Diário de Notícias - 20
Nov 06
A ditadura dos
inspectores
João César das
Neves
O nosso tempo é desconfiado. Um dos traços de
carácter mais influentes e ocultos da nossa era é a
suspeita latente dos cidadãos. Ao mesmo tempo,
porém, a nossa sociedade céptica tem uma fé ingénua
na lei. O resultado desta insólita combinação é que
a vida hoje é regida, estatuída e restringida de uma
forma que não tem paralelo em qualquer outro tempo e
lugar.
Existem regulamentos, decretos, portarias para todos
os temas e assuntos. De vez em quando os jornais
denunciam indignadamente a falta de regulamentação
de uma qualquer actividade, manifestando assim esta
patética exigência: os detalhes mais ínfimos da
nossa vida têm de estar sujeitos ao minucioso
controlo da legislação.
Para que essas cláusulas sejam cumpridas existe um
enorme exército de fiscais, inspectores e vigilantes
que, em variados sectores, se dedicam a acompanhar,
denunciar e punir a violação dos tais regulamentos.
Tudo isto é feito, obviamente, em nome de princípios
elevados: a saúde pública, qualidade alimentar,
educação responsável, segurança nas estradas,
combate ao crime, eliminação da corrupção, defesa do
ambiente e mil outros objectivos louváveis.
Mas o Estado democrático suporta aí um poder mais
totalitário e minucioso que as piores ditaduras.
O problema é que a lei é um instrumento grosseiro e
brutal. Ela não consegue, de facto, substituir a
adesão livre, a cooperação social, a honorabilidade
pessoal. Assim, as leis têm muita dificuldade em
promover os objectivos proclamados nos seus
articulados.
Quando chega um inspector a uma escola, não lhe
interessa se os alunos são bem ensinados ou se
aquela é uma comunidade educativa saudável e
funcional. Ele tem é de medir as janelas, contar as
sanitas, calcular os metros quadrados por criança.
Se algum dos miríades de indicadores prescritos
estiver fora do nível fixado pela lei da Nação, a
escola é multada, obrigada a obras incomportáveis ou
até fechada. Que os principais prejudicados por isso
sejam os alunos é absolutamente irrelevante para os
fiscais.
Uma visita de inspecção a um restaurante ou loja
alimentar não se ocupa da qualidade da comida ou da
satisfação dos clientes. Tem é de registar os prazos
nominais dos alimentos, observar as condições de
exaustão de fumos, exterminar galheteiros, colheres
de pau e outros instrumentos nocivos. Normalmente, a
presença da Inspecção implica a destruição de
toneladas de comida em excelentes condições,
cometendo os fiscais um desperdício muito mais
criminoso do que os que tentam evitar. Entretanto,
os comerciantes são multados ou até presos, não por
venderem produtos avariados, mas por terem nas
instalações "condições de embalagem e refrigeração
desadequadas".
Naturalmente que os casos de sucesso atraem mais as
fiscalizações. Uma empresa lucrativa, uma escola
procurada, um festival gastronómico são presas
apetecidas. E há sempre algum parágrafo por cumprir,
o que alegra o estéril fiscal, satisfeito por
revelar a fútil aparência do tal sucesso. Toda a
criatividade, inovação, originalidade é contra os
regulamentos. Só a mediocridade apática passa na
inspecção.
Já a Antiguidade dizia que a lei tem de ser aplicada
com equidade. Esta virtude resume o bom senso do
juiz na análise das circunstâncias concretas do
caso. Quem viole a letra da lei com razões
poderosas, justificáveis e até legítimas, deve ser
absolvido. Mas como se pode exigir esta elevação a
uma multidão de inspectores, em múltiplas visitas
diárias? Aliás, mesmo que um fiscal seja sensato e
compreenda as razões do incumprimento, o mais
provável é que venha a ser denunciado como
negligente ou corrupto por um colega zeloso. Os
regulamentos são sagrados. A severidade, mesmo
injusta e destruidora, é o sinal que consola a
sociedade nos seus propósitos elevados.
Devido à obsessão moderna pela saúde, educação,
ambiente e outras abstracções, e sobretudo à enorme
desconfiança em que vivemos, os inspectores têm uma
autoridade que nenhuma outra classe possui. Eles
são, ao mesmo tempo, detectives, acusadores, juízes
e executores. Quanto mais elevado é o valor em
causa, mais graves os efeitos. Hoje é concedido a
funcionários o poder supremo de tirar filhos a seus
pais.
Os poderes regulamentar e inspectivo são muito mais
eficazes que os poderes legislativo e judicial.
Exagerados, ficam asfixiantes. A sociedade que
substitui a confiança nos cidadãos pela letra da lei
acaba na ditadura, por mais elevados que sejam os
seus propósitos.