Expresso - 5 Nov 05

«Isto é tão importante como a Matemática»
Daniel Sampaio

Monica Contreras e Rosa Pedroso Lima

O coordenador do Grupo de Trabalho para a Educação Sexual, Daniel Sampaio, explica em entrevista o que pretende ver mudado e critica os sucessivos Governos por se terem demitido de tratar «uma matéria difícil e sensível».

EXPRESSO - Defende a obrigatoriedade da Educação Sexual. Para aqueles que defendem que esta deve ser uma matéria facultativa, o que tem a dizer?

DANIEL SAMPAIO - Digo que hoje em dia existem uma série de informações que não podem ser negadas aos jovens. São as informações de prevenção e há recomendações internacionais que dizem que esta prevenção tem de ser global, que temos trabalhar ao mesmo tempo todos os comportamentos de risco, pois eles vêm associados. Nós não inventámos nada. Percebo as preocupações e a sensibilidade de muitos pais e o que é possível fazer é levá-los a participar neste processos e que sejam extremamente críticos. Para mim, a educação para a saúde é quase tão importante como o ensino do português e da matemática. É uma área vital.. Portanto, os pais tal como devem vigiar o trabalho do professor de matemática ou de portugues – se ele falta, se dá a matéria, etc - deve vigiar o professor de Educação para a Saúde. E se entenderem que as coisas estão a ir longe de mais ou que estão numa perspectiva que vai contra a família, devem manifestar-se.

EXP. - Deixa em aberto que escola e os pais concertem posições em relação a conteúdos específicos desta área?

D.S. - Com certeza.

EXP. - E isso não contradiz a ideia da obrigatoriedade?

D.S. - Há uma base da Educação para a Saúde que deve ser dada em todas as escolas, mas admito que haja sensibilidades diferentes.

EXP. - E temas como o aborto ou o uso de anti-concepcionais, na sua opinião, devem obrigatoriamente constar dos conteúdos desta área?

D.S. - Claramente, mas não se pode dizer o que as pessoas devem fazer. Os professores devem informar, devem dizer que é importante não ter relações sexuais de risco, não ter uma gravidez na adolescência. Com um argumento muito simples: as meninas que engravidam na adolescência deixam de estudar. Essa informação deve ser dada, tal como deve ser dada informação dos métodos de contracepção e dizer claramente que não se deve iniciar precocemente a vida sexual. Defendo que se diga isto, não por convicções morais, mas porque há argumentos de ordem biológica e psicológica. Há uma justificação científica. Mas também defendo que, menos até aos 16 anos, a informação deve ser feita com prudência e de acordo com o que a família pensa. Deve haver maleabilidade dentro de um curriculum.

EXP. - Então podemos ter situações muito heterogéneas?

D.S. - Mas sempre dentro de um curriculum base. Há informação que tem de ser dada e trabalhada em pequenos grupos. Estas matérias são sensíveis, não são imediatamente acessíveis a muito jovens. É preciso dar estas matérias, trabalhá-las, discuti-las e promover muita discussão e muita repetição. Pode haver dentro do curriculum base variações de acordo com a sensibilidade dos pais ou de determinada comunidade.

EXP. - Das experiências no estrangeiro há resultados destes programas no que toca à diminuição de comportamentos de risco entre os jovens?

D.S. - É muito difícil fazer essa avaliação, porque as causas destes comportamentos são multideterminadas. Nunca podemos dizer que uma rapariga engravidou porque foi, ou não, informada pela escola. Isso tem a ver com a família dela, com o grupo de jovens, com o namorado, com o farmacêutico que encontrou na farmácia. É muito difícil avaliar. Mas podemos ter alguns indicadores. Se, por exemplo, numa escola tivermos um número significativo de grávidas adolescentes e depois de montarmos um programa deste tipo conseguirmos não ter nenhum caso, é claro que não há uma consequëncia directa, mas é um indicador do que está a fazer. Há também cada vez mais casos de alunos alcoolizados quando chegam à escola. Se fizermos um programa de prevenção do abuso de alcool e verificarmos que isso desapareceu podemos dizer que valeu a pena aquela acção. Podemos estabelecer — e queremos fazê-lo - alguns indicadores para avaliar se estes programas estão a funcionar bem. Mas não haverá nunca uma relação directa.

EXP. - As experiências estrangeiras sobre Educação Sexual não começam tão cedo como as da vossa proposta. Porque propõem que em Portugal comecem logo nos primeiros anos de escolaridade?

D.S. - Acho difícil falar de educação sexual a um menino de seis anos. O que propomos é uma sensibilização a áreas que têm a ver com o corpo e com a relação com o corpo. O que se deve fazer no primeiro ciclo é explicar as diferenças entre menino e menina, a diferença entre a cor da pele. E deve-se sobretudo fornecer às crianças a perspectiva do outro. Nesta fase, a criança está muito centrada em si própria, porque os pais têm muita dificuldade em dizer que não, têm obsessão de ser bons pais e de lhes dar muitas coisas. Todos os educadores estão preocupados com o facto das crianças serem muito indisciplinadas, de terem poucas regras. Isto vem da família. A escola deve ser uma oportunidade decisiva para dizer à criança que não vive sozinha e que há coisas que devem ser interditadas. Aqui a educação para a saúde deve passar muito por isto e pela higiene corporal, por lavar as mãos. Não se deve chamar aqui educação sexual, mas temas da saúde. Adequadas à idade.

EXP.- As experiências internacionais colocam a educação sexual a partir dos 12 anos...

D.S.- Acho que na altura da puberdade ela é muito importante. E a puberdade tem vindo a ser mais cedo. Tem de ser antes dos 13 anos, no 2º ciclo porque nessa altura a maioria das pessoas já passou pela puberdade, que é uma fase de transformação corporal e psíquica muito grande. É quando um corpo começa a ser sexuado e a ter um significado diferente. No 2º ciclo deve surgir a educação sexual. No 1º ciclo seria uma introdução, aliás como prevê o programa actual como uma área de educação para a saúde. Nós não proposemos uma reforma curricular. Nem podíamos propor nenhuma ruptura.

EXP. - Então a vossa é a proposta possível, não a desejável...

D.S. - O que desejávamos é que houvesse uma área de educação para a saúde. Agora não posso dizer que este é um esquema muito bom, quando os miúdos chegam a ter 15 disciplinas no 3º ciclo! Evidentemente que não faz nenhum sentido que haja tanta carga horária e tão pouco tempo para outro tipo de actividades. O ideal seria termos acompanhado isto com uma mudança curricular. Mas perderíamos um ano... E um dos objectivos era dar uma resposta já para este ano lectivo e evitar mais experiências.

EXP.- E com o mínimo de alterações da lei.

D.S. - Já há imensa legislação! Leis não nos faltam. O que nos falta é que as coisas sejam exequíveis e que os professores sejam apoiados permanentemente. E que tenham supervisão.

EXP.- Através deste vosso gurpo?

D.S.- Vamos tentar trabalhar com um grupo de escolas. Mas é pouco. Já começou a estabelecer-se a colaboração entre os Ministérios da Saúde e da Educação e deve continuar.

EXP.- Não há também uma contradição no facto de a educação sexual estar excluída do ensino secundário? Precisamente numa faixa etária de maior risco?

D.S. - Quem me dera poder ter um sítio onde incluir a educação para a saúde neste ciclo! Mas os professores e alunos matavam-me, porque não têm tempo. É claro que é pertinente haver esta área no secundário, mas o programa está tão cheio que não o permite. O que se pode é criar nas escolas uma dinâmica em volta disto, através de debates, pesquisa, trabalho de campo e um gabinete médico que funcione.

EXP. - A formação de professores nesta área tem sido entregue a ONGs. Admite a continuação desta colaboração?

D.S. - Sim. Admito toda a colaboração. A única coisa que considero errada é que o Ministério diga à partida que o assunto seja apenas dessas organizações. A ministra disse uma coisa espantosa, que «o ministério não tem programa»: Não teve culpa, já vinha de trás, mas isto não pode ser. O Ministério tem de ter sempre uma palavra a dizer numa área tão importante como esta.

EXP. - Como explica então a demissão do Ministério ao longo dos anos?

D.S. - Muito facilmente. Pela sensibilidade e a dificuldade do tema. É difícil obter um consenso nesta área e é preciso ter muita firmeza e suportarmos as críticas.

EXP. - Admite que a sua proposta possa não ser consensual?

D.S. - Claro. Eu não quero consensos, quero é criar uma dinâmica de discussão. Porque aí eu obtenho respostas. Se deixo adormecer o assunto e continuar a fazer protocolos com associações, sem saber o que se passa nas escolas, não crio nada. Tenho a certeza que este projecto pode falhar. Pode ter uma série de dificuldades de implementação prática. Mas também sei que ele será discutido e se tiver a contenção necessária para não entrar em polémica com ninguem, garanto que daqui sairá uma solução. Estavamos a cair numa situação muito má e, na prática, o que se passava é que se estava a fazer pouco.

EXP. - Mas ninguem tem o retrato do que se passou nestes 20 anos.

D.S. - Objectivo, não. Temos indicações precisas que os comportamentos de risco aumentaram. Por exemplo, o número de estudantes que consome alcool não aumentou muito, mas aumentou o tipo de bebeidas que consomem. Aumentou o número de estudantes que consome drogas e alguns com consequências preocupantes. Não é possível continuar a ignorar que 20 por cento dos estudantes consome haxixe! Não se faz nada? É considerado uma coisa sem importância? Isto tem de ser discutido nas escola. Com acções dispersas e sem continuidade, não teríamos uma acção segura sobre esta área. Há muita coisa a fazer. E não podemos parar.

EXP. - Está optimista em relação à capacidade de reacção das escolas?

D.S. - Sim. As escolas ainda não têm preparação, mas têm sensibilidade e interesse. Há dificuldades, claro. Nomeadamente na relação com os pais, porque as escolas não têm treino de colaboração entre pais e professores. Também temos de mudar isso, mas esta é uma boa área para trabalhar, porque é um assunto difícil para todos. Por exemplo, se numa escola os professores sentirem que a questão da contracepção — que é evidente que tem de ser dada — tem de ser transmitida com maior precaução, acho perfeitamente adequado.

EXP. - A contracepção tem de ser dada a partir de que idade?

D.S. - A partir do 3º ciclo.

EXP. - Como psiquiatra, acha que os jovens de agora têm menos informação?

D.S. - Têm claramente mais informação, mas as situações de risco são tão grandes e tão diversificadas que a informação não lhes permite ter uma actuação adequada. Por exemplo, a Internet.

EXP.- E o que defende em relação a isso?

D.S. - Vigilância dos pais e da escola. É impossível controlar tudo, mas os pais têm de saber bastante, têm de se preocupar e de exercer vigilância. Sou a favor dos pais impedirem o acesso dos filhos a sites inadequados, informando-os de que o fizeram e quais as razões. A opinião dos pais é sempre muito importante, mesmo que depois os filhos lhes desobedeçam, porque fica sempre presente que os pais estão contra. Isso é muito estruturante. A Educação deve fornecer frustração também. As crianças e os jovens têm de perceber que há coisas que os pais acham que eles não devem fazer e coisas que não podem fazer. E este espírito também passa para a escola, para os professores. Não podemos dizer que sim sempre aos alunos. A escola também tem de exigir sacrifício. Admito que alguns alunos considerem estes conteúdos da Educação para a Saúde uma seca. Mas são importantes.

EXP.- Não é para si admissível a objecção de consciência invocada pelos pais para as matérias de educação sexual? Nomeadamente, em relação a sectores mais fundamentalistas que não querem que a escola fale de contracepção e de aborto.

D.S. - Não é admissível esconder informação por parte da escola. Mas acho também que a escola não deve encorajar determinados comportamentos. A escola deve falar das vantagens e dos inconvenientes dos métodos contraceptivos, mas não deve dizer qual o método a usar. Não deve transmitir a necessidade de determinados comportamentoos. Deve dar informação que permita optar da forma mais livre possível. Não se pode esconder parte da informação, por isso mesmo. O mesmo é falar de homossexualidade. Mas não se pode esconder numa escola que existe. Porque há alunos homossexuais, muitas vezes vítimas de grande violência, até de ordem física. Ora, também não se deve dizer que a homossexualidade é uma coisa muito simples, ou que é uma escolha, porque isso é errado cientificamente. A homossexualidade é um percursos que muitas pessoas seguem devido a múltiplas causas. Não é uma coisa que se escolhe livremente, como se escolhe um clube. A informação deve ser pertinente, actual, baseada na ciência. A opção de cada um deve ser deixada ao seu critério. Quando os pais dizem que recusam que o seu filho aprenda isto, estão a prejudicar a socialização do seu filho e amputam-no da informação.

EXP.- Não sentiu fundamentalismo em relação a este trabalho?

D.S. - Costumo dizer que é uma área muito sensível. Não quero adjectivos. Percebo que é uma área difícil para muitos pais, que têm dificuldade em falar com os seus filhos sobre isto. Eu acho isso natural. Eu já tive a dificuldade como pai em falar deste tema com os meus filhos. Há sempre nesta área uma reserva de intimidade que é difícil. Por isso é mais fácil fazê-lo na escola, que não está tão envolvida emocionalmente. Há uma distanciação que favorece.

EXP. - Que destino deve ser dado às Linhas Orientadoras sobre Educação Sexual traçadas pelo Ministério?

D.S. - Neste momento, não são um documento muito útil, porque a nova dinâmica que se pretende imprimir é de uma Educação para a Saúde.

EXP. - Porque defende o fim dos protocolos com as três ONGs que até agora se encarregravam desta área?

D.S. - Porque a Educação para a Saúde deve ser uma obrigatoriedade do Ministério. A cessação dos protocolos decorre desta premissa: para quê recorrer ao exterior, se temos no interior da escola as potencialidades de cumprir este programa? Está errado que o Ministério se demita desta responsabilidade e a entregue a uma organização externa.

EXP. - Está explícita uma crítica ao que o Governo fez...

D.S. - Completamente. A minha crítica não é às organizações não governamentais, porque não tivemos tempo para fazer uma análise exaustiva do trabalho realizado por elas. Forneceram-nos dados muito pouco precisos sobre o número de sessões e de formandos, mas não houve uma avaliação qualitativa do seu trabalho e estamos há vários anos à espera de resposta de um inquérito feito pelo próprio Ministério. Pedimo os dados muitas vezes e não nos foram dados. Em rigor não podíamos fazer uma crítica ao trabalho dessas organizações.

EXP. - Mas as conclusões da comissão não registam uma crítica implícita a essas organizações?

D.S. - A crítica que pode haver é que essas organizações estão no terreno há muito tempo e os resultados não são bons em termos de diminuição dos comportamentos de risco entre os jovens. Mas a culpa não é só dessas organizações, é da própria escola, das famílias. A minha principal crítica vai para todos os Ministérios que delegaram nas ONGs uma responsabilidade que devia ser dele.

EXP. - E nem sequer se acautelou a avaliação do que foi feito. Continua a ser um mistério que Educação Sexual foi transmitida e para quantos alunos ao longo dos últimos 20 anos...

D.S. - No relatório final falaremos sobre isso. Mas se concluirmos que o trabalho realizado foi magnífico, tiraríamos a mesma conclusão: porque não faz sentido gastar dinheiro, quando a escola está capacitada para dar uma resposta.

EXP. - E em relação aos manuais em circulação?

D.S. - Conheço alguns dos materiais que o EXPRESSO divulgou. Não concordo com muito do que lá vem, pode ferir a sensibilidade das pessoas. Mas essa não é a questão fundamental. Quando falamos com pais, professores e alunos, nunca surgiu a questão dos manuais... Apareceu em algumas entrevistas com associações de pais. Por isso, não privilegiados para já a análise dos manuais, porque achamos que era primeiro necessário dar uma resposta articulada de como se vai organizar na escola nesta educação para a saúde. Mas apelamos para que se façam manuais já tendo em conta esta dinâmica e orientados para a Educação para a saúde em meio escolar, onde deve estar incluído o alcool, as drogas, a violência, a alimentação. Tem de ser muito mais completos.

EXP.- E acha que os manuais devem ser certificados?

D.S. - Sim, por um grupo de peritos, com médicos, psicólogos, enfermeiros. Deve ser nomeado pelo Ministério para avaliar os conteúdos dos manuais, depois de o Ministério definir os conteúdos curriculares.

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