Diário de Notícias -
15 Nov 04
Suave catástrofe
joão césar
das neves
Professor universitário
As
maiores catástrofes da vida não são súbitas e devastadoras. São
lentas e devastadoras. Os germes matam mais que leões. A principal
dificuldade do nosso desenvolvimento não é o susto da globalização
ou a explosão da concorrência. É a lenta podridão do sistema social,
roído pela cobiça, corporativismo e burocracia. Esta lepra secreta
tornou--se já bem visível na educação. Vejam-se as recentes
estatísticas da OCDE.
Suportámos há tempos o arrastado escândalo da colocação de
professores. Mal se referiu a incomensurável tolice de todo o
exercício. Nenhuma outra profissão do País exige um método de
afectação centralizado de dezenas de milhares de funcionários. Este
sistema mentecapto, que só pode correr mal, deve--se apenas à
imposição pelos sindicatos de um «direito» absoluto do docente a
concorrer ao posto que lhe apetecer, sempre que lhe apetecer,
obrigando o ministério a pagar os custos desse direito. Isto nada
tem a ver com o interesse dos alunos, que prefeririam estabilidade
no ensino. Os professores, que passaram por vítimas, são os
verdadeiros responsáveis. E conseguiram assumir-se de novo como o
assunto central da educação.
Se fosse só isto, estaríamos bem. Mas não passa de um detalhe num
sistema todo ele absurdo. O
curriculum escolar, por exemplo, tem todos os defeitos do
repudiado «livro único» salazarista sem nenhuma das vantagens. O
ministério detalha ao pormenor o que se deve fazer em cada aula de
cada cadeira. Esses elementos, não obrigatórios, são meras sugestões
e apoios pedagógicos. Na prática, porém, acabam por ser seguidos
cegamente, não só por comodismo mas também por medo de problemas nos
exames nacionais. Assim a ortodoxia ministerial se impõe
totalitariamente ao País.
Em teoria, estes programas são isentos, objectivos, neutros. Como
essa imparcialidade não existe, acabamos por ter um ensino altamente
ideológico que nem sequer se assume como tal. Alguns casos têm sido
denuncidos, na História, no Português, na Economia.
Mas, um pouco por todas as cadeiras, a escola nacional impõe a visão
mecanicista, politicamente correcta, relativista e estatizante que
naturalmente germina no meio burocrata que a concebeu. O qual nem
sequer repara na sua asfixiante ditadura intelectual disfarçada,
pois toma a sua opinião como a verdade absoluta.
Esta hegemonia, porém, não permite aproveitar a única vantagem que
teria: os livros escolares mal podem passar de alunos para irmãos,
primos ou amigos.
O ensino é concebido centralmente, mas implica uma variedade de
edições que dizem a mesma coisa, para gáudio das editoras. É preciso
que floresça o chorudo negócio livreiro escolar. Não são só os
manuais, mas também os «cadernos de perguntas», os «livros de
exercícios», os «mapas educativos» que enchem enormes mochilas com
rodas, pesando quase tanto quanto a criança que as transporta.
Isto nada tem a ver com qualidade de educação da juventude. A vida
real depois recebe-os cheios de erudição, dúvidas e confusões. O que
importa, porém, é que eles ocupem um número crescente de
professores.
O ensino obrigatório até ao 12.º ano e a multiplicação das cadeiras
especializadas no final do liceu servem não os alunos, mas um bem
maior: a carreira docente.
A sociedade está doente e o sistema educativo em ruínas. As coisas
só não são piores porque Portugal é boa gente e dá um jeito. Vamos
sobrevivendo nesta devastadora suave catástrofe.
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
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