Público - 25 Nov 05

Foi você que pediu um aeroporto?

Miguel Sousa Tavares

 

Aquilo parecia uma reunião de vendas da Tupperware, em ponto gigantesco. Setecentos convidados escolhidos a dedo passaram um dia a ouvir o Governo e os consultores por ele contratados (e todos eles parte interessada no negócio) a defenderem os méritos do futuro aeroporto da Ota. Dos setecentos convidados, alguns eram institucionais, ligados ao assunto pela própria natureza das suas actividades, mas a grande maioria era composta por candidatos à compra do negócio: consultores, bancos, construtores, advogados de negócios públicos, enfim, a nata do regime, as "forças vivas" da nação.
Lá dentro, os setecentos magníficos estavam positivamente desvanecidos à vista de tantos e tantos milhões que o Governo socialista tinha para lhes dar. Havia dinheiro no ar, dinheiro nos gráficos apresentados, dinheiros nos "documentos de trabalho", dinheiro a rodos. O nosso dinheiro, os milhões dos nossos impostos. Mas ninguém nos convidou para entrar: é assim a democracia.
A primeira mentira que o Governo promove acerca da Ota é a de tentar convencer os tolos que o futuro Aeroporto Internacional Mais Perto de Lisboa não vai custar praticamente nada aos cofres públicos. Acredite quem quiser, o Governo jura que a "iniciativa privada" resolveu oferecer um novo aeroporto ao país. Assim mesmo, dado, sem que saia um tostão do Orçamento do Estado, fora os milhões já gastos nos estudos amigos. É falso e é bom que ninguém se deixe enganar logo à partida: parte do dinheiro virá da UE e podia ser gasto em qualquer coisa mais útil; parte virá do Estado directamente; parte poderá vir dos utilizadores da Portela, chamados a custear a Ota, a partir de 2007, através de uma taxa adicional cobrada em cada embarque; e a parte substancial virá ou da venda de património público (a ANA), ou da cedência de receitas do Estado a favor dos privados - as taxas aeroportuárias dos próximos 30 a 50 anos. É preciso imaginar que somos completamente estúpidos para não percebermos que abdicar de receitas ou vender património rentável é, a prazo, uma forma indirecta de realizar despesa, agravar o desequilíbrio das contas públicas e forçar o aumento de impostos para o compensar. E também uma forma de pagar bastante mais caro as obras públicas, para garantir o negócio à banca e aos investidores privados - como sucede com as Scut e com a Ponte Vasco da Gama. Se voltarem a ouvir dizer que a Ota vai sair de borla aos contribuintes, saibam que vos estão a tomar por estúpidos.
Resolvida esta questão prévia, o Governo e os seus cúmplices tinham mais três outras questões essenciais a explicar: que Lisboa vai precisar de muito maior capacidade aeroportuária num futuro médio; que, existindo o problema, a solução passa pela construção de um novo aeroporto de raiz e não pelo acrescento do actual ou pelo seu aproveitamento complementar com os adjacentes - Alverca ou Montijo; que esse novo aeroporto é viável, cómodo para os utentes e economicamente sustentável, situado a 50 quilómetros da cidade. Nada disso foi conseguido: o estudo apresentado pela Naer, mesmo para ignorantes na matéria como eu, é uma pífia peça de publicidade para tolinhos ou distraídos, capaz apenas de convencer os directamente interessados no negócio. É lastimável que se queira comprometer mais de 3000 milhões de euros de dinheiros públicos, que se planeie retirar a Lisboa um instrumento económico tão importante quanto o é o Aeroporto da Portela e tornar pior a vida de milhões de pessoas que o utilizam, com os argumentos constantes de um folheto que mais parece destinado a vender time-sharing no Algarve.
Por falta de espaço não posso agora analisar ponto por ponto esta lamentável peça propagandística, decerto paga a peso de ouro. Mas, para se ter uma ideia da leviandade com que ela foi apresentada, dou o exemplo dos 56.000 postos de trabalho que supostamente a Ota irá criar - 28.000 dos quais directos e mais 28.000 indirectos "na envolvente", sem que se explique minimamente de onde é que eles nascem e o que é isso da "envolvente". Ou o exemplo do tal shuttle, que, saído da Gare do Oriente todos os quinze minutos em cada sentido, ligará Lisboa à Ota em 20 a 25 minutos - sem que se explique onde é que existe a capacidade da Linha do Norte para absorver esse shuttle. Ou o exemplo do silêncio feito sobre o destino do Aeroporto Sá Carneiro, em cuja modernização se gastaram recentemente 300 milhões de euros, e que tem a morte anunciada com o aeroporto da Ota. Ou o facto de não se incluírem nos custos estimados nada que tenha a ver com as acessiblidades necessárias, quer ferroviárias (o shuttle mais o TGV), quer rodoviárias, incluindo a construção de uma nova auto-estrada e o prolongamento da A13. Ou ainda o facto de não haver qualquer estudo económico que se proponha quantificar os custos de utilização da Ota, no que respeita a horas de trabalho perdidas nas deslocações de e para o futuro aeroporto, o acréscimo brutal de consumo de combustível, o aumento da sinistralidade rodoviária, o aumento dos custos de exploração da TAP, das demais companhias aéreas, das empresas sediadas no aeroporto, das agências de viagem e turismo, das actividades hoteleiras, etc., etc.
Tudo foi feito, não para convencer os portugueses e os contribuintes da necessidade imperiosa da Ota, mas sim para convencer o grande dinheiro das vantagens desta oportunidade única de negócio. Foi feito ao contrário: os que ficaram à porta deveriam ter sido os primeiros a ser convidados, e só depois se chamavam os setecentos. Eu não tenho, e julgo que ninguém poderá ter, a pretensão de ter certezas absolutas sobre isto: não sei se a Ota se virá a revelar uma decisão visionária ou antes um imenso e trágico desperdício. Mas o que sinto em todo este processo é que a decisão já estava tomada desde o início e, tal como sucedeu com a regionalização - outra das soluções mágicas dos socialistas - o Governo se acha competente para tomar decisões que comprometem drasticamente o nosso dinheiro e o nosso futuro, sem se preocupar em explicar e convencer os que têm dúvidas. Por isso é que toda esta questão da Ota cheira mal à distância: cheira a voluntarismo político ao "estilo João Cravinho", que tanto dinheiro custou e continua a custar ao país, e a troca de favores com a clientela empresarial partidária, a que costumam chamar "iniciativa privada".
Para esse peditório já demos. Já demos demais, já demos tudo o que tínhamos para dar. O país está cheio de fortunas acumuladas com negócios feitos com o Estado e pagos com o dinheiro dos impostos de quem trabalha, em investimentos cuja utilidade pública foi nula ou pior ainda - desde os estádios do Euro até aos hospitais de exploração privada. Seria bom que quem manda compreendesse que já basta. Jornalista

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