Público
- 10 Nov 05
O retorno da violência política disfarçada de
"revolta social"
José Pacheco Pereira
Se se pensa que está
consolidada nas democracias a condenação da
violência como instrumento político, pensa-se mal.
Desde que os movimentos radicais da extrema-esquerda
e extrema-direita, que defendiam a violência
"revolucionária", perderam influência e se
desintegraram nos anos 80, com o fim do surto
terrorista que das Brigadas Vermelhas italianas, às
FP portuguesas, atravessou toda a Europa, que
parecia haver um consenso político de intransigência
quanto ao uso da violência nos sistemas
democráticos. O caso da ETA e do IRA eram excepções
que confirmavam a regra de que em democracia a
violência estava de todo excluída.
Mas desenganemo-nos. Bastou surgir uma nova
violência, com novos actores e novas causas,
ocupando, mesmo que ilusoriamente, o local e a
memória dessa violência radical do passado, para se
verificar que importantes sectores políticos da
nossa sociedade democrática mostram uma enorme
complacência com a sua utilização como instrumento
político. Nos sectores tradicionalmente da
"esquerda", e numa "direita" complexada e temerosa,
volta de novo a haver um caldo cultural para que a
violência política surja como aceitável, como
"justificada".
O mecanismo fundamental de aceitação da violência
nos nossos dias é uma espécie de sociologia de
pacotilha, mais herdeira do marxismo do que parece,
que explica a "revolta dos jovens" (bem-aventurado
eufemismo) pelas condições sociais da sua vida. É
uma "explicação" que tem muito de voluntarismo
político e pouco de ciência, embora, como também
acontecia com o marxismo no passado, pretenda
fornecer uma inevitabilidade causal. Antes, os
proletários deveriam fazer a revolução violenta
porque eram explorados e a sua "mais-valia"
apropriada pelos capitalistas, agora os jovens
revoltam-se porque não têm "esperança no futuro" e
são marginalizados. Em ambos os casos há sempre uma
explicação social útil, que ilude o adquirido
político do pensamento democrático, dissolvendo-o
nas mesmas perigosas ideias sobre a "justificação"
da violência pela causalidade social.
De novo, aqui se está num terreno de dupla ilusão:
nem a "revolta" é tão "social" como parece, e inclui
dimensões criminais, de vandalismo juvenil, de
"mentalidade", que não são redutíveis à economia,
como são deliberadamente minimizadas as motivações
de ordem cultural, religiosa e civilizacional,
bastante mais importantes do que parecem. É evidente
que há factores "sociais" que explicam o que se
passa, mas não é por aqui que se vai longe. Há
desemprego, guetização, marginalidade, exclusão e
racismo, mas há também outras causas de que se evita
falar, tão "sociais" como as anteriores, como seja o
efeito em populações deprimidas da intensa
subsidiação do providencialismo do Estado, gerando
expectativas artificiais e um direito permanente de
reivindicação, cada vez mais incomportável numa
Europa em declínio, da recusa do trabalho por uma
"vida de rua" sem controlo, nem "patrão", de
discriminações sexuais de origem cultural e
religiosa que têm a ver com a ideia patrimonial da
mulher muçulmana pelos homens da sua família. O
urbanismo dos HLM é culpabilizado, mas cada uma das
cités que agora se inflama - e pouco sabemos, porque
ninguém nos quer dizer, se é significativo o número
de "jovens" envolvido - é um verdadeiro paraíso
comparado com os bidonvilles onde os emigrantes
portugueses viveram.
Que a explicação "social" circulante é um
passe-partout simplista, torna-se evidente quanto
ela se centra na condenação da acção policial, na
recusa da criminalização dos actos de destruição e
violência, na ênfase na culpabilização do Estado, do
Governo e dos políticos, na sucessão até ao infinito
das desculpas para o que acontece, como se fosse
inevitável que acontecesse. Abra-se um jornal,
ouça-se uma rádio ou uma televisão, assista-se a um
debate e é desculpa sobre desculpa, tudo isto
culminando com a conclusão que os "jovens" têm razão
em "revoltar-se". Ora isto tem mais a ver com a
política do que com a sociologia.
É por isso que nenhuma desta mecânica explicativa se
usaria se os tumultos tivessem origem em grupos
racistas da extrema-direita, ou de grupos neonazis.
Aí, o que se ouviria de imediato era o apelo à
repressão, a criminalização ideológica, a exigência
de acções punitivas drásticas. Ora, tanto quanto eu
saiba, a proliferação de grupos neonazis, na
Alemanha de leste, por exemplo, também traduz a
mesma "falta de esperança" de uma juventude que tem
elevadas taxas de desemprego. Só que aí ninguém
avança ou aceita explicações "sociais", e ai de quem
minimizasse qualquer violência desses "jovens" que
nunca teriam direito a este tratamento tão
simpático, mesmo quando também são jovens...
Outra variante da desculpa "social" para a violência
é o factor identitário, a crise da segunda geração
entre dois mundos culturais muito diferentes. Só que
também muito voto para Le Pen e muito da violência
racista alemã traduz igualmente a crise de
identidade dos nacionais, quase sempre mais velhos e
encurralados, face a um mundo que lhes parece
estrangeiro, agressivo e hostil.
O que está em jogo não é o pastiche sociológico
carregado de culpa que nos querem vender, num
daqueles sobressaltos de unanimismo explicativo, a
que estamos a assistir cada vez mais desde a guerra
do Iraque, feito de pouco pluralismo, simplismos
brutais e ideologia dominante do politicamente
correcto. O que está em jogo é o primado do Estado
de direito - contam-se pelos dedos de uma mão as
pessoas que tiveram a coragem de falar das leis - e,
com ele, as nossas liberdades e direitos adquiridos.
Sim, são as nossas liberdades e a nossa democracia
que ardem nos arredores das cidades francesas, não é
Sarkozy, que, se fosse demitido, seria o melhor
atestado da fragilidade do Estado francês e a
receita para muitos mais tumultos em que ninguém
teria mão. A oposição socialista em França e a
cizânia dentro da maioria andam aqui a brincar com o
fogo.
A minha geração namorou o suficiente com a violência
política para a conhecer bem. Tinha as melhores das
razões para esse namoro, havia um Estado ditatorial
que conduzia uma guerra iníqua. Mas, como muitas
vezes acontece, há uma mistura entre as melhores das
razões e as piores das ideias, e há que reconhecer
que o impulso terrorista que levou aos crimes das
Brigadas Vermelhas também existia por cá. Se o 25 de
Abril não se tivesse dado em 1974, vários grupos da
extrema-esquerda portuguesa teriam caminhado para o
terrorismo político que se prolongaria mesmo em
democracia. Felizmente, a alegria e a força da
liberdade reconquistada varreu tudo e todos e essa
mesma geração tornou-se um pilar da democracia
portuguesa, a que trouxe outras experiências de vida
e luta.
Por isso, podemos perceber bem o que se está a
passar na Europa. Os "jovens" são de facto os filhos
dos imigrantes, cuja demografia salva e condena a
Europa ao mesmo tempo, salva-a da extinção
demográfica e condena-a a ser uma Europa em cujo
espelho a antiga Europa greco-latina e
judaico-cristã, a única que há, não se reconhece.
Este dilema não está apenas a fazer arder os carros,
está também a incendiar a democracia política com
ideias que lhe são alheias e hostis.
Este dilema só pode ser superado com intransigência
na defesa da lei e do direito e na proclamação, sem
dúvidas, de que não é legítima em qualquer
circunstância, insisto, em qualquer circunstância, o
uso da violência para obter objectivos políticos
quando se vive em liberdade. Este é um adquirido de
muitos anos de luta, que custou muito sacrifício e
muito sangue, mas é das coisas em que a Europa deve
ter orgulho e não culpa. O modo como se está a ser
complacente com os tumultos franceses mostra que
onde devíamos ter orgulho passamos a ter vergonha, e
passamos a ter culpa. Estamos velhos e com medo,
este é o estado da Europa. Historiador
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