Público - 15 Nov 03

A Insustentável Delicadeza do Teste da Alcoolemia
Por HELENA MATOS

O mundo é feito de injustiças. Fomos brindados esta semana com a notícia da tripulação dum avião que fora detida, creio que na Noruega, por se encontrar alcoolizada. A notícia era lida pelos "pivots" dos noticiários televisivos com aquele ar cúmplice que afivelam quando passam dos grandes títulos da actualidade para estes temas algures entre o disparatado e o terrível. Nunca mais soubemos nada dos ditos tripulantes, nem do seu futuro profissional na companhia de aviação para que trabalhavam. Contudo, se sofrerem o mais leve incómodo, sempre lhes resta a possibilidade de pedirem a transferência para a Câmara Municipal do Porto, essa mesma onde esta semana foi reprovado um regulamento interno sobre o álcool.

Seis vereadores do PS e um da CDU reprovaram este regulamento, que previa a realização de testes de alcoolemia obrigatórios a todos os funcionários municipais e a aplicação de medidas punitivas a quem fosse encontrado com uma taxa igual ou superior a 0,5 gramas por litro no sangue.

Presumo que o mesmo regulamento poderia ser melhorado e escrevo presumo porque não o conheço. Mas, por exemplo, parece-me relevante e oportuna a sugestão do vereador da CDU Rui Sá, para que, numa futura versão, o mesmo regulamento se aplique não apenas aos trabalhadores, mas também aos eleitos.

Infelizmente não foi por não prever a sua extensão aos eleitos que este regulamento não foi aprovado.

Este regulamento não foi aprovado porque não houve coragem para o aprovar. A este título são exemplares as declarações da vereadora socialista Isabel Oneto ao PÚBLICO de 12 de Novembro: "Na nossa perspectiva, é necessário fundamentar esse valor [0,5g/l] e aqui o fundamento terá também de ter alguma componente científica." A mesma vereadora terá afirmado duvidar das garantias de privacidade dos resultados dos testes à taxa de alcoolemia feitos aos trabalhadores.

Estes são os clássicos argumentos de quem não quer ficar com o ónus de ter aprovado este regulamento, mas também se quer precaver de sustos futuros. Suponha-se que amanhã um funcionário embriagado causa distúrbios graves na câmara, ou que se descobre que o responsável pela vistoria duma casa que ruiu estava alcoolizado no momento em que deu o respectivo parecer?! Assim, à cautela, dizem-se coisas que não querem dizer nada, como invocar a indistinta "componente científica."

O que é "alguma componente científica"? Porquê alguma e não a suficiente? Alguma será sempre insuficiente. Alguma servirá sempre para protelar. Este valor, 0,5 gramas por litro, não desceu, qual inspiração divina, sobre a cabeça dos redactores deste regulamento. Este é o valor definido no Código da Estrada e, por isso mesmo, amplamente discutido e investigado. E note-se que outro valor deveria ser - 0,2 g/l -, caso alguns militantes e dirigentes do Partido Socialista não tivessem achado que dava mais votos e popularidade ceder às manifestações dumas centenas de camionistas do que apoiarem uma corajosa iniciativa legislativa dum membro do seu Governo, no caso o ministro Severiano Teixeira.

Isabel Oneto considera ainda que "a realização e registo de resultados de testes de alcoolemia é uma matéria extremamente delicada". Mas quaisquer testes o são. O que podemos é considerar ou não legítimo que nos exijam que façamos determinados testes, sejam eles clínicos ou de aptidão para o exercício de determinadas funções. A mais remota autarquia deste país tem em seu poder dados muito mais delicados que o resultados dos testes de alcoolemia a que eventualmente se sujeitem os seus funcionários e o mínimo que se espera é que os funcionários das mesmas autarquias estejam sóbrios quando consultam e decidem a partir desses mesmos dados.

É certamente delicado tornar obrigatória a realização de testes de alcoolemia, mas não é menos delicado ser-se atendido ou trabalhar com pessoas com problemas de alcoolismo. Às vezes é mesmo um sério risco. Para o serviço que se presta (e, note-se, não recorre aos serviços municipais quem quer, mas sim quem precisa). Para quem trabalha em serviços onde se abusa do consumo de bebidas alcoólicas. E para as pessoas que bebem em excesso e cuja situação se arrasta e degrada em parte graças a essa atitude aparentemente de tolerância e piedade, mas que, a certas horas do dia, se transforma num acre desprezo.

A completar as declarações de Isabel Oneto, vieram ainda Luís Catarino, vereador do PS, e Rui Sá, vereador da CDU, que se afirmam contra a instauração de processos disciplinares a trabalhadores que sejam encontrados com uma taxa igual ou superior a 0,5g/l de álcool no sangue, porque "essas pessoas são doentes e é como tal que devem ser tratadas".

Nada mais certo e nada mais incompleto: essas pessoas podem ser tratadas, mas muitas vezes não querem. Não penso que devam ser obrigadas a ser tratadas, mas acho que o facto de consumirem continuada e excessivamente álcool as impede de exercer determinadas funções pela mesma razão que lhes pode inibir determinados direitos, por exemplo, a tutela sobre menores.

Por outro lado, basta frequentar certos serviços municipais ao longo do país para perceber como a matéria deste regulamento é urgente. No Porto perdeu-se a oportunidade e não se sabe quando voltará o assunto à discussão. Provavelmente, quando algum dos vereadores descobrir que voa num avião entregue à tal tripulação agora impedida de trabalhar. Assim, bem lá em cima, talvez ao passar por um poço de ar, medite com mais leveza sobre a delicadeza do registo dos resultados dos testes de alcoolemia - ou será que essa delicadeza não se estende aos trabalhadores das companhias de aviação? -, ou sobre "as pessoas que são doentes e como tal devem ser tratadas".

Dir-me-ão que uma autarquia não é um avião. Pois não. Mas os seus funcionários movimentam máquinas, lidam com crianças, dão pareceres técnicos, avaliam da segurança de infra-estruturas...

Mas, enfim, o que é tudo isto ao pé do futebol? O mesmo executivo que não chegou a acordo no regulamento interno sobre o álcool conseguiu a unanimidade quando chegou a hora de votar o nome de três novas vias. A saber: Alamedas Antas; Via Futebol Club do Porto e Rua dos Campeões Europeus - Viena 1987. O executivo portuense chumbou o teste de alcoolemia. Contudo, não falhou o do futebol. Seria por uma questão de delicadeza?

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