Público - 24 Nov 03
A crise nacional
Por MÁRIO PINTO
1. Os portugueses andam deprimidos? Parece que sim. E ao contrário do que
por vezes se diz, não se tratará de simples estado de alma. Teremos razões
para isso. Mas então é necessário saber quais são essas razões, ou seja,
as verdadeiras causas das coisas que nos deprimem. E depois concertar uma
resposta nacional. Não andaremos a enganar-nos, a este respeito?
Não seria razoável ter a pretensão de fazer aqui o diagnóstico definitivo
e muito menos dar a receita decisiva. Mas é necessário que na imprensa se
contribua para o debate de uma crise nacional que é real, e não apenas
imaginária.
É manifesto que há duas marés que confluem para nos preocuparem. Uma é a
da crise económica - Portugal vai pior do que os outros países da União
Europeia e não temos motivos de muito optimismo para o futuro próximo.
Outra é a da crise por assim dizer social-moral, que tem que ver com
muitos indicadores sociais e culturais alarmantes: a dramática iliteracia
e a falência do sistema público escolar; a desagregação das famílias e a
baixa natalidade; o amoralismo dos comportamentos sexuais e a elevada taxa
de mães solteiras menores; as práticas de abusos sexuais e a trivialização
do lixo televisivo; a droga e a sida; a tragédia das cadeias e a
marginalidade de muitos bairros clandestinos; o exagero de muitas
reivindicações e críticas, que não querem saber do estado do País; o caos
e a corrupção no urbanismo, a fuga aos impostos, a anarquia na condução
automóvel, a crónica burocracia na Administração Pública, o mau
funcionamento de subsistema vitais, como o de saúde e de justiça, e por aí
fora.
Julgo que as duas marés estão absolutamente interligadas basicamente por
uma mentalidade de politização burocratizante à outrance do Estado Social
e de uma desresponsabilização da sociedade civil e das pessoas
individuais. A ser assim, temos então aqui um problema de tal modo vasto e
complexo que só um pacto dos partidos do arco constitucional estará à
altura de lhe fazer face. Infelizmente, por vicissitudes de que muitos
suspeitam uma premeditação política, como no caso da Casa Pia e nas
manifestações dos estudantes do superior público, as condições
interpartidárias para um pacto assim parecem estar a dificultar-se. O que
será mais um desencontro com a história, desde logo nesta próxima revisão
constitucional.
2. Como País, manifestamos muitas vezes um grave déficite de capacidade de
análise e de enquadramento doutrinal das nossas realidades; com a
consequente falta de sentido estratégico e de capacidade de concertação.
Não racionalizamos os nossos objectivos nacionais e os nossos interesses
comuns; em vez disso, agimos ou reagimos por interesses de grupo, segundo
as conveniências primárias desses interesses, e deixamo-nos levar pelas
edutoras mas primárias demagogias ideológicas. Um povo em grande medida
ainda pobre e iliterato é fácil presa de um providencialismo estatal que
tem toda a consistência da coesão e da justiça social. Mas que conduzirá a
uma falência e a um bloqueio do progresso se não se reformar para formas
mais racionais de organização. Como, de resto, se está fazendo em países
como a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Itália.
Muitos, entre nós, pretendem que tudo nos seja concedido ou apoiado pelo
Estado, sem distinguir entre os que precisam e os que não precisam. O que
manifestamente está a deixar o Estado ajoujado com a carga. Vejo no que
tem sido dito e feito pelo Presidente da República um evidente sinal de
alarme, embora ele não queira alarmar, mas animar. Os partidos não ajudam.
As universidades também não - em vez de contribuírem, pedem e pedem sempre
mais. Os think-tanks simplesmente não existem. De grandes grupos
económicos, que há uns anos se dizia serem necessários como centros de
racionalização e de desenvolvimento, temos poucos e pouco grandes, e são
mal queridos do pensamento politicamente correcto e da comunicação social
- como se quiséssemos ser apenas um país de pequenos e médios.
O desenvolvimento da economia exige uma racionalidade adequada. Se não lha
queremos ou podemos dar, não teremos progresso económico. A coesão social
e a justiça social são absolutamente essenciais; mas nós concebemo-las
correntemente num sistema de inspiração soviética, em que os serviços
públicos de prestações sociais devem dar tudo igual para todos, e em que
só o Estado pode produzir essas prestações, ainda que assim seja muito
mais caro e ineficiente. O que é público é bom por definição, ou se não é
bom merece tolerância. O que é privado é suspeito por definição, e quanto
menos melhor. Interroguemo-nos: o nosso Estado já gasta assim com a
Administração Pública as receitas dos impostos, que encolhem porque também
encolhe o tecido privado, único que paga impostos não virtuais. Como
poderá, então, estimular a economia?
A reforma da Administração Pública é considerada entre nós quase
unanimemente como impossível. O Estado está assim diminuído de
governabilidade da Administração Pública. Na Itália, governos de esquerda
anteriores a Berlusconi fizeram um pacto com os sindicatos e substituíram
o vínculo público pelo contrato de trabalho para toda a Administração
Pública, excepto para os corpos que exercem funções de poder público, como
as Forças Armadas, as polícias, as magistraturas, etc. Entre nós, ninguém
aceita que se introduza o contrato de trabalho nos serviços públicos que
não exercem qualquer função de poder público, mas apenas de interesse
público - o que os privados também podem fazer. É um exemplo, mas um bom
exemplo. Outro será o do princípio da gratuitidade tendencial universal de
todo o sistema de ensino - uma enormidade para um País pobre e cheio de
injustiças e desigualdades de oportunidades em vários aspectos
fundamentais à dignidade humana.
3. Necessitamos de recriar condições de iniciativa e êxito para a vida
económica, social e cultural dos cidadãos. Necessitamos de aliviar o
Estado de cargas burocráticas excessivas e de gastos desnecessários, para
lhe aumentarmos a agilidade e a capacidade de regulação e de governância.
Necessitamos de mais sociedade civil e de um Estado Social mais justo por
discriminações positivas no estabelecimento de igualdade de oportunidades.
Isto implica grandes reformas que uma simples maioria parlamentar não pode
fazer. Repito: é necessário um pacto dos partidos e dos sindicatos do arco
constitucional. As circunstâncias convocam para isso os senadores da
República.
4. Permito-me terminar estas breves reflexões com a imagem que se colhe de
uma reportagem do jornal Público sobre o Alqueva, publicada há semanas,
que recortei e guardei. Eis alguns excertos lapidares do que escreveram os
jornalistas, por si e citando declarações obtidas. «Alentejanos estão a
vender as terras de regadio a espanhóis». «O sentimento de desalento em
relação a Alqueva é patente em boa parte dos agricultores "cansados de
viver de incertezas"». «Os espanhóis dotaram as suas herdades de energia
eléctrica e de sistemas de irrigação. Está tudo cultivado. Nós,
continuamos a deitar a mão ao sequeiro». «A chegada dos empresários
agrícolas espanhóis está a ser encarada pelos agricultores alentejanos com
um misto de resignação e de optimismo. "É bom que estejam cá. Pode ser que
ajudem a acabar com este clima de incertezas em relação a Alqueva». «A
presença dos espanhóis vai obrigar o Estado português a ter mais respeito
pelos alentejanos». |