Público - 18 Nov 03
O Big Brother na Sala de Aula (3)
Por MARIA FILOMENA MÓNICA
Tenho de confessar que não sou consumidora de telenovelas, concursos
televisivos e "reality shows". Mas, de cada espécie, já vi o número
suficiente para ter formado uma opinião. São pura e simplesmente lixo. O
facto de as audiências serem elevadas, de as televisões privadas
precisarem da dieta, de, para nossa vergonha, a televisão pública recorrer
à sua exibição em nada altera a minha opinião. Estas séries são
manufacturadas na base do princípio de que não se deve presumir que o povo
pode ser inteligente, culto ou sofisticado. A linguagem utilizada é um
rosário de lugares- comuns, o enredo é de um sentimentalismo rasteiro, a
receita baseia-se na exibição de sexo, sexo e mais sexo.
Em cultura, não são as audiências que ditam a qualidade do produto. Muito
menos num país como Portugal, que até recentemente ostentava taxas de
analfabetismo só comparáveis às do Terceiro Mundo - o que, diga-se de
passagem, ajuda a compreender muita coisa, incluindo a ideia peregrina de
se usar o regulamento do Big Brother nas aulas de Língua Portuguesa.
Uma análise de quem vê este programa talvez possa revelar algo sobre a
incultura das elites portuguesas ou a vulgaridade das preferências
populares, mas jamais nos dará a beleza da língua, a complexidade do real
ou a sofisticação psicológica que encontramos nas obras literárias.
Não duvido que haja alunos que gostem de discutir, na sala de aula, o
último episódio de O Olhar da Serpente, mas eu supunha que os professores
existiam para ensinar e não para satisfazer a inclinação estudantil por
matérias titilantes. À escola o que à escola é devido, isto é, a
aprendizagem do cânone. Os meninos já consomem lixo televisivo em
quantidades suficientes, sem que o tempo lectivo dele se tenha de ocupar.
A inclusão destes temas na aula não serve, ao contrário do que proclamava
Lídia Jorge (uma romancista que, tanto quando sei, é docente do ensino
secundário), para "desenvolver o espírito crítico dos alunos". A única
pessoa que sobre a matéria disse coisas razoáveis, desta forma
desencadeando uma polémica no interior da classe, foi Maria do Carmo
Vieira, a qual, indignada com o facto de a Associação de Professores de
Português ter apoiado esta reforma curricular, se desfiliou da
organização.
Ao elaborar o Programa de Língua Portuguesa, 10º, 11º e 12º Anos, obra do
Governo Guterres, o Ministério da Educação parece ter imaginado ser
possível pegar num produto qualquer, escrito, oral, televisivo, e, com
base nele, desenvolver aptidões mentais comparáveis às exigidas pela
leitura das obras-primas.
Não vou maçar o leitor com citações de um programa que se espraia ao longo
de 76 páginas, escrito numa linguagem pseudocientífica, o "eduquês", cujo
objectivo consiste não só em esconder a vacuidade do pensamento, mas
também em disfarçar propósito inconfessáveis. Apenas lhe darei um
extracto, da Introdução, a fim de ficar com um sabor da coisa: "A Língua
Portuguesa (...) visa a aquisição de um corpo de conhecimentos e o
desenvolvimento de competências que capacitem os jovens para a reflexão e
o uso da língua materna. Em contexto escolar, esta surge como instrumento,
mas também como conteúdo ou objecto de aprendizagem, tornando-se
fundamental, neste ciclo, o aprofundamento da consciência metalinguístíca
e a adopção de uma nomenclatura gramatical adequada que sirva o universo
de reflexão."
Se prova fosse necessária de que os professores - neste caso, Maria da
Conceição Coelho (coordenadora), João Seixas, José Pascoal, Maria Joana
Campos, Maria José Grosso e Maria de La Salette Loureiro - não sabem
comunicar, aqui a temos. Sigam-me mais um pouco para perceber o que está
em causa: "Esta disciplina permitirá também que, no final do ensino
secundário, o aluno seja capaz de interagir, oralmente e por escrito,
receptiva e produtivamente, de forma adequada, nas situações dos domínios
gregário, transaccional e educativo, fundamentais para uma integração
plena na sociedade, nomeadamente na resolução de questões da vida
quotidiana."
Mais do que a leitura dos clássicos, o que se propõe é ensinar os meninos
a falar com os amigos nos centros comerciais, a redigir um requerimento
nas finanças e a compreender um horário de comboio afixado numa estação,
tudo "competências" que eu julgara terem sido "inculcadas" há muito.
Só mais uma citação, a fim de se perceber o que está em causa: "Importa,
pois, educar para a compreensão mútua entre interlocutores, condição
primordial do agir comum. Neste sentido, reveste-se de particular
importância promover a produção de textos orais e escritos adequados aos
contextos comunicativos em que eles se realizam, tendo em consideração
todos os elementos intervenientes, designadamente os referentes a espaços,
interlocutores, tipos de textos, realizações línguísticas e estratégias de
comunicação." É por esta porta que entram os debates sobre as telenovelas,
como é por ela que se consagra a utilização da disciplina para fins
meramente utilitários.
Após alguma reflexão, eis a conclusão a que cheguei. Enquanto os filhos
dos pobres são metidos em salas de aula onde se discute o que levou Tomé a
expulsar a Maria de casa, os meninos privilegiados entretêm-se a ler
poetas simbolistas. A inclusão do Big Brother nos manuais escolares é a
via escondida para a exclusão social. Em suma, os novos programas servem
para proteger os meninos que frequentam as escolas privadas dos "bárbaros"
que subitamente invadiram os liceus do Estado.
O sistema de ensino português pode, na minha opinião, ser caracterizado
como uma conspiração liderada pelo DES (Departamento do Ensino
Secundário), agindo como um comité da burguesia, a fim de manter os filhos
dos pobres "no seu lugar", desta forma libertando os filhos dos ricos da
maçada de ter de competir. E tudo isto é feito em nome da esquerda.
A escola serve, ou deveria servir, para transmitir a todos, aos filhos dos
ricos e aos filhos dos pobres, o património cultural. O filho de um
cigano, para citar um caso muito discutido em pedagogia, jamais terá
possibilidade de ler "O Crime do Padre Amaro" a não ser que o professor
lhe forneça essa oportunidade. É por isso que, para estas crianças, a
escola é fundamental. Os "curricula" alternativos, outra infeliz invenção
da esquerda, encerram-nos num gueto - como o faz a inclusão de debates
sobre telenovelas no interior da escola.
A 18 de Outubro, em entrevista ao "Expresso", o ministro [da Educação],
David Justino, afirmou ter de manter o Big Brother nos manuais, devido ao
facto de, a serem retirados, lhe cumprir dar uma indemnização "de muitos
milhões de contos" aos editores, os quais, ao fabricá-los, se teriam
limitado a seguir as indicações do programa elaborado sob a égide da Dra.
Ana Benavente. Até 2007, quando o Governo do PSD apresentar, presume-se,
um texto diferente, o actual mantém-se. É uma opção errada: o ministro
deveria, pura e simplesmente, deitá-lo para o cesto de papéis. |