Público
- 9 Nov 05
Vieram para ficar
Manuel Queiró
1.O mal-estar que a onda de
vandalismo em França revela é demasiado profundo
para que se possa perder tempo com explicações de
conjuntura política. No momento em que as classes
médias se alarmam com a destruição nocturna dos seus
bens mais comuns, quando o cidadão anónimo tem de
escapar do autocarro para não arder com ele, ou
quando os bombeiros e polícias que acorrem são
alvejados a tiro, deveria ser evidente para toda a
gente que o problema não se resolve com a
culpabilização de um ministro ou de um governo. Mas
apesar de tudo é natural que se acabe por ir por aí.
A sociedade mediática exige explicações simples, e
para a paz dos espíritos é de longe preferível
acreditar em que no fundo não estamos a viver mais
do que um Maio de 68 pós-moderno.
Mas o que se passa vai muito para além disso. Há
quarenta anos vivia-se o tumulto dos filhos da
sociedade de consumo enfadados com ela, hoje
assistimos à amotinação dos que sentem que não
conseguem a ela chegar. Entre a barriga cheia e a
desesperança vai toda a distância que separa as duas
revoltas. E a sensação de impotência e medo sugere
que não são os excluídos que vivem em guetos, é a
moderna sociedade urbana que se vê transformada em
gueto de ricos. As imagens de riqueza e modernidade
que o mundo desenvolvido quotidianamente transmite
são-lhe devolvidas sob a forma de ódio e
ressentimento. Até ontem como sinais distantes, hoje
na rua ali mesmo ao lado.
Ficará esta novidade apenas pela França, ou
contagiará o resto da Europa? Para já é a Europa da
"1.ª velocidade" e do "pelotão da frente" (os
vizinhos da França, para abreviar) a única que
parece sentir-se ameaçada. Mas na verdade é todo um
continente que está a ser interpelado. Basta atentar
nos sucessivos falhanços políticos europeus, e na
crescente insustentabilidade do seu modelo social,
para ver como a Europa se vai constituindo em
principal vítima em potência da globalização. Vista
deste modo, a insurreição dos subúrbios é apenas
mais um sinal, desta vez particularmente gritante,
da extraordinária dificuldade em que toda uma
sociedade se encontra para manter o seu modo de
vida.
Ainda assim, é natural que a resposta no imediato
seja comandada pela tentativa de preservar o que
está e que se guardem as reflexões de outro alcance
para mais tarde. O policiamento e a segurança vão
ser inevitavelmente postos em causa, bem como a
política de integração à francesa, republicana,
laica e assente na cidadania. A tradicional abertura
à imigração vai ser furiosamente atacada e o
discurso politicamente correcto vai ter de se
adaptar. Vai-se despejar dinheiro para cima dos
bairros problemáticos, o que não deixará de colocar
a questão de saber de que outros programas sociais é
que ele vai ser retirado. Politicamente, a direita
francesa vai ficar entalada entre os bons propósitos
da esquerda e o "eu bem te dizia" da extrema-direita.
E a luta pelo Eliseu dificilmente escapará à
instrumentalização destes distúrbios.
Mas de uma coisa podemos ficar seguros. Não há
saídas "boas" para o que está a acontecer. Mais
gastos públicos, mais policiamento, porventura maior
crispação entre comunidades e culturas, tudo isso
servirá de pano de fundo para o desenrolar do outro
drama. O do progressivo empobrecimento de uma Europa
que não consegue encontrar soluções para as
expectativas que gerou. Nem para os seus nem para os
outros, que lhe batem cada vez mais à porta. E que
na emergência nem sequer consegue pôr-se de acordo
sobre o que fazer. Perante o falhanço da integração
da segunda geração de imigrantes (magrebinos e
africanos, segundo os relatos), não era no
Parlamento Europeu que se protestava por os
espanhóis não abrirem as portas do deserto em Ceuta
e Melilla?
2. O anunciado desastre da Ota e do TGV lá vai de
vento em popa. Parece que o que agora importa é
acelerar as obras, porque "estamos fartos de
indecisões", porque "passou o tempo em que se
discutia, agora é preciso decidir", porque "há uma
opção que nunca tomaremos, que é a de não fazer
nada", e por aí fora. Mas não pode passar sem reparo
a total falta de transparência que rodeia estas
decisões. Quando choveram as críticas a estes mal
justificados projectos invocaram-se repetidamente os
estudos que o Governo possuiria e oportunamente
divulgaria. Ora o que acontece é que eles nunca mais
aparecem. Fica-se com a ideia de que eles não dizem
o que convém, ou então, que não resistirão ao
escrutínio independente.
Exemplos? Vejamos um caso. A construção de uma linha
de TGV é muito cara (qualquer coisa como 10 milhões
de euros o quilómetro), e qualquer estudo de
rentabilidade do investimento tem muita dificuldade
em integrar esse custo. Ele teria que ser assumido
como custo público, justificado pelas suas
externalidades positivas e assumido pela
colectividade. Mas mesmo assim a rentabilidade de
exploração de uma linha continua a ser muito
problemática, porque exige preços de transporte
caros e um fluxo de passageiros muito elevado (à
volta de cinco milhões por ano, dizem-me). A
curiosidade sobre os números que a este respeito
vierem a ser divulgados é imensa, já que o número de
passageiros que em Portugal circula anualmente em
comboios, em todas as linhas e comboios existentes,
anda hoje à volta dos três milhões...
Da Ota não apetece falar. O Governo já nem nega que
a ampliação do actual aeroporto e a adaptação de uma
outra pista para o low-cost era uma solução muito
mais barata, e a vários títulos preferível.
Simplesmente cala-se. E periodicamente avança com
mais uma afirmação peremptória sobre a
inevitabilidade da Ota, na lógica do facto
consumado. Já neste orçamento, como quem tem medo
que alguém lhe estrague a encomenda. Só que não se
percebe quem o poderia fazer. O candidato Cavaco
Silva evita as questões polémicas, sobretudo as que
têm a ver com o Governo. Disse apenas que os
projectos públicos devem obedecer a uma boa relação
entre o custo e o benefício. Se é por isso que o
Governo se apressa, então a oposição tem ainda mais
motivos para exigir os tais estudos. Engenheiro
civil