Público - 10 Nov 03
Sobre as Propinas, Os Estudantes Que Não Estudam e Muito Mais...
Por FERNANDO LOBO
(Entrevista ficcionada)
Bom dia. O meu nome é Joaquim Perguntas. Hoje tenho o prazer de ter comigo
o Professor Fernando Lobo que se predispôs a falar sobre as propinas, um
problema que tanto tem atormentado os nossos estudantes universitários.
Joaquim Perguntas - Bom dia. Que comentário tem a fazer sobre o
protesto dos estudantes?
Fernando Lobo - São protestos que não se justificam.
J.P. - Mas os estudantes queixam-se de que muitos vão deixar de poder
pagar as propinas e que passaremos a ter um ensino superior elitista a que
só os ricos terão acesso.
F.L. - Só os ricos? O senhor sabe quanto dinheiro é que os nossos
estudantes pobres gastam por mês em telemóvel, cigarros e copos?
J.P. - Não.
F.L. - Eu também não sei. Mas tenho a certeza que ultrapassa largamente
o valor mensal das propinas. Muitos dos nossos estudantes não sabem que
2+2=4, e também não sabem o que significa ser pobre.
J.P. - Mas os estudantes protestam de norte a sul...
F.L. - Uma prova cabal de que as propinas são baratas é o elevado
número de alunos fantasmas, alunos que pagam as propinas mas que nunca
põem os pés na universidade, nunca vão às aulas e nunca aparecem aos
exames. Nós temos cerca 50% de alunos fantasmas. Por outras palavras,
deitam o dinheiro das propinas para o lixo. Isso é uma prova evidente de
que as propinas são baratas.
J.P. - Mas não admite que haja estudantes com dificuldades para pagar?
F.L. - Admito que haja. Mas repare que as propinas representam
aproximadamente 10 a 15% das despesas mensais de um estudante. Por outras
palavras: não é o facto de as propinas passarem a ser cerca de 10 contos
por mês que vai fazer com que só os ricos as possam estudar. Infelizmente,
aqueles que são realmente pobres têm poucas hipóteses de estudar, com ou
sem propinas.
J.P. - Presumo então que é da opinião de que o aumento pecou por
escasso...
F.L. - Meu caro amigo, o valor das propinas mesmo após o aumento é
simbólico. Apenas dá para as despesas correntes da universidade. Nenhuma
parte desse dinheiro é usada para melhorar substancialmente as suas
infra-estruturas, nem para pagar o salário dos professores e funcionários.
A questão essencial é decidir se o ensino superior deve ser um direito que
todos devem ter, e se esse direito deve ser totalmente subsidiado pelo
Estado. Na minha opinião, nem todos deveriam ter acesso gratuito ao ensino
superior. O Estado só deveria subsidiar o ensino superior para aqueles que
merecem.
J.P. - E quem é que merece?
F.L. - São aqueles que estudam. Os que andam na vadiagem são colocados
fora, ou então pagam o preço real do ensino superior.
J.P. - E como é que isso poderia ser feito?
F.L. - Uma forma simples seria qualquer coisa assim: os estudantes com
média superior a 16 não só não pagariam as propinas, como receberiam um
subsídio mensal do Estado de 100 contos; aqueles com média entre 14 e 16
também ficariam isentos das propinas mas apenas receberiam um subsídio
mensal de 50 contos; os estudantes com média inferior a 14, mas que passam
às disciplinas à primeira, pagariam propinas com o valor simbólico 150-200
contos anuais. Os outros, aqueles que chumbam sistematicamente, teriam de
pagar o custo real do ensino, qualquer coisa como 1500/2000 contos anuais.
J.P. - Humm...
F.L. - Uma abordagem deste tipo daria incentivos para que os estudantes
estudem. Além disso, seria socialmente justa. Aí sim, todos teriam acesso
ao ensino superior, incluindo os que são realmente pobres. Seria uma
espécie de medida à Robin dos Bosques. A diferença é que em vez de tirar
aos ricos para dar aos pobres, tirava-se aos calões para dar aos que
estudam.
J.P. - Pelas suas palavras, fico com a impressão de que a maioria dos
alunos anda na vadiagem.
F.L. - Se não andam, parece. O que acontece é o seguinte. Dez por cento
dos alunos têm realmente interesse em aprender. Dos outros 90%, uma parte
anda na vadiagem e a outra parte até se esforça, mas não vai lá. Como lhe
disse, alguns chegam à universidade sem saber que 2+2=4. É impossível
transformar esses alunos em bons engenheiros.
J.P. - Que justificação é que encontra para a existência desse tipo de
situação?
F.L. - Não faço a mínima ideia. No que diz respeito ao ensino superior,
fico com a impressão de que os governos que temos tido estão
essencialmente interessados nas estatísticas, em dizer que estamos ao
nível dos outros países europeus em termos de licenciados.
J.P. - E não devemos ter mais licenciados?
F.L. - Sim, desde que sejam licenciados competentes. Não interessa
termos engenheiros que fazem pontes que caem, nem licenciados em
Matemática que dizem que 0.9 = 1/9. O nosso Estado investe em quem não
merece. Já reparou que o Estado investe nos estudantes vadiolas, mas não
investe num estudante que tem média de 16 e que quer estudar medicina?
J.P. - Sabe porque é que isso acontece?
F.L. - Não, mas suspeito que um estudante de Medicina é capaz de custar
ao Estado dez vezes mais do que um estudante de Literatura. Um necessita
de equipamento caro, o outro necessita de papel e lápis. Mas para as
estatísticas ambos contam o mesmo. Do ponto de vista de quem faz contas de
merceeiro, é mais um licenciado.
J.P. - Voltando à sua ideia de tirar aos calões para dar aos que
estudam. Não receia de que num cenário desses a universidade fique com
muito poucos alunos?
F.L. - Infelizmente sim.
J.P. - E havendo poucos alunos, ficava com professores a mais, certo?
F.L. - Infelizmente sim.
J.P. - E se calhar o senhor ficava sem emprego.
F.L. - Provavelmente sim.
J.P. - Não tem receio disso?
F.L. - Um bocadinho.
J.P. - Mas então não era melhor estar calado?
F.L. - Não consigo ficar calado perante situações absurdas. Um exemplo
de uma situação absurda é muitas universidades portuguesas necessitarem de
alunos fantasmas e de alunos vadiolas para sobreviver. São esses
pseudo-estudantes que justificam o ordenado de muitos professores,
incluindo o meu próprio.
J.P. - Os professores não debatem esses problemas internamente?
F.L. - Nas raras oportunidades que tive de exprimir estas ideias, senti
que a grande maioria olhou para mim como se fosse um extra-terrestre.
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