Aquilo parecia uma reunião de vendas da
Tupperware, em ponto gigantesco. Setecentos
convidados escolhidos a dedo passaram um dia
a ouvir o Governo e os consultores por ele
contratados (e todos eles parte interessada
no negócio) a defenderem os méritos do
futuro aeroporto da Ota. Dos setecentos
convidados, alguns eram institucionais,
ligados ao assunto pela própria natureza das
suas actividades, mas a grande maioria era
composta por candidatos à compra do negócio:
consultores, bancos, construtores, advogados
de negócios públicos, enfim, a nata do
regime, as "forças vivas" da nação.
Lá dentro, os setecentos magníficos estavam
positivamente desvanecidos à vista de tantos
e tantos milhões que o Governo socialista
tinha para lhes dar. Havia dinheiro no ar,
dinheiro nos gráficos apresentados,
dinheiros nos "documentos de trabalho",
dinheiro a rodos. O nosso dinheiro, os
milhões dos nossos impostos. Mas ninguém nos
convidou para entrar: é assim a democracia.
A primeira mentira que o Governo promove
acerca da Ota é a de tentar convencer os
tolos que o futuro Aeroporto Internacional
Mais Perto de Lisboa não vai custar
praticamente nada aos cofres públicos.
Acredite quem quiser, o Governo jura que a
"iniciativa privada" resolveu oferecer um
novo aeroporto ao país. Assim mesmo, dado,
sem que saia um tostão do Orçamento do
Estado, fora os milhões já gastos nos
estudos amigos. É falso e é bom que ninguém
se deixe enganar logo à partida: parte do
dinheiro virá da UE e podia ser gasto em
qualquer coisa mais útil; parte virá do
Estado directamente; parte poderá vir dos
utilizadores da Portela, chamados a custear
a Ota, a partir de 2007, através de uma taxa
adicional cobrada em cada embarque; e a
parte substancial virá ou da venda de
património público (a ANA), ou da cedência
de receitas do Estado a favor dos privados -
as taxas aeroportuárias dos próximos 30 a 50
anos. É preciso imaginar que somos
completamente estúpidos para não percebermos
que abdicar de receitas ou vender património
rentável é, a prazo, uma forma indirecta de
realizar despesa, agravar o desequilíbrio
das contas públicas e forçar o aumento de
impostos para o compensar. E também uma
forma de pagar bastante mais caro as obras
públicas, para garantir o negócio à banca e
aos investidores privados - como sucede com
as Scut e com a Ponte Vasco da Gama. Se
voltarem a ouvir dizer que a Ota vai sair de
borla aos contribuintes, saibam que vos
estão a tomar por estúpidos.
Resolvida esta questão prévia, o Governo e
os seus cúmplices tinham mais três outras
questões essenciais a explicar: que Lisboa
vai precisar de muito maior capacidade
aeroportuária num futuro médio; que,
existindo o problema, a solução passa pela
construção de um novo aeroporto de raiz e
não pelo acrescento do actual ou pelo seu
aproveitamento complementar com os
adjacentes - Alverca ou Montijo; que esse
novo aeroporto é viável, cómodo para os
utentes e economicamente sustentável,
situado a 50 quilómetros da cidade. Nada
disso foi conseguido: o estudo apresentado
pela Naer, mesmo para ignorantes na matéria
como eu, é uma pífia peça de publicidade
para tolinhos ou distraídos, capaz apenas de
convencer os directamente interessados no
negócio. É lastimável que se queira
comprometer mais de 3000 milhões de euros de
dinheiros públicos, que se planeie retirar a
Lisboa um instrumento económico tão
importante quanto o é o Aeroporto da Portela
e tornar pior a vida de milhões de pessoas
que o utilizam, com os argumentos constantes
de um folheto que mais parece destinado a
vender time-sharing no Algarve.
Por falta de espaço não posso agora analisar
ponto por ponto esta lamentável peça
propagandística, decerto paga a peso de
ouro. Mas, para se ter uma ideia da
leviandade com que ela foi apresentada, dou
o exemplo dos 56.000 postos de trabalho que
supostamente a Ota irá criar - 28.000 dos
quais directos e mais 28.000 indirectos "na
envolvente", sem que se explique minimamente
de onde é que eles nascem e o que é isso da
"envolvente". Ou o exemplo do tal shuttle,
que, saído da Gare do Oriente todos os
quinze minutos em cada sentido, ligará
Lisboa à Ota em 20 a 25 minutos - sem que se
explique onde é que existe a capacidade da
Linha do Norte para absorver esse shuttle.
Ou o exemplo do silêncio feito sobre o
destino do Aeroporto Sá Carneiro, em cuja
modernização se gastaram recentemente 300
milhões de euros, e que tem a morte
anunciada com o aeroporto da Ota. Ou o facto
de não se incluírem nos custos estimados
nada que tenha a ver com as acessiblidades
necessárias, quer ferroviárias (o shuttle
mais o TGV), quer rodoviárias, incluindo a
construção de uma nova auto-estrada e o
prolongamento da A13. Ou ainda o facto de
não haver qualquer estudo económico que se
proponha quantificar os custos de utilização
da Ota, no que respeita a horas de trabalho
perdidas nas deslocações de e para o futuro
aeroporto, o acréscimo brutal de consumo de
combustível, o aumento da sinistralidade
rodoviária, o aumento dos custos de
exploração da TAP, das demais companhias
aéreas, das empresas sediadas no aeroporto,
das agências de viagem e turismo, das
actividades hoteleiras, etc., etc.
Tudo foi feito, não para convencer os
portugueses e os contribuintes da
necessidade imperiosa da Ota, mas sim para
convencer o grande dinheiro das vantagens
desta oportunidade única de negócio. Foi
feito ao contrário: os que ficaram à porta
deveriam ter sido os primeiros a ser
convidados, e só depois se chamavam os
setecentos. Eu não tenho, e julgo que
ninguém poderá ter, a pretensão de ter
certezas absolutas sobre isto: não sei se a
Ota se virá a revelar uma decisão visionária
ou antes um imenso e trágico desperdício.
Mas o que sinto em todo este processo é que
a decisão já estava tomada desde o início e,
tal como sucedeu com a regionalização -
outra das soluções mágicas dos socialistas -
o Governo se acha competente para tomar
decisões que comprometem drasticamente o
nosso dinheiro e o nosso futuro, sem se
preocupar em explicar e convencer os que têm
dúvidas. Por isso é que toda esta questão da
Ota cheira mal à distância: cheira a
voluntarismo político ao "estilo João
Cravinho", que tanto dinheiro custou e
continua a custar ao país, e a troca de
favores com a clientela empresarial
partidária, a que costumam chamar
"iniciativa privada".
Para esse peditório já demos. Já demos
demais, já demos tudo o que tínhamos para
dar. O país está cheio de fortunas
acumuladas com negócios feitos com o Estado
e pagos com o dinheiro dos impostos de quem
trabalha, em investimentos cuja utilidade
pública foi nula ou pior ainda - desde os
estádios do Euro até aos hospitais de
exploração privada. Seria bom que quem manda
compreendesse que já basta. Jornalista