Público - 5 Nov 05
Mau vento
João Cândido da Silva
Um dos problemas mais graves que empresas e consumidores
portugueses são forçados a enfrentar está na escassez de
concorrência em sectores vitais, como a energia e as
telecomunicações. Embora as empresas dominantes nestas áreas
contestem habitualmente os resultados, não faltam estudos
elucidativos sobre os encargos que aquele facto lança sobre
os ombros dos agentes económicos.
A falta de alternativas nos mercados implica que os
operadores tradicionais cobram preços elevados pelos bens
que comercializam e pelos serviços que prestam, erguendo-se
como uma barreira às capacidades competitivas e ao
crescimento económico do país. Mas o fenómeno não se fica
pelas áreas de actividade que têm maior visibilidade, por
estarem em causa bens que ninguém pode dispensar e que são
colocados no mercado por entidades praticamente
monopolistas.
Os casos que têm sido notícia devido à aplicação de coimas
por parte da Autoridade da Concorrência (AdC) revelam como,
num pequeno mercado abandonado à sua sorte, é fácil aos
intervenientes procederem à construção de teias cúmplices,
que geram lucros a quem integra os cartéis e perdas junto
dos consumidores e dos contribuintes. Preços combinados
entre participantes em concursos públicos, como sucedeu no
sector farmacêutico com o objectivo de repartir benefícios
em detrimento do cliente, neste caso o Estado através de
unidades de saúde públicas, são uma das manifestações de uma
forma de actuação que floresceu por conta do vácuo na
fiscalização de práticas condenáveis à luz das regras do
mercado.
Estão por contabilizar os prejuízos que anos consecutivos de
omissão na tarefa de prevenção e repressão de práticas
anticoncorrenciais provocaram na economia portuguesa, onde
os preços do gás, electricidade e telecomunicações estão
entre os mais elevados da União Europeia. Mas a boa notícia
está no facto de a AdC ter começado a dar mostras de querer
assumir o papel decisivo que lhe deve competir na promoção
da mudança em relação aos hábitos instalados. Pelas
denúncias que tem vindo a efectuar e pelas decisões que
tomou mais recentemente, a actuação do organismo devia
constituir um bom exemplo do que significa aceitar dar um
passo em direcção ao objectivo de eliminar os obstáculos ao
bom funcionamento dos mercados. Sucede que parecem haver
espíritos pouco sensíveis a esta questão.
O esvaziamento de competências previsto para a Entidade
Reguladora do Sector Energético (ERSE), proposto pelo actual
ministro da Economia, é um desastrado tiro de artilharia
pesada no edifício que, progressivamente, vinha sendo
erguido nos últimos anos, com a meta de colocar Portugal ao
nível das melhores práticas em matéria de concorrência.
Reguladores fortes e independentes são peças fundamentais
deste processo. E o caminho lógico seria o que conduzisse ao
reforço das suas competências ou, pelo menos, da sua
capacidade de decidir e de actuar sem interferências do
poder político.
Manuel Pinho quer fazer precisamente o contrário, limitando,
com base no modelo espanhol, os poderes da ERSE na aprovação
ou revisão de regulamentos ou em matéria de regimes
tarifários. O retrocesso é evidente, ao ampliar a influência
de factores políticos sobre a actuação do regulador. De
Espanha, o ministro recebeu um mau vento. E o pior é que nem
se apercebe de que vai agravar a gripe no sector da energia.
s argumentos contra a introdução de portagens nas
auto-estradas "sem custos para o utilizador" (SCUT) visam,
basicamente, a obtenção de almoços virtualmente grátis. No
limite, os próprios utilizadores, desde que paguem impostos,
estarão iludidos pela expressão que designa aquelas
infra-estruturas. De forma indirecta, acabarão por ter de
suportar uma parte dos encargos crescentes que estão
previstos para a manutenção das vias em causa, embora
consigam partilhar aquele custo com contribuintes que, mesmo
que nunca venham a circular em qualquer SCUT, não terão
outro remédio senão o de verem uma fatia dos seus
rendimentos ser desviada com o objectivo de subsidiar o
benefício que é desfrutado pelos utilizadores.
Como bem saberão os governantes que, ao longo dos últimos
anos, foram passando pelo Ministério das Finanças, o
dinheiro, infelizmente, não é passível de ser multiplicado
por artes mágicas. Os recursos que são aplicados nas SCUT
fazem falta noutras áreas, o que significa que é necessário
estabelecer prioridades e evitar promessas extemporâneas,
mesmo quando a tentação da mera caça ao voto se mostra
particularmente irresistível. Entre outras, a garantia dada
por José Sócrates, durante a campanha eleitoral para as
legislativas de Fevereiro passado, de que aquelas vias
rodoviárias se manteriam "gratuitas", não passou de uma
tirada precipitada e mal medida, a não ser no que se refere
ao cálculo dos seus efeitos sobre a contagem dos votos.
Perante uma profunda crise das finanças públicas, evidente
para qualquer espírito sério, o líder socialista devia ter
pensado duas vezes antes de praticar a demagogia ou de
acreditar que, uma vez chegado ao Governo, o crescimento
económico iria disparar por efeito de um qualquer milagre,
gerando as receitas suficientes para financiar as SCUT e
muito mais. Após um período de obstinação cega perante as
evidências, o Governo parece finalmente ter começado a
colocar os pés em terra. Já admitiu que vai estudar o
problema e que trabalhará com o objectivo de encontrar
critérios que lhe permitam dar o dito por não dito, num caso
em que existem boas razões para quebrar uma promessa
alucinada.
No próximo ano, de acordo com a proposta de Orçamento do
Estado que começa a ser discutida esta semana no Parlamento,
os custos das SCUT para os contribuintes deverão atingir
perto de 280 milhões de euros, prevendo-se que acelerem para
700 milhões de euros em 2007. Para que se tenha uma ideia
daquilo que está em causa, a soma destes valores chegaria
para construir uma nova Ponte Vasco da Gama e, uma vez
poupada através da introdução de portagens, contribuiria,
obviamente, para o objectivo central de redução do défice
público. Sobre a virtuosa pirueta que o Governo se prepara
para efectuar em relação às SCUT, pode afirmar-se que mais
vale tarde do que nunca. Ainda assim, é preciso não esquecer
que tarde, neste caso, tem um custo elevado. É a
contrapartida, a ser paga pelos contribuintes, por um dos
trunfos jogados por Sócrates na sua vitoriosa corrida ao
cargo de primeiro-ministro.
Mário Soares acha que Cavaco Silva
não tem perfil para ser Presidente da República. E acaba de
descobrir mais duas manchas indeléveis na lista de
qualificações do antigo primeiro-ministro para o exercício
do cargo. Segundo o candidato do PS, Cavaco apenas percebe
de finanças, o que parece ser tremendamente grave. Em
segundo lugar, é provável que não tenha biblioteca, já que,
a acreditar em Soares, falta a Cavaco "cultura humanística".
Naturalmente que ninguém deve ficar surpreendido pelo facto
de Mário Soares se achar a si próprio como a única pessoa em
Portugal iluminada com os dons requeridos para ocupar a mais
alta magistratura da nação. Afinal de contas, os portugueses
conhecem-no e não será aos 81 anos que irá mudar. A
arrogância é a mesma de sempre. Assim como o despudor para,
em alturas de desespero, utilizar os argumentos que
estiverem mais à mão, mesmo que isso o obrigue a descer ao
nível em que começa a escassear o próprio nível. Jornalista
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