Público - 7 Nov 03
Sobreprotecção das Crianças e Permissividade Podem Ser Tão Prejudiciais
como o Abandono
Por PAULA TORRES DE CARVALHO
Lá em casa, eles são o centro de todas as atenções. Não pedem, exigem. Não
obedecem, mandam. Dormem quando lhes apetece, comem o que bem entendem,
choram, gritam, fazem birras quando os contrariam. São pequenos
"ditadores" de seis, oito, onze anos, que não têm a noção dos limites nem
da diferença entre gerações. Os pais, derrotados, dizem que "não têm mão"
neles. Em muitos casos, cedem à prepotência das crianças e deixam-nas
dominar. Em muitos casos, procuram apoio psicológico para resolver o
problema que os especialistas designam por omnipotência infantil.
O número de crianças que "querem, podem e mandam" parece estar a aumentar.
Os casos que surgem no departamento de pedopsiquiatria do Hospital da
Estefânia, em Lisboa, são cada vez mais frequentes, segundo o chefe da
equipa, o pedopsiquiatra João Beirão. "É um dos principais motivos de
procura de consulta e uma das questões que, agora, mais me preocupa", diz.
Este vai ser, aliás, um dos temas da comunicação que este médico
apresenta, esta tarde, na conferência anual Dra. Teresa Ferreira, no
Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa.
Uma grande parte das 422 primeiras consultas realizadas, no ano passado,
neste departamento do Hospital da Estefânia, que atende crianças entre os
3 e os 12 anos, teve como motivo alterações do comportamento relacionadas
com a omnipotência, segundo João Beirão. Pedidos de pais assustados com a
sua incapacidade para conter o comportamento dos seus filhos. Situações,
frequentemente associadas a hiperactividade (movimento constante) e a
agressividade. Para aquele pedopsiquiatra, estas perturbações do
comportamento são, sobretudo, "sintomas que é preciso entender".
A explicação para a omnipotência infantil pode, muitas vezes, explicar-se
pela atitude de sobreprotecção da mãe em relação ao filho, diz João
Beirão. "Tem a ver com aquilo que as mães fazem, imaginando que estão a
proteger os filhos, com a sua constante posição activa para que os filhos
não sofram", explica.
Mas, como está provado e como já dizia a médica pedopsiquiatra e
psicanalista Teresa Ferreira, "a sobreprotecção pode ter efeitos tão
devastadores como o abandono" na estrutura emocional das crianças.
Proteger demais uma criança impede que ela experimente a frustração, a
chamada "boa frustração", impede que enfrente os medos e ultrapasse as
adversidades, impede que se torne autónoma e responsável, condições
essenciais para que se transforme num adulto equilibrado.
Com um mundo "construído à imagem desta relação" à beira da permanente
sombra protectora da mãe ou do pai, "as crianças ficam sem armas para
enfrentar a realidade", afirma João Beirão.
Por outro lado, nas sociedades contemporâneas, a tirania do tempo retira
aos pais trabalhadores a disponibilidade suficiente para estar com os
filhos, com qualidade. São comuns os sentimentos de culpa e é habitual a
tendência para os compensar das ausências da forma mais fácil e imediata:
com as prendas e brinquedos, "consoladores" materiais e modernos, ou com a
permissividade. A criança não precisa de se esforçar para conquistar seja
o que for, porque todos os seus desejos são imediatamente satisfeitos. E
essa "é uma via provável para o insucesso escolar e para as alterações
comportamentais", assegura o pedopsiquiatra.
É preciso que os pais entendam a importância da "ginástica da espera" para
uma criança. A importância de dizer "não", que lhe permita experimentar a
frustração e parar para pensar.
Os problemas de dislexia, de neuroses e psicoses e de abuso sexual são
outros dos motivos de pedidos de consulta recebidos no departamento de
pedopsiquiatria do Hospital da Estefânia que serão abordados durante a
conferência Dra. Teresa Ferreira.
Organizado pela Assírio&Alvim, o encontro contará ainda com a intervenção
do psicanalista João Seabra Diniz sobre "Crianças Sem Família e Famílias
de Substituição". A ocasião ficará também marcada pelo lançamento do livro
"Vida Interior", de Margot Waddell, psicoterapeuta da Tavistock Clinic, de
Londres, obra que será apresentada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht. |