Público - 22 Nov 04
O "Case
Study" Buttiglione (2)
Por MÁRIO
PINTO
Continuando o
meu artigo anterior, nada melhor do que alguns excertos da audição
de Rocco Buttiglione na comissão das liberdades civis do Parlamento
Europeu. A que acrescentarei apenas breves notas minhas.
1. Deputada
Buitenweg (Verde, Holandesa). "Senhor Buttiglione: Algumas das suas
opiniões estão em directa contradição com a lei europeia. Por
exemplo: a discriminação com base na orientação sexual é interdita e
o Senhor disse que a homossexualidade é um pecado e é sinal de
desordem moral. Gostaria de saber directamente de si, agora, como é
que nós poderemos esperar que o Senhor combata por esse direito e se
poderia dar-nos um exemplo de como espera alcançar o seu objectivo."
Resposta de
Buttiglione. "Posso recordar um filósofo, já antigo, mas talvez não
completamente esquecido, de Könisberg - um tal Emmanuel Kant -, que
fez uma clara distinção entre moralidade e direito. Muitas coisas,
que podem ser consideradas imorais, não devem ser proibidas. Quando
fazemos política, não renunciamos ao direito de ter convicções e eu
posso pensar que a homossexualidade é um pecado e isso não ter
efeito na política, o que só sucederia se eu dissesse que a
homossexualidade é um crime. Da mesma maneira, a Senhora é livre de
pensar que eu sou um pecador em muitas coisas da vida, e isso não
tem nenhum efeito nas nossas relações como cidadãos.
"Direi por
isso que considero uma abordagem inadequada do problema pretender
que toda a gente concorde em questões de moralidade.
"Nós podemos
construir uma comunidade de cidadãos mesmo que em algumas questões
de moralidade tenhamos opiniões diferentes. A questão é, isso sim,
da não discriminação. O Estado não tem o direito de meter o nariz
nessas questões de moralidade e ninguém pode ser discriminado com
base na sua orientação sexual ou qualquer orientação de género. É
isto o que está na Carta dos Direitos Fundamentais, na Constituição,
e eu tenho defendido esta Constituição."
2. Deputado
Cashman (socialista, Inglês): "não creio que o devamos julgar pelas
suas palavras, mas antes pelas suas acções. Disse-nos hoje que o
Estado não tem o direito de se envolver nas questões que têm a ver
com a orientação sexual. Como explica então que tenha apresentado,
na Convenção para o Futuro da Europa, uma proposta que visava
eliminar da Constituição a referência à orientação sexual no combate
às discriminações?"
Resposta de
Buttiglione: "Quando definimos o princípio da não discriminação,
pretendíamos que ele fosse aplicado não apenas a um número limitado
de casos que estavam enumerados. O princípio é universal, expansivo.
Deve ser aplicado em muitas e variadas áreas e não creio que
constituísse um reforço para a sua aplicação referir em especial o
caso dos homossexuais. Mas, em qualquer circunstância, esse debate
está encerrado. Não tenho dúvidas de que se o Senhor Deputado
Cashman a tivesse escrito sozinho, teríamos uma Constituição ou uma
Carta dos Direitos Fundamentais diferente. E se fosse eu a fazê-lo,
teríamos também uma Carta e uma Constituição diferentes. Mas esta é
a Constituição que escrevemos em conjunto e esta é a Constituição
que nos liga, sob a qual estou disposto a viver e esta é a Carta dos
Direitos que eu quero defender."
3. Mais alguns
exemplos do tipo de inquirição-insinuação que alguns deputados
fizeram a Buttiglione.
Deputado
Alvaro: "...como é que as suas estreitas relações com os Estados
Unidos e o Vaticano vão afectar as suas decisões?" Buttiglione
respondeu: "Eu sou amigo dos Estados Unidos, mas não sou americano.
Tenho divergências com os americanos como todos os europeus têm
tido. Acredito que a Europa tem de viver numa comunidade
transatlântica com dois pilares, sendo a Europa um deles. Temos de
estar preparados para trabalhar com os americanos, como parceiros
iguais, sobre o futuro do mundo, com responsabilidades conjuntas
pelo futuro da humanidade. ...não é segredo que eu sou católico, mas
isso não tem a ver com o Vaticano mas com a minha fé, com as minhas
pessoais convicções; e penso que se pode ser um bom católico e um
bom europeu ao mesmo tempo ... como Adenauer, De Gasperi, Schuman ou
Helmut Kohl."
E ao deputado
In't Veld, reafirmou: "sou contra a discriminação. Penso que todas
as pessoas devem ter os mesmos direitos, homossexuais,
heterossexuais ou o que forem. Estou comprometido a defender os
direitos de todos os cidadãos europeus, incluindo o direito de não
discriminação. O Senhor quer que eu seja pro-activo, mas eu não sei
o que entende por isso. Penso que os direitos dos homossexuais devem
ser defendidos na mesma base dos demais cidadãos europeus. Se houver
específicos problemas para os homossexuais, estou pronto a
considerá-los. Se por exemplo me disser que há uma especial
violência contra os homossexuais, então eu estou pronto a considerar
a hipótese de legislação específica em ordem a protegê-los dessa
violência e a dar melhores garantias do direito à igualdade".
Já depois do
tempo da audição, a uma insinuação de Cashman, Buttiglione teve de
responder: "Tenho de negar, enfaticamente. Já disse claramente que
esta é a Carta dos Direitos Fundamentais que fizemos conjuntamente,
que eu defendo e que eu estou determinado a defender. No que
respeita às razões pelas quais eu fiz propostas de alteração, já
expliquei essas razões. O Senhor pode estar, ou não, de acordo com
as minhas razões, mas penso que a minha resposta foi clara".
4. No
Parlamento Europeu, não havia memória de que as opiniões pessoais
dos seus membros pudessem ser um obstáculo para alcançar postos de
relevo. Há bem pouco tempo, deu-se o caso do socialista espanhol
Borrell, que, tendo declarado que "as práticas sexuais dos católicos
lhe pareciam aberrantes", opinião assaz grosseira e intolerável, nem
por isso foi vetado por qualquer voz ou qualquer partido na sua
candidatura à presidência do Parlamento.
O conhecido
"Wall Street Journal" classificou a oposição do Parlamento Europeu a
Buttiglione como "a Inquisição Laica da Europa". Este veto violou a
não discriminação política por razões de ideologia, consciência e
crenças, que está garantida na Convenção Europeia dos Direitos
Humanos. É por isso que o caso Buttiglione é um sério "case study".
5. Mais ou
menos ao mesmo tempo que sucede isto em Bruxelas, com o sentido
ideológico que tem, aconteceu em Roma a Conferência Mundial das
Mulheres Parlamentares para a protecção das crianças e dos jovens,
com representação de mais de cem países, incluindo Portugal. Aí foi
aprovada por unanimidade esta conclusão: "definir e defender uma
visão da família como unidade fundamental para o desenvolvimento
equilibrado dos filhos". Está aqui a básica ideia de que é a geração
dos filhos e o desenvolvimento equilibrado das crianças e jovens que
pede uma política pública de definição e de defesa da família.
ADENDA: Creio
que há que ponderar acerca do voto que merece a ratificação do
Tratado que aprova a Constituição Europeia. Não tanto por motivos de
arquitectura política e perda de soberania. Mas sobretudo por este
autoritarismo cultural-pós-modernista que tem penetrado em várias
decisões do Parlamento Europeu (este não é o primeiro episódio).
Pelo crescendo de clara inimizade contra o cristianismo e as
religiões (visível em certas potências dominantes). Pela Carta dos
Direitos Fundamentais, que é sonsa e cheia de viezes ideológicos. Já
votei muitas vezes pelo mal menor. Desta vez, o mal maior nem o
consigo ver. A Europa precisa de deter esta tendência demagógica
obcecada pela simples fractura de todos os padrões e referências,
que é verdadeiramente suicida. Professor universitário
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