
sistema português. O
sistema legal
espanhol é
estritamente um
sistema de indicações.
O que
ocorre é que,
na
prática, uma interpretação
latíssima da indicação
relacionada
com a “saúde
psíquica” da mulher
grávida conduziu a uma permissividade na
prática do aborto,
sobretudo em
“clínicas
privadas”,
que têm como objecto
exclusivo do sua
actividade a prática
abortiva (segundo
informa JOÃO
LOUREIRO, estudo
citado, p. 339, 98% dos
abortos realizados nas
clínicas privadas
apresentam como
“indicação”
o risco
para a saúde psíquica da
mãe)].
terceiro
grupo compreende os
países que associam
modelo das indicações
com o modelo dos
prazos, segundo o
qual o aborto será
permitido, sem
necessidade de
justificação por
parte da grávida ou do
seu controlo por
terceiro, dentro de
certo prazo. Neste
grupo, há ainda
que distinguir
entre os que
não associam (Áustria, Dinamarca,
Suécia e Grécia) e os
que associam ao método
dos prazos
um
sistema de aconselhamento
obrigatório
meramente informativo
(Bélgica, França, Luxemburgo)
ou
um aconselhamento
obrigatório orientado para a
salvaguarda da vida
(Holanda, Itália, Alemanha) e
um
período de reflexão (Bélgica, França, Holanda, Itália,
Luxemburgo).
Na Holanda, estabeleceu-se, no
artigo 5.º da Wet afbreking zwangerschap, de 1 de
Maio de 1981, “um
processo de aconselhamento
obrigatório visando
analisar alternativas à
interrupção voluntária
da gravidez e
que o
médico, se a mulher
achar que a
situação de emergência
não poderá ser resolvida de
outro modo, se
certifique que
a
mulher manifestou e manteve o
seu pedido de
livre vontade após cuidadosa
reflexão e na
consciência da sua
responsabilidade pela
vida pré-natal e
por si
própria e pelos
seus” (JOÃO LOUREIRO,
estudo citado, p. 366-367).
Em
Itália, durante
os
primeiros 90 dias da
gravidez, a decisão de
abortar cabe à mulher,
mas sujeita a consulta
em centro de consulta
familiar, que a deve
esclarecer e ponderar
em conjunto
com ela e
com o autor da
concepção (se a mulher
assim consentir) todas as
soluções pos síveis,
com o objectivo de ajudar a
mulher a ultrapassar as
causas que poderiam
conduzi-la a interromper
a sua
gravidez (cf. n.º 38 do Acórdão
n.º 288/98).
Finalmente, na Alemanha,
na sequência directa de pronunciamentos
do
respectivo Tribunal
Constitucional, a possibilidade de
prática de aborto, nas primeiras 12 semanas,
a pedido da
mulher, está
dependente de
aconselhamento
obrigatório especificamente dirigido à protecção
da vida
embrionária e fetal,
dispondo o n.º 1 do § 219 do
Código
Penal alemão (cf. JOÃO
LOUREIRO, local
citado, p. 389):
“O aconselhamento serve a protecção da
vida que
está por
nascer. Deve orientar-se
pelo esforço de
encorajar a mulher a
prosseguir a gravidez e de
lhe abrir
perspectivas para uma
vida com a
criança. Deve ajudá-la a tomar
uma decisão
responsável e em
consciência. A mulher
deve ter a
consciência de
que o feto,
em cada uma das
fases de gravidez,
também tem o direito
próprio à vida e
que, por
isso, de acordo
com o sistema
legal, uma interrupção
da gravidez
apenas pode
ser considerada em
situações de excepção,
quando a mulher fica
sujeita a um
sacrifício que
pelo nascimento da criança é
agravado e se torna
tão pesado e
extraordinário que
ultrapassa o limite do
que se
lhe pode exigir.”
A
meu ver,
atento o quadro
constitucional português vigente,
não pode deixar-se de considerar
inconstitucional um
sistema que, na
parte em
que acolhe o método
dos prazos,
não o condicione a
um
sistema de aconselhamento orientado
para a salvaguarda da
vida. Na verdade,
após se reconhecer
que a vida
intra-uterina constitui um
valor
constitucionalmente tutelado,
cuja defesa incumbe ao
Estado, é contraditório
e
incongruente considerar
constitucionalmente aceitável uma
solução em
que a vida do
feto é sacrificada,
por mera
opção da mulher,
sem que o
Estado tome qualquer
iniciativa nesse
domínio, a mínima das
quais seria condicionar o
aborto à obrigatoriedade de
aconselhamento e de um
período de
reflexão. Aconselhamento
este que,
nos sistemas
legais que o acolhem,
não surge como
mecanismo estranho à
solução penal
(como as
consultas de planeamento
familiar), mas
antes se insere no
estrito domínio
penal, como
condição da não
incriminação ou
punição do aborto.
3.3 — É
certo que,
quer o Acórdão n.º
288/98, quer
o precedente
acórdão, acabem por
reconhecer a relevância da
introdução, na lei
que vier a ser
aprovada na sequência
de eventual
resposta
afirmativa vinculativa ao referendo, da “obrigatoriedade
de uma
prévia consulta de aconselhamento,
em que possa
ser dada à
mulher a informação
necessária sobre os
direitos sociais e os
apoios de que
poderia beneficiar no
caso de levar a
termo a gravidez,
bem como o
estabelecimento de um
período de reflexão
entre essa consulta e a
intervenção abortiva,
para assegurar
que a mulher tomou a
sua decisão de
forma livre, informada e
não precipitada, evitando-se a
interrupção da gravidez motivada
por súbito
desespero” (n.º 52 do
Acórdão n.º 288/ 98, retomado no n.º 34 do
precedente acórdão).
Acontece,
porém, que,
perante os termos
em que está formulada
a pergunta do
referendo, se a
lei aprovada na
sua sequência não
contemplar esse condicionamento
(e, como
veremos, é
mesmo questionável
que o possa inserir),
ela não poderá
ser vetada pelo
Presidente da República
nem sujeita a
fiscalização preventiva do
Tribunal
Constitucional com o
fundamento de ser
inconstitucionala não
consagração do aconselhamento
obrigatório como
condição de não
punibilidade.
É o
que resulta, a meu
ver, da força vinculativa
constitucionalmente atribuída à
resposta
afirmativa ao referendo,
com participação neste de
mais de metade dos
eleitores inscritos no
recenseamento.
As diversas
iniciativas legislativas surgidas, neste domínio,
na última
década, na
parte em
que visavam a introdução do
sistema dos prazos
(Projectos de Lei
n.os 177/235/VII, 236/VII, 417/VII,
451/VII, 453/VII, 16/VIII, 64/1/IX,
89/IX, 405/IX, 409/IX, 1/X, 6/X, 12/X,
19/X, 166/ X, 308/X, 309/X e 317/X),
previram o condicionamento da
não punibilidade do aborto,
por opção da
mulher, aos seguintes
requisitos: ser a
interrupção da gravidez efectuada
por médico
ou sob a
sua direcção; ser
feita em
estabelecimento de
saúde oficial
ou oficialmente reconhecido;
durante as primeiras 10
ou 12 semanas de
gravidez; com
invocação de motivos
relacionados com
a preservação da
integridade moral e
dignidade social da
mulher e com uma
maternidade consciente
e responsável;
e após consulta num
centro de
acolhimento familiar
ou comissão de
apoio à
maternidade.
A
proposta de referendo
apenas contempla, como
condições de “despenalização” (rectius,
descriminalização),
para além da
opção da mulher, o
prazo de 10 semanas e
a natureza
do
estabelecimento de
saúde.
Do carácter vinculativo do
referendo (artigo
115.º, n.º 1, da CRP) resulta
que o
sentido da vontade
popular soberana, por
esse meio directamente
expressa, se impõe aos
órgãos de soberania
que sejam chamados a intervir no
subsequente processo
legislativo. Impõe à
Assembleia da República
e ao
Governo a aprovação,
em prazo
certo, do acto
legislativo de sentido
correspondente à
resposta afirmativa (artigo
241.º da LORR) e proíbe ao
Presidente da
República a recusa de promulgação do acto
legislativo “por
discordância com o
sentido apurado em
referendo com
eficácia vinculativa” (artigo
242.º da LORR).
Desta
última proibição de
veto presidencial (sem
distinção entre
veto
político e veto
por inconstitucionalidade) resulta a
impossibilidade de fiscalização
preventiva, pelo
Tribunal
Constitucional, da constitucionalidade do acto
legislativo concretizador da
pronúncia referendária,
desde que o
sentido desse acto caiba
dentro do alcance de
tal pronúncia.
Isto é, tal
como JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (Constituição
Portuguesa Anotada,
Tomo II, Coimbra, 2006, p. 309), entendo
que só será admissível
o Presidente
da
República requerer ao
Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva
da lei
concretizadora da
pronúncia referendária “apenas
naquilo em
que ela
estiver para
além do conteúdo da
proposta referendada,
ou no tocante a
inconstitucionalidade
orgânica
ou formal”. Trata-se
de entendimento
também
subscrito por
MARIA BENEDITA
URBANO (O Referendo —
Perfil Histórico‑
-Evolutivo do
Instituto. Configuração
Jurídica do Referendo
em Portugal, Coimbra, 1998, p. 287: “(...)
isto equivale à impossibilidade
de o PR utilizar o
seu
veto político e de pedir a
fiscalização preventiva das
normas concretizadoras da
consulta referendária, pelo
menos na parte
em que
elas se limitem a traduzir
correctamente a vontade
popular”), por LUÍS
BARBOSA RODRIGUES (O Refe‑
rendo Português
a Nível
Nacional, Coimbra, 1994,
pp. 230-231, onde
após,
referir estar vedado ao Presidente
da
República recusar a promulgação da
lei que concretize o
resultado do
referendo, acrescenta: “No
que se refere ao
Tribunal
Constitucional (...) parece
líquido que
este não deverá
pronunciar-se preventivamente
acerca da concretização
normativa do resultado
do
referendo, mesmo se
instado pelo
Presidente da
República a fazê-lo”),
mesmo por VITALINO
CANAS (Referendo
Nacional — Introdução
e Regime, Lisboa, 1998,
pp. 23 e 35 e
nota 37), que,
apesar de admitir
que o Presidente da
República peça
“a fiscalização preventiva da
constitucionalidade de quaisquer
normas
constantes de um acto
executor da decisão
dos cidadãos
expressa
em referendo, tenham
elas ligação directa
com essa execução
ou não e seja o
referendo vinculativo
ou não”, reconhece
que, “quando
Tribunal
Constitucional tenha efectuado
aquilo que se designou
por fiscalização pré-preventiva das
normas, a sua
jurisdição se reduza à
averiguação sobre se a
norma produzida na sequência do
referendo coincide com
a norma
pré-avaliada”.
No
caso concreto, se,
face a resposta
afirmativa vinculativa ao
referendo, a Assembleia da
República aprovar uma
lei em
que condicione a “despenalização” do
aborto às três
condições expressas na pergunta
(opção da
mulher,
período de 10 semanas e
estabelecimento de
saúde legalmente
autorizado) — hipótese
em que
não vejo como se
poderá sustentar
que a
lei desrespeite o
sentido da resposta —,
a questão da
inconstitucionalidade dessa
solução legislativa,
por se entender
que seria indispensável a
imposição de uma consulta de aconselhamento e/ou
de um
período de reflexão,
não poderá ser colocada ao
Tribunal
Constitucional, em
sede de fiscalização preventiva, contrariamente ao
que pressupõem o
Acórdão n.º 288/ 98 e o precedente
acórdão, sendo mesmo
questionável a constitucionalidade da
imposição, pelo
legislador, de outras
condições de “despenalização” para
além das que constam
da pergunta,
tal
como seria inconstitucional,
por exemplo, a
fixação do período de
gravidez em 8
semanas, em
vez das 10 semanas
que da mesma
constam.
A solução
para evitar o
aparecimento
irremediável de
soluções legislativas
inconstitucionais consiste no particular
rigor que o
Tribunal
Constitucional deve colocar na
apreciação da constitucionalidade das
soluções
legislativas emergentes
das
respostas (positiva
ou negativa).
Não basta,
contrariamente à decisão
que no presente
acórdão obteve
maioria, que nenhuma
das respostas
implique necessariamente uma
solução jurídica
incompatível com a
Constituição. O que
importa assegurar é
que nenhuma das
possíveis
soluções
jurídicas que
caibam no
sentido da resposta
(relativamente
às
quais o Tribunal
Constitucional, pelas
razões expostas,
não terá oportunidade
de se voltar a
pronunciar
em sede de
fiscalização preventiva) viole a
Constituição.
No presente
caso, a meu
ver, não
apenas uma das soluções
possíveis, mas
até a solução
que directamente resultará da
resposta afirmativa,
se se converter a
formulação
literal desta em
artigo de lei, é
inconstitucional, atenta a
completa falta de
intervenção do Estado
na tutela
da vida
intra-uterina, bem
constitucionalmente
protegido, que
exigiria, no mínimo, a
imposição
da obrigatoriedade
de uma consulta de aconselhamento e de
um período
de reflexãoantes da
consumação do
aborto. Ora,
em vez dessa
intervenção para
salvaguarda da
vida, de tal
solução resultará, nem
sequer uma posição de
neutralidade ou
de indiferença do
Estado (que
já seria criticável),
mas inclusivamente uma
posição de promoção do
aborto, através da facilitação da
sua prática,
por mera
opção da mulher
grávida, sem
invocação
de motivos,
nos
serviços públicos de
saúde, tendencialmente
gratuitos. — Mário José de Araújo
Torres.
Declaração de
voto
1 — Coincidem, no
presente aresto, duas matérias de
difícil resolução. A
primeira tem a ver
com a os requisitos
formais e substantivos
da convocação de referendo,
e a
segunda diz respeito à
natureza da questão
especificamente
tratada: a descriminalização do
crime de aborto
quando voluntariamente praticado “nas primeiras 10
semanas em
estabelecimento de
saúde legalmente
autorizado”.
2 — Votei
em sentido
contrário à solução encontrada
pelo Tribunal
em resposta a estas
duas questões,
pois entendo,
essencialmente, que a
pergunta formulada não
espelha com
clareza, precisão e
objectividade — como
a
Constituição impõe — a
matéria que é colocada
à consideração dos
cidadãos, e
também porque entendo
que uma resposta
positiva à pergunta determina
violação do n.º 1 do
artigo 24.º da
Constituição.
3 — As
cautelas com
que a lei
rodeia a convocação de
referendo explicam-se pelo
peso que, nas
democracias
ocidentais, é conferido à
opinião pública
expressa em sufrágio
universal, fora dos
momentos eleitorais
determinados pelos
ciclos políticos
previstos na
Constituição. É,
assim, essencial — ao
fim e ao cabo
para garantir a genuinidade da
resposta dos cidadãos
—, que a
pergunta seja
absolutamente clara e
objectiva, não
só na
sua locução
gramatical, mas
também no seu
conteúdo, expondo a
questão
por forma a
permitir a sua
completa apreensão.
Não é, a meu
ver, o caso
em presença, pois
a pergunta
não esclarece,
nem deixa
espaço para
que se perceba, que,
actualmente,
a lei
já não penaliza
sempre a interrupção
voluntária
da gravidez
(artigo
142.º do
Código Penal).
Em suma, a
pergunta pode falsamente
fazer concluir
que o tratamento
jurídico do aborto se desenvolve
na dicotomia
crime/descriminalização,
sem ocorrência de
situações
justificativas de não
punibilidade já
previstas no actual
sistema legal. Ao
colocar deficientemente os
dados da questão, a
pergunta não é, a
meu ver,
precisa nem
objectiva.
4 —
Quanto à segunda
questão, entendo muito
simplesmente
que se a Constituição,
no aludido preceito,
protege, sem
excepção, a vida
humana, é necessário
que se conclua que
esse dever de protecção
legal se estende a todas as
formas de vida
humana e, portanto, à
vida intra‑uterina. O
que não significa
que se imponha um
grau de intensidade
necessariamente igual
na protecção de todas as
formas de vida.
Significa, isso
sim,
que se me afigura
constitucionalmente
desconforme que se
retirem completamente
todos os
obstáculos legais à
morte da vida intra‑uterina, nesse
período de 10
semanas.
5 — Para
além disto, acompanho,
embora com
dúvidas, a solução perfilhada nas
alíneas b), c), d), g) e h) da decisão.
— Carlos Pamplona de
Oliveira.