Público - 24 Nov 03
Adopção
Nas zonas mais pobres de Portugal ainda há um comércio pontual de crianças
que passa pelas zonas opacas de relações familiares destroçadas, afundadas
na pobreza, no alcoolismo ou em outro tipo de doenças
Tornou-se uma verdade universal em matéria de adopção de crianças que é
necessário desburocratizar e dar mais rapidez ao processo. Esta semana que
passou foi empossada a comissão que vai acompanhar a aplicação das
alterações feitas à lei e que vão muito nesse sentido. Chegados a este
ponto, porém, há que deixar claro algumas questões porque, sendo certo o
mérito de querer facilitar e acelerar a procura de uma solução, a verdade
é na adopção nem sempre a pressa e a ausência de formalidades é boa
conselheira.
Neste caso, a questão coloca-se particularmente em matéria de adopção
internacional de crianças portuguesas, uma área em que Portugal tem sido
historicamente olhado como se fizesse parte do Terceiro Mundo. Ou seja,
nos
últimos vinte anos há cifras negras significativas cuja dimensão ninguém
conhece porque dezenas de crianças portuguesas foram adoptadas por
cidadãos estrangeiros, particularmente franceses, alemães e
norte-americanos, sem qualquer espécie de controlo por parte das entidades
oficiais que tutelam a adopção. Ficaram, aliás, célebres alguns casos de
recém-nascidos em Trás-os-Montes e no Alentejo que saíram do país sem que
ninguém soubesse ( ou saiba) com quem foram, para onde realmente viajaram
e o que lhes aconteceu.
Nas zonas mais pobres de Portugal ainda há um comércio pontual de crianças
que passa pelas zonas opacas de relações familiares destroçadas, afundadas
na pobreza, no alcoolismo ou em outro tipo de doenças. E debaixo dessa
coisa perfeitamente honorável que é adoptar crianças que se encontram
nestas condições desenvolve-se, por vezes, um lucrativo negócio para os
intermediários, com a sinistra circunstância agravante do desconhecimento
sobre o destino desses menores. Serão estes os casos limite, dirão os mais
entusiastas defensores da agilização da adopção, sublinhando o primado da
importância de dar um futuro a crianças já marcadas pela infelicidade
sobre tudo o resto. A esses, bem intencionados, é certo, há que recordar,
porém, que o tráfico internacional de seres humanos é um dos negócios mais
rentáveis do mundo, a par do narcotráfico e da venda ilegal de armas, e é
fomentado pelas redes de exploração de mão de obra clandestina e de
prostituição. E se é certo também que o comércio de crianças para a
adopção representa uma percentagem ínfima deste tipo de delinquência, a
verdade é que ela existe e movimenta-se, por vezes, nas margens de um
crime implacável e fortemente organizado.
Importa, por isso, manter este tipo de adopções dentro de um quadro de
direito eficaz e de um controlo apertado que evite acrescentar novos
sofrimentos ao muito que essas crianças já carregam. E isso não será
meramente garantido pelas disposições legais mas pela capacidade das
estruturas do Estado e os seus profissionais neste domínio terem condições
para o fazer. O trabalho desta comissão de acompanhamento de aplicação das
alterações à lei é, por isso, muito mais decisivo do que a própria letra
da lei. Tenhamos esperança e sejamos exigentes. |