A vida real é espantosa,
a vida comum é única, a vida ordinária é
extraordinária. Quando foi que nos
esquecemos disto? A sociedade ocidental, em
nome de um suposto realismo, perdeu a chispa
de transcendência que penetra todo o real.
Essa é a origem do seu drama patético.
Assim, cada um vive projectado fora de si,
mergulhado em ficções que considera reais.
Vivemos num mundo de aparência. Somos
arrastados numa enxurrada de filmes,
romances, novelas, jogos de computador,
publicidade. Esta é a era dos génios,
campeões, estrelas, personagens míticas cuja
vida queremos viver em vez da nossa. Os
auscultadores e os SMS isolam os jovens do
mundo.
A suprema mentira é o reality show,
ficção com a ilusão de realismo, que vai
muito para lá do telelixo. Nesta "era da
informação" a maior parte da informação que
recebemos é falsa. Se pretendêssemos obter
retratos fidedignos do mundo leríamos as
publicações do INE, relatórios das
direcções-gerais e centros de estudo,
volumes das organizações internacionais. Sem
paciência, escolhemos os telejornais e a
imprensa. Aí saímos do real e entramos no
reality show.
Um repórter, ao cobrir um evento, não está
interessado em descrever o que aconteceu. O
que procura é um ângulo de abordagem, um
ponto picante, uma nota polémica. Os jornais
publicam, não informação, mas "notícias",
textos dramáticos concebidos livremente a
partir da vida monótona. Empolam alarmes,
incitam discussões, sublinham o insólito.
Baseiam-se, afinal, no fundamento das
coscuvilhices de comadres. Ver o relato
jornalístico de algo em que participámos é
ficar, em geral, com a sensação de ouvir a
única pessoa na sala que não percebeu nada
do que ali aconteceu.
O chamado jornalismo de investigação é pior.
Pretendendo aprofundar um tema, estatística,
tendência ou fenómeno, o jornalista assume
então o lugar de dramaturgo. Oculta o
aborrecido, corrente, natural, para tomar os
aspectos mais incríveis, as interpretações
mais alvoroçadas. Depois colecciona opiniões
de especialistas e comentadores, mas
escolhidos artisticamente para encaixar nos
papéis destinados. Por vezes procura muito
até conseguir o palpite que compõe o
ramalhete.
Não é só nos jornais e televisões que a
realidade é distorcida como num reality
show. O debate político há muito que
abandonou a objectividade. Não só usa
vorazmente a distorção jornalística, com os
desvios referidos, mas deixou mesmo de se
incomodar com o real. A maior parte dos
discursos, entrevistas e comentários
ocupa-se exclusivamente de discursos,
entrevistas e comentários. O tema da
política é a política. Muitos são influentes
só por serem abstrusos. O mais engraçado é
ouvir um político a condenar o desinteresse
de outro pela realidade, sem notar que, ao
fazê-lo, cai precisamente no que condena.
Mas a maior ficção é a divulgação
científica. O nosso tempo venera a ciência
como mestra suprema, mas, como a desconhece,
toma-a antes como tema de espectáculo.
Romances científicos e canais temáticos
divertem fingindo ensinar teorias rigorosas.
A verdadeira divulgação científica existe,
mas é muito difícil e rara, pois necessita,
simultaneamente, de profundos conhecimentos
teóricos e forte dose de pedagogia. O que
esses livros e canais fornecem é, em geral,
algo muito mais comum mixordice científica,
um reality show concebido com tons
laboratoriais. O resultado inclui as maiores
patranhas intelectuais de sempre, muito mais
perigosas que as antigas lendas mitológicas,
que nunca se pretenderam exactas.
Vivemos assim num mundo de doutos
ignorantes, que falam com autoridade sobre o
Bush ou a fusão do átomo, porque leram as
aldrabices que alguns lhes impingiram.
Consideram-se largamente informados sobre a
realidade que nos rodeia, tendo esquecido
totalmente a realidade que os rodeia. Nem
sequer sabem que não sabem. Mas, pior de
tudo, vivem projectados fora de si, num
mundo de ficção que lhes tapa a beleza
incomparável de si mesmos. Porque a única
coisa admirável na vida é a vida vivida.