Éperante acontecimentos particularmente "disfuncionais" que os instrumentos
tradicionais de interpretação do mundo se revelam mais insuficientes e mesmo
propícios à demagogia - na medida em que aplicam categorias pré-concebidas e
desajustadas. É o que tem sucedido face à gravidade dos distúrbios em França.
Nada é mais sintomático que esse desajustamento, e os perigos de leitura daí
recorrentes, que o recurso metafórico a um "Maio de 68 dos subúrbios" ou a uma "Intifada
francesa". Que a questão é francesa e que há jovens usando meios violentos é uma
evidência, como também que tomou um cunho político com o confronto declarado com
o ministro do Interior Nicolas Sarkozy depois de este ter empregue o termo de
"escumalha" - mas será a questão só francesa e será ela em primeiro lugar
eminentemente política?
Já se sabe que a imigração e a segurança, questões bem reais e inegáveis, são
também propícias à mais grave demagogia. Por cá, também não faltou o líder do
grupo parlamentar do CDS/PP a vir responsabilizar as "políticas de imigração
laxistas da esquerda".
Neste caso como noutros verifico que a lógica de produção do "comentário", quer
na "opinião" impressa como tal, quer em políticos, vai de par com um efectivo
imenso alheamento do mundo, esquecendo que, como dizia Hanna Arendt, é preciso
"compreender" - o que não é, de modo algum, o mesmo que "aceitar" ou "desculpabilizar".
Tive ocasião recentemente de organizar no DocLisboa um programa que designei por
Histórias da Europa sobre "nacionalismos, identidades e fronteiras". Um dos
filmes que fiz questão de dar a ver foi Mémoire d"Immigrés, de Yamina Benguigui
(1997), tal como uma das minhas escolhas foi Melila - L"Europe au pied du mur,
que ganhou uma inesperada actualidade por, poucos dias antes do início do
festival, a situação se ter de novo agravado nos dois enclaves/colónias
espanholas no Norte de África.
Falemos então de uma palavra banida nos discursos: capitalismo. Se um intuito
fundamental do filme de Benguigui é a fixação e transmissão de uma "memória", de
pais para filhos, não é menos esclarecedor o depoimento de líderes do patronato
e de representantes oficiais, incluindo dois ministros de governos "de direita",
Michel Durafour e Lionel Stoleru.
A seguir à guerra, o capitalismo francês precisou de mão-de-obra, e foi-a buscar
ao que era então território francês: a Argélia. E iam-se buscar homens,
celibatários. Como diz um dos responsáveis, houve dois erros de percepção: de
que esses imigrantes seriam apenas temporários e acabariam por partir de novo ou
que se fundiriam na sociedade francesa, como sucedeu com os portugueses,
entretanto também chegados em massa nos anos 60. Não sucedeu nem uma ou coisa
nem outra. Por um lado, tornou-se claro, e politicamente admitido a partir dos
anos 70, na presidência de Giscard, que havia uma questão de reunião de
famílias, e por outro lado, que os imigrantes do norte de África continuavam
culturalmente diferenciados.
Em torno das cidades, a partir de 1975, começou a erguer-se uma floresta de
betão e todo um novo jargão: HLM, "habitation de loyer moderé", prédios de
habitação social, "cité", ZUP, "zona de urbanização prioritária", e mesmo ZUS,
"zonas urbanas sensíveis".
E surgiu entretanto como actor social a segunda geração, em grande parte já
nascida em França. Em Dezembro de 1983 deu-se a "marche des beurs", movimento de
grande amplitude dos jovens que, contrariamente aos pais que sempre tinham
vivido na invisibilidade social, se manifestaram e exigiram um tratamento não
diferenciado.
Mas depois desse momento cívico e (ainda) político dos anos 80, houve o
prenúncio de uma nova fase, com os distúrbios na área urbana de Lyon, em Outubro
de 1990, que levaram Miterrand e o então primeiro-ministro Rocard a criar um
Ministério das Cidades, das Cidades, frise-se. Se nos recordarmos, contudo, que
no último governo da era Miterrand, o de Bérégovoy, esse ministério foi confiado
a um arrivista, Bernard Tapie, há que concluir que a política da "esquerda"
cedeu o lugar à politiquice.
Quando se proclamam novas invasões "bárbaras" (terminologia já de si reveladora)
convém ter presente quanto foram os centros produtivos europeus que atraíram a
si força de trabalho e que no Norte de África há ainda um Estado europeu que
detém colónias que proclama "fronteiras da Europa", e que caberia a toda a
Europa defender, e onde continua a ser feita a triagem da mão-de-obra. Só que
entretanto os "outros" tinham vindo para ficar na periferia das cidades - como
os "beurs", os magrebinos em França.
"Ce nom de "beur"", como alguém diz no filme de Benguigui, é afinal o quê? A
nomeação de uma identidade "truncada", de pessoas entre diferentes culturas, que
são franceses mas também magrebinos, muçulmanos ou africanos, que não se sentem
totalmente integrados em nenhuma cultura e que, agora que vinte anos passados
sobre um movimento cívico como a marcha, o tempo de uma outra geração, cada vez
mais des-integrados, segregados e auto-segregados, tendem a criar laços entre si
inorgânicos de comunidade.
Todo a tradição republicana francesa assenta na suposição da comunidade nacional
como um todo uno, indivisível e homogéneo, mas esse princípio, tenha-se
presente, tornou-se extensível à fundamentação genérica do Estado-Nação. É
escusado vir argumentar com o multiculturalismo, princípio a que o Estado
francês sempre foi particularmente hostil, como se viu na interdição do véu
islâmico na escola, embora recentemente, e até com Sarkozy, se verifique um
discurso dúplice: reafirma-se a laicidade mas estende-se a mão, esperando que
funcionem como instâncias de controlo, ao Conselho Francês do Culto Muçulmano e
à União das Organizações Islâmicas de França, esta tendo até vindo em socorro do
governo, decretando uma "fatwa" preventiva contra os que participassem nas
perturbações da ordem pública.
Não se pode ignorar que existem bandos e é inaceitável a desculpabilização de
actos de violência de que foram vítimas muitos cidadãos. Mas é também
inadmissível que um governante utilize uma linguagem provocatória como
"escumalha", e que, como se já não bastasse um Chirac para exemplo de político
sem escrúpulos, venha agora o seu inimigo jurado Sarkozy seguir-lhe as pisadas.
Mas tudo isto dito, que são efectivas particularidades, em certos aspectos "nada
há de particularmente muçulmano, nem mesmo francês" nos distúrbios, como
escreveu Olivier Roy, um dos principais especialistas do Islão.
Existe um problema de subcultura dos adolescentes que vivem sem fazer nada e só
existem colectivamente, em grupos, como bem explicava no PÚBLICO de sábado o
sociólogo Adil Jazoulay. E que compartilham com outros, territorialmente
afastados, uma "cultura jovem" em que aflora o "gangsta rap". E sobretudo
existem na periferia das cidades.
Não é inédito que um acontecimento circunscrito incendeie todo um território
metropolitano - a difusão das imagens pelos media tendo cada vez mais um efeito
multiplicador. Lembremo-nos dos tumultos de Los Angeles, em Abril/Maio de 1992,
na sequência da absolvição dos polícias que tinham espancado Rodney King - e
L.A. é um conjunto de zonas étnica e socialmente bem definidas, e será já mesmo
Los Angeles, Capital of The Third World, como postula David Rieff.
Em Paris, em França, há um problema de ordem pública. Mas há também um problema
de cidadania, que só poderá lograr-se com uma concepção cosmopolita, em que os
"outros" sintam que também podem ser parte do Estado-Nação. E há um problema de
cidades e de subúrbios, essa questão metropolitana que é política e socialmente
vital - se a política é o governo da cidade, uma política das cidades e do
espaço urbano é hoje uma prioridade máxima.
Ouvi numa rádio ser interrogado um dignitário islâmico sobre se eventos
semelhantes seriam possíveis em Lisboa - como se a questão fosse de ordem
religiosa. Mas por exemplo em Chelas ou na linha de Sintra, no betão
desordenado, há as sementes da desordem metropolitana e da des-integração dos
adolescentes que às vezes se incendeiam. Crítico