Público - 4 Nov 04
Contaminação
Por
MADALENA FONTOURA
Os números não
baixam. Antes invadem outras idades, outros territórios e outros
padrões de consumo. Já não são só os jovens, nem só os urbanos e já
não é só a heroína.
Homens feitos,
longe da turbulência adolescente, são o espectáculo inquietante de
uma vida vazia. Pacatas povoações ribatejanas ou quietas encostas
transmontanas põem a nu a epidemia da instintividade que importaram
da cultura citadina. Charros nos recreios de qualquer escola,
pastilhas à disposição no calor da noite e ritmos executivos, que
escondem a dependência febril da cocaína, trouxeram definitivamente
para perto de cada irrepreensível cidadão uma ferida que era mais
fácil poder localizar no arrumador andrajoso e desdentado a quem se
dá a moeda e se concede uns segundos de compaixão entre dois
semáforos.
Quando o
microfone das televisões ou das rádios cai na rua, eleva-se o clamor
de uma mentalidade estatizante e desresponsabilizante, que exige um
culpado: o Governo, o Estado, "eles". Mas é aí que começa o
paradoxo: o Governo, o Estado, "eles" até têm uma data de dinheiro
empatado em possibilidades de tratamento, até apoiam os privados,
até pagam a quase totalidade do custo de cada internamento em
dezenas de comunidades terapêuticas espalhadas pelo país. Acontece
que muitas dessas comunidades têm muitas das suas camas... vazias.
Não, não há listas de espera. Não, não é caríssimo e incomportável.
Não, não são poucos e inacessíveis os centros de recuperação.
Simplesmente... não estão cheios. Porquê?
Recuperar uma
pessoa não dá só muito trabalho, nem leva só muito tempo. Exige de
quem ajuda uma certa concepção de pessoa e uma certa concepção de
ajuda.
Exige que não
se veja só no toxicodependente a vítima de uma enfermidade estranha
à sua responsabilidade, nem só a ameaça à saúde pública, nem só o
comportamento desviante, mas sobretudo a ferida existencial. Diante
da pessoa toxicodependente, é indispensável perguntar o que é que
faltou e o que é que falta. Se não fizermos esta pergunta ou nos
enganarmos na resposta, há uma forte possibilidade de lhe darmos
muitas coisas necessárias e muitas coisas supérfluas, mas não
chegarmos a dar-lhe o essencial.
Exige
igualmente acreditar que é possível a recuperação. Mas a recuperação
de uma pessoa viciada na busca imediata de um alívio para a dor
implica muitos nãos, muitas privações, muitos confrontos dolorosos.
Implica o sacrifício da própria privacidade, do próprio isolamento,
da própria gestão do tempo. Implica um caminho que, mais do que
terapêutico, é também educativo. E, naturalmente, não se faz
sozinho.
Muitos
toxicodependentes rejeitam essa ajuda, mesmo quando ela existe.
Dizem que não a querem, que não aguentam, que não é para eles. E
ameaçam com o único poder que lhes resta: o de atrapalhar a ordem
pública. Se eles não estiverem a tratar-se, estarão seguramente a
roubar para ter dinheiro para a substância, a contrair doenças e a
transmiti-las, e a desfigurar a cidade.
Para lidar com
esta situação, o Governo, o Estado, "eles" desenvolveram,
paralelamente com as ofertas de recuperação, vários mecanismos de
redução de danos. Tentam atrair os toxicodependentes com
alimentação, higiene e remédios, em troca de um baixo limiar de
exigência, ou seja, de uma proposta mínima ou inexistente.
A pouco e
pouco, foi-se instalando a cultura de que é preciso é trazer os
toxicodependentes ao sistema assistencial. Recuperá-los ou não é uma
opção que se vai empurrando para o campo da excepção e da utopia. Já
não há tantos insucessos, porque o sucesso deixou de ser
recuperá-los, mas tê-los por perto. Já não há tantos abandonos,
porque, não lhes sendo exigido quase nada, eles quase nada têm a
perder.
O que já não
há também é tantos tratamentos, tantas pessoas recuperadas, tantos
ex-toxicodependentes. E não é por falta de meios. É talvez só porque
os drogados conseguiram a pior das contaminações: a descrença em si
próprios e na sua possibilidade de recuperação. Os drogados estão a
contaminar os outros com a sua falta de esperança.
directora
técnica da Associação Vale de Acór/Projecto Homem
 |