Diário de Notícias - 19
Nov 06
Jovens de 14 anos
guiam carros graças a furo na lei
Fernanda Câncio
"Já tive um acidente, uma vez só. Ia numa rua e
apareceu um homem de repente. Ainda lhe bati um
bocado mas ele saiu dali como se nada fosse." Maria
tem 16 anos e guia um microcarro há um ano. Como com
15 anos não podia tirar uma licença para este tipo
de veículo, tirou uma licença de moto, num curso
especial da Prevenção Rodoviária Portuguesa (PRP).
"Depois, os meus irmãos ensinaram-me a guiar o
carro."
O pequeno automóvel que Maria guia, de marca
italiana e comprado em segunda mão por "cerca de
três mil euros", é um dos 30 mil do seu género que
se estima circularem em Portugal e que se
popularizaram entre dois extremos etários: os idosos
e os adolescentes. Não "dá", na expressão dela, mais
de 60 quilómetros/hora e pesa 350 quilos. O curso
que frequentou, e que habilita jovens entre os 14 e
16 anos a circular em motociclos "que não excedam os
45 quilómetros/hora", é um "projecto especial" da
Prevenção Rodoviária Portuguesa, um total de 16
horas de formação teórica e prática que incide
apenas sobre uma parte do Código da Estrada, a
considerada relevante para o tipo de veículos que os
jovens poderão guiar e as zonas onde poderão
circular (não podem entrar nas auto-estradas, por
exemplo). "Nós não temos o Código das trinta aulas,
como as pessoas que tiram a carta normal. Mas isto
não é um carro igual aos outros", justifica Maria.
Nem a uma moto: afinal, Maria não tirou uma "carta"
para conduzir o seu carro. Não aprendeu, por
exemplo, a estacionar um veículo de quatro rodas.
Esta aparente bizarria - tirar uma licença para
velocípede e guiar um automóvel - é possível graças
àquilo a que se costuma dar o nome de "alçapão"
legal.
"Para sair à noite, na Marginal"
Um alçapão que na zona de Cascais, onde Maria vive,
tem tornado cada vez mais comum a circulação de
veículos como o seu, conduzidos por jovens da sua
idade. Ao fim da tarde, junto à praia de Carcavelos,
é comum ver chegar vários microcarros, de onde saem
miúdos de rosto bronzeado e cabelo aloirado, de
prancha às costas. Bruno, 15 anos, é um deles: hoje,
mesmo com o tempo a fazer caretas, veio trazer um
amigo, o Nuno, de 14 anos, às ondas. Tem o
microcarro, um Aixam (a marca mais vendida em
Portugal) há um ano, como a Maria, e como ela tirou
um curso "só para moto". Confessa, no entanto, que
quando o tirou já tinha aprendido a guiar o quatro
rodas, comprado em primeira mão. Na família há dois
destes veículos. O da irmã mais velha, que tem 17
anos, "é mais potente". Na cara de Bruno, a menção
atravessa-se de malícia. A velocidade, percebe-se,
é-lhe uma volúpia. Um amigo da mesma idade, com um
microcarro como o dele, driblou as regras pedindo a
um mecânico para "reforçar" o veículo. "Anda para aí
a 80, 100", adianta, com um sorriso. Apesar da baixa
velocidade do seu, Bruno já se aventurou até Lisboa.
"Às vezes, para sair à noite, faço a marginal". "Mas
não bebes, pois não?", remata, em pergunta retórica,
o amigo Nuno, um cauteloso que não quer pegar num
carro nem numa moto antes dos 18. "Os meus pais já
me disseram que se tiver boas notas nessa altura
dão-me um carro a sério. Prefiro esperar."
"Menos perigoso que a moto"
Há quem não queira esperar, porém. Quem, aos 14
anos, ache que andar de transportes públicos e a pé
é uma perda de tempo, uma maçada desnecessária. Como
a Maria. "Se eu fosse de comboio e camioneta para a
escola teria de me levantar muito mais cedo. Assim,
vou no carro para o liceu, aos treinos e dar uma
volta à noite, a casa de uma amiga ou assim. Assim
os meus pais não têm de me levar a todo o lado,
deram-me um bocadinho de independência." Pediu uma
moto ou um carro, diz. "Os meus pais acham que o
carro é bem menos perigoso."
É essa a principal razão pela qual, na idade em que
costumavam ser agraciados com uma moto, os
adolescentes tendem agora, se os pais tiverem
dinheiro para isso, a receber um microcarro. Ou
tendiam. Até meados de 2005, altura em que entrou em
vigor o novo Código da Estrada, este tipo de
veículos estava incluído na categoria dos
ciclomotores. Ou seja, uma licença de condução para
estes possibilitava a condução daqueles. Desde Junho
de 2005, porém, os veículos de quatro rodas foram
retirados dessa categoria e colocados na de "quadriciclos",
passando a ser exigida, para os conduzir, uma carta
de condução B1 (ou seja, a carta para automóveis
ligeiros), e a idade mínima de 16 anos.
Um volte-face legislativo que terá sido
fundamentado, precisamente, em "motivos de
segurança", e que vedou aos representantes do
sector, nas suas próprias palavras, "um mercado em
expansão". No papel, pelo menos. Afinal, com 15 e 14
anos e uma carta de moto "tirada" já após a mudança
do Código, Maria e Bruno sentaram-se ao volante dos
seus microcarros. Um funcionário da Direcção- -Geral
de Viação (DGV), a quem o DN põe a questão
exalta-se: "Isso não é possível! É uma ilegalidade.
Diga- -me quem são essas pessoas, tomarei
providências." Mais calmo, minutos depois, admite
que a situação pode dever-se ao facto de os veículos
em causa terem sido registados antes da mudança do
Código, como ciclomotores, podendo assim legalmente
ser conduzidos apenas com uma licença de motociclos.
Mas Miguel Iglésias, o representante português de
duas marcas de microcarros, a Microcar e a JDM,
garante que não é bem assim: "Ainda esta semana a
DGV me passou registos de ciclomotor para
microcarros novos." Admitindo que a situação está
"uma autêntica confusão", Iglésias explica que o
motivo está nas homologações de cada modelo. "Há uma
série deles que foram homologados cá em Portugal
como ciclomotores, ainda antes da mudança do Código,
e a Direcção-Geral de Viação assume isso nos novos
registos. É um bocado estranho, porque a lei mudou e
o que faria sentido seria que todos os modelos
fossem registados como quadriciclos." Embora
continue a vender microcarros para jovens dos 14 aos
16, o importador considera que é necessária uma
clarificação. "As pessoas têm medo de gastar um
dinheirão e de repente apertam as regras e os miúdos
deixam de poder conduzir." Por outro lado, admite
que não faz sentido que os miúdos conduzam quadro
rodas com formação para duas. "Na PRP querem fazer
cursos para quadriciclos, mas não podem por causa da
lei."
Claro que há quem, como Manuel João Ramos, da
Associação dos Cidadãos Automobilizados, coloque a
questão a montante: "Será que faz sentido ter miúdos
de 14 anos a conduzir veículos motorizados, sejam
eles quais forem?" Mas as tendências, nomeadamente
europeias, não parecem favorecer este ponto de vista
(ver texto ao lado). E, a ser assim, talvez o
mínimo que se possa pedir é que se clarifique quem
pode conduzir o quê e com que critério.