Público - 21 Nov 03

Juventude Inquietante
Por RUI BAPTISTA

A pátria derramada na gare de Austerlitz, que Manuel Alegre retratou no poema "Portugal em Paris", finou-se. Antes eram cestos e cestos pelo chão, restos, braços, um país azul e proletário que passava anónimo pela capital francesa. Hoje são vidros e vidros partidos pelo chão do balneário do estádio Clermont-Ferrand, onde a selecção sub-21 de Portugal derrotou a sua congénere francesa. Restos de lixo, seringas suspeitas, caixotes virados, mesas partidas, tectos destruídos. A pátria lusa já não passa anónima em lugar nenhum.

O treinador francês, chauvinista e mau perdedor como manda a tradição gaulesa, chamou "selvagens" aos jogadores portugueses. "É escandaloso. Será que pensam que estão no tempo dos conquistadores?", perguntou Raymond Domenech, espantado com a fúria festiva dos portugueses, que deixou o balneário em pantanas. A resposta do seu homólogo português, José Romão, foi elucidativa. "Há balneários bem melhores [do que o de Clermont-Ferrand]. Tudo ficou intacto: a sanita, os armários..." Ah, bom! Se a sanita ficou intacta, é porque nada se passou de grave!

Não faltará gente por esse país fora a argumentar que os franceses tiveram o que merecem. Não faltará também gente a dizer que as declarações de Domenech, para além de revelarem um enorme desconhecimento sobre a História portuguesa, são elucidativas da maneira como os franceses continuam a encarar os lusitanos: um povo vagamente bárbaro que mora ao sul, povo de "femmes-de-ménage" e pedreiros, dilacerado pela nostalgia de melhores dias. O treinador francês ainda não percebeu que Portugal mudou. Que a França mudou. Que o mundo desandou.

As declarações de Domenech são estúpidas e irrelevantes. Mas nós, os portugueses levantados do chão em Austerlitz, temos de reflectir no que se está a passar com os nossos jovens jogadores de futebol, com as nossas micro-estrelas. Temos de parar para pensar, antes que seja tarde de mais. Depois dos incidentes em Clermont-Ferrand, ficou a saber-se que também o estádio Jorge Sampaio, em Gaia, e o estádio Afonso Henriques, em Guimarães, não ficaram nas melhores condições depois da recente passagem dos sub-21. Portas partidas, lixo pelo chão, cenas de mau comportamento escondidas por quem manda (e até perdoadas) porque os jovens ganham, os jovens correm, os jovens ficam bem com o uniforme nacional.

Vai-se a ver, e se calhar Domenech tem alguma razão: os jovens jogadores portugueses são uns selvagens. Tiveram bons professores. Cresceram num meio que aposta na vitória a todo o custo, um meio em que os dirigentes são glorificados, em que a verdade de hoje é a mentira de amanhã.

Eles até são os menos culpados. Com a bênção do Estado foram arrancados às escolas bem cedo e formatados para andarem aos pontapés por esses relvados. Em vez da cultura dos livros, têm a cultura do balneário. A cultura dos diários desportivos, das meias palavras, dos "blackouts", do "grupo de trabalho", das claques organizadas. Eles são o produto do meio em que cresceram. Temos de os aceitar, mas não somos obrigados a gostar deles.

2. Em Coimbra, os estudantes universitários, num gesto de grande "tolerância democrática", fecharam de novo a universidade e barricaram as faculdades, numa operação conduzida por encapuzados e que demorou cinco horas. Os gritos de "Não pagamos" foram substituídos temporariamente, espera-se, pelo pregão "Ninguém entra". Ninguém? Quase ninguém. Alguns professores mais teimosos ou com maior espírito de serviço tentaram forçar a entrada mas foram repelidos. Inapelavelmente refém dos estudantes, o reitor Seabra Santos, que prometeu muito mas que parece estar a ficar-se pelas meias tintas, pede calma mas ninguém o ouve. Anteontem, um professor de Bioquímica tentou entrar na sua faculdade e, no meio da confusão que se gerou, uma estudante de Geologia terá levado um encontrão que lhe atirou os óculos por terra. Queixou-se a estudante à Rádio Renascença: "Aproximei-me dele [professor] para dialogar, mas fui agredida." Diálogos destes é que eu gosto. Diálogos à porta fechada com cadeados.

Universitários de Coimbra e jogadores da selecção sub-21 - métodos diferentes, a mesma luta? Temo bem que sim.

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