Público
- 8 Nov 05
Paris já está a arder?
Teresa de Sousa
A Europa enfrenta hoje um dilema que desafia as suas
sociedades. Tem um problema de integração das comunidades de
imigrantes não--europeias e continuará a ter uma tremenda
necessidade de imigrantes, que vão continuar a chegar, seja
qual for a altura do arame farpado
que coloque nas suas fronteiras
1.Há já uns tempos largos, vi na
televisão francesa uma daquelas reportagens, raras, que
nunca mais nos saem da cabeça. Já não sei reproduzir os
nomes e os locais - sei apenas que podiam bem ser Bobigny ou
Seine-Saint-Denis ou Clichy-sous-Bois. Mas tenho diante dos
meus olhos para sempre o rosto belo e determinado de uma
jovem francesa de origem magrebina a contar a sua história.
A história de uma mulher que vivia num desses banlieues de
Paris que hoje estão em chamas e que foi sujeita aos
"costumes" da sua comunidade muçulmana sem que as
autoridades franceses tivessem mexido um dedo. Violada por
um grupo de rapazes, foi ela que se viu desonrada no seu
meio e nenhum castigo, naturalmente, se abateu sobre os
violadores. Até ao dia em que a sua coragem a levou a fazer
do caso uma questão pública.
Esta história, dramática e antiga, certamente já amplamente
discutida na França, diz muito sobre o que está por trás das
imagens que hoje, atónitos, contemplamos nos mesmos
banlieues de Paris cujos nomes tão bem conhecemos do mapa do
metro parisiense, onde ocupam as extremidades das linhas que
nunca chegamos a percorrer até ao fim.
Os jovens que incendeiam carros e lojas, numa fúria
aparentemente incontrolada e contagiante, vivem em bairros
onde provavelmente a polícia não gosta de entrar e a lei
republicana não chega. Comunidades fechadas sobre si
próprias, onde tudo, mesmo o mais inconcebível numa cidade
ocidental, rica e civilizada como é Paris, pode acontecer da
mesma forma e com as mesmas regras de um bairro de Argel.
2. Há mais de uma década que a França vive erupções de
violência nas margens mais ou menos degradadas das suas
grandes cidades. Há muito tempo que o chamado "modelo de
integração" francês constitui apenas uma bela fachada para
uma realidade desintegradora e complexa, para a qual a
sociedade francesa parece não ter resposta (leia-se o
relatório publicado pelo Tribunal de Contas de Paris em
Novembro do ano passado sobre o fracasso de trinta anos de
políticas de integração dos imigrantes). Nisso, mesmo com
todos os Katrinas deste mundo, a França - como a Europa em
geral - é muito menos integradora do que a América. O
"elevador social" funciona pior ou pura e simplesmente não
funciona. Basta ler os nomes ou ver os rostos dos deputados
da Assembleia Nacional francesa ou dos sucessivos governos
de França ou, ainda, das suas grandes empresas. Mesmo que a
origem de muitos desses nomes não seja francesa, ela é quase
sempre europeia. Não é magrebina ou africana.
Esta realidade é retratada por números cujo significado tem
a força de um murro. Com uma taxa de desemprego a rondar os
10 por cento (e uma taxa de emprego das mais baixas da UE),
os números falam por si quando se trata dos jovens e da sua
origem: 20 por cento de desemprego nos jovens entre os 19 e
os 29 anos filhos de pais nascidos em França; 30 por cento
na mesma faixa etária para pais nascidos fora de França; 40
por cento para filhos de marroquinos ou argelinos.
Mas esta é apenas a questão social, fruto dos HLM
construídos nos anos 50 e 60 para albergar as grandes vagas
de imigração do pós-guerra e hoje transformados em guetos
que reproduzem as condições sociais em vez de as fazer
evoluir.
O problema é que nada disto cabe na visão que a França tem
de si própria - e que tanto gosta de atirar à cara dos
outros - e, talvez por isso, tem sido sistematicamente
ignorado.
3. Desde as bombas no metro de Londres, em Julho passado,
que a Europa discute intensamente os seus diferentes modelos
de integração das comunidades imigrantes e, sobretudo, dos
jovens de segunda e terceira geração cuja nacionalidade é
já, na maioria dos países, a da terra onde nasceram.
Foram jovens muçulmanos de origem paquistanesa com
nacionalidade britânica e condições de vida socialmente
aceitáveis que colocaram as bombas em Londres. O choque
mergulhou os britânicos num intenso debate sobre o seu
próprio modelo de integração, normalmente considerado como o
oposto do francês - "multicultural" versus "republicano"-,
assente na liberdade de cada comunidade de se organizar como
melhor entender e no direito, até agora intocável, de cada
um ser livre de defender o que quiser.
Na Inglaterra, as mulheres-polícia têm direito a usar véu.
Em França, a lei que proíbe o véu nas escolas públicas
simboliza melhor do que qualquer outra coisa o modelo
oposto.
O problema é, todavia, o mesmo.
Nas ruas a arder dos arredores de Paris ou nos tranquilos
bairros de Leeds o que vemos é a mistura explosiva do
desenraizamento cultural - jovens que vivem numa terra de
ninguém, entre os países de origem dos seus pais e um país
que é deles mas que não sentem como deles -, de duras
condições sociais, muitas vezes sem perspectiva, do
cruzamento perigoso entre criminalidade organizada e
fundamentalismo islâmico. A França não os integrou. Não lhes
ofereceu um sentido de pertença. O problema é o mesmo em
Birmingham, em Berlim ou em Amesterdão. Nos outros países
europeus a única diferença está, talvez, em que a
concentração de imigrantes extra-europeus ainda não é
suficientemente grande.
4. A Europa enfrenta hoje um dilema que desafia as suas
sociedades. Tem um problema de integração das comunidades de
imigrantes não-europeias e continuará a ter uma tremenda
necessidade de imigrantes, que vão continuar a chegar, seja
qual for a altura do arame farpado que coloque nas suas
fronteiras.
Mesmo que se possa aprender muita coisa com ele, o modelo
americano não pode ser facilmente reproduzido na Europa
porque as sociedades europeias não são, na sua origem,
sociedades de imigrantes. São sociedades mais estratificadas
social e culturalmente onde, por isso mesmo, a integração
pela ascensão social não é tão fácil. É, além disso, muito
mais fácil definir o que é ser americano - uma Constituição
e um sonho - do que encontrar um conceito suficientemente
forte do que é ser britânico ou ser francês.
Mas também porque o famoso "modelo social" europeu, mesmo
que nas suas várias versões, assenta num conjunto de
características que levam os que chegam e os que já cá estão
a ter um tipo de expectativas diferentes. Menos assentes na
sua capacidade individual de vencer na vida e de integrar-se
no país que os acolhe e mais no acesso às garantias sociais
a que se julgam, e muitas vezes bem, com direito. Não é
apenas o modelo de integração que está em causa. É o próprio
modelo de organização das sociedades europeias, sujeitas aos
ventos fortes da globalização - que abate as fronteiras e
desfaz qualquer homogeneidade - que é preciso reinventar.
Sem preconceitos nem ideias feitas. Apenas com a ideia muito
clara de que as sociedades europeias têm de assentar em duas
coisas fundamentais: a igualdade de oportunidades (que os
jovens de Bobigny, na sua maioria, não têm) e a aceitação
colectiva de regras e de valores que são o molde das
democracias ocidentais (a que a jovem magrebina não teve
direito).
Antes que o nacionalismo, o populismo e a xenofobia acabem
por ganhar a batalha. Jornalista