Público
- 8 Nov 05
Não é o social, estúpido: é a cultura!
José Manuel Fernandes
Tanto é necessário ser implacável com a barbárie como
compreender que é preciso tolerar a diferença
Uma das coisas que distinguem o "modelo
social europeu" - mesmo nas suas diferentes declinações - é
que este procura que ninguém viva na miséria absoluta. É
mais fácil encontrar alguém sem as mínimas condições de
subsistência nos Estados Unidos do que na maior parte dos
países da Europa. Em contrapartida, é muito mais fácil
encontrar um desempregado na Europa do que nos Estados
Unidos. É certo que o desempregado na Europa tem "apoio
social" e o americano corre o risco de ficar fora do sistema
(corre o risco, sublinho, porque há muito mais "estado
social", ou welfare state rooseveltiano, nos EUA do que
habitualmente se admite), mas a pergunta que deve ser feita
não é sobre a existência ou não de apoios sociais: é sobre
se é melhor ter mais empregos ou mais protecção social.
O que se tem passado nos últimos dias em França, e ameaça
alastrar a outros países europeus, ajuda-nos a encontrar a
resposta: um indivíduo, qualquer indivíduo, cidadão, ser
humano, homem, mulher, nacional, imigrante, prefere
trabalhar, mesmo ganhando menos, do que sobreviver de
esmolas públicas. Quem trabalha pode ter esperança de
conseguir apanhar o "ascensor social"; se viver de apoios
sociais apenas pode aspirar a sobreviver. Pode fazê-lo em
bairros onde até há escolas, bibliotecas e ginásios e as
casas estão bem aquecidas, mas se tiver um mínimo de orgulho
pessoal, sentirá que a ociosidade é sempre mais depressiva
do que um emprego mal pago ou precário.
Os jovens, ou os adolescentes, que multiplicam actos de
vandalismo em França podem ter muitas motivações - uns estão
zangados com o ministro Sarkozy, outros fazem parte de gangs,
alguns só não querem deixar de fazer o que os outros fazem,
quase todos estão naquela idade em que a agressividade
transpira por todos os poros -, mas o seu problema não é o
Estado francês não ter investido muito naqueles bairros (às
vezes mal, muito mal) ou continuar a apoiar as muitas ONG
que aí trabalham. O seu problema é que os imigrantes de
segunda e terceira geração sentem-se numa terra de ninguém,
mesmo quando não o verbalizam.
O bilhete de identidade diz que são franceses. Mas não se
sentem franceses em casa, onde se recordam identidades
perdidas, nem na escola, onde não se encontrou o bom
equilíbrio entre promover os valores democráticos e liberais
que caracterizam a França e aceitar o pluralismo cultural e
religioso quando este não ofende os direitos humanos. Por
outras palavras: não se é francês, ou britânico, ou europeu,
sem partilhar um mesmo desígnio colectivo e valores
comummente aceites; e também não se força ninguém a ser
francês impondo-o por lei, uniformizando costumes inócuos;
finalmente ninguém se sente como francês quando os franceses
o olham de lado, quando lhe fecham as portas na cara, lhe
recusam o emprego ou até o marginalizam nos espaços
públicos.
Rejeitemos pois as leituras simplistas. Rejeitemos sobretudo
a ideia de que o Estado e o orçamento, só por si, podem
resolver este problema. Não há apoios sociais que voltem a
pôr a funcionar o "ascensor social" - o "ascensor social" só
funciona com um dinamismo económico perdido, com a noção de
que só se pode ser implacável com a barbárie e tolerante com
a diferença. Mais: a integração só é possível se ambas as
comunidades quiserem. Os franceses são devedores dos
imigrantes, estes também são devedores da França: sem que
ambos entendam isso, não haverá solução. Apenas paliativos.