Público - 4 Nov 03

O Tinteiro
Por EDUARDO PRADO COELHO

O grande problema é que nas lojas dos centros comerciais existem infinitas prateleiras com todo o tipo de tinteiros. Desde o GT56 até ao LP95, passando pelo CCP02 até ao XPTO104

Este meu problema começou a ganhar proporções dramáticas quando decidi que a única forma de poder conduzir com segurança passava pela aquisição de um "kit mãos livres". De início foi uma imensa felicidade. O telemóvel tocava e logo ali se interrompia a sinfonia de Mahler que eu estava a ouvir para poder escutar a aliciante e saborosa proposta de um jornalista que me pedia para enviar a minha receita culinária preferida. Eu continuava a conduzir pela marginal e ia argumentando, com poucos gestos e muita convicção, alegando que a minha conjuntura intelectual era pouco favorável à satisfação de tão surpreendente proposta. Logo a seguir o telemóvel voltava a tocar e perguntavam-me se eu não queria aparecer numa revista conhecida com metade da cara pintada de preto e outra de branco, para assim demonstrar a minha visceral recusa do racismo. E eu guiava e argumentava - e o Mahler à espera.

Andava assim de carro falando sozinho com o resto do país, e às vezes, no limite do perigo, surpreendia-me a gesticular com o meu interlocutor inesperado. Mas a experiência era interessante e dava cenas que vistas das viaturas mais próximas se aproximavam do estatuto da alienação.

Até que tive direito a um balde de água fria. Mudando de telemóvel, embora mantendo a mesma marca, o sistema de suporte "mãos livres" mudava também, Deixava de ser (invento) o Kt61 para passar a ser o Kt93, o que implicaria todo um processo de reinstalação, uma ida à oficina, um dia atropelado, etc. E no mesmo lance dei-me conta de que por vezes um novo modelo de telemóvel implicava um novo carregador, uma vez que perversamente a colocação dos buraquinhos que permitiam ligar a ficha tinha sido alterada. Dei-me assim conta da sempre espantosa diversidade do real, mas também da ainda mais espantosa imaginação das empresas, que tudo fazem para que a gente se entretenha a adquirir mais um acessório.

É aqui que entra em cena o tinteiro. Nas minhas primeiras experiências com computadores, o meu guia espiritual nestas matérias achou que para mim a mais banal impressora do mercado era mais do que suficiente. Ele tinha razão, dada a indigência da minha prática e a exiguidade das minhas expectativas. Mas havia um problema: a minha impaciência. A impressora era de tal modo titubeante que estava horas a gaguejar um texto como se soletrasse tudo aquilo que lia. A gente sempre tenta fazer outra coisa, mas não resiste à mórbida curiosidade de querer saber se está quase - e nunca estava. Até que solicitei um pouco mais de cor e de velocidade, e comprei uma impressora mais eficaz. Só que descobri que tinteiros há muitos, e para cada impressora um ou mais tinteiros diferentes. Foi assim que fiquei a saber que a minha impressora C82 só suporta tinteiros que sejam TO21, TO22 e
TO23, restando-me ainda averiguar se este O é letra ou algarismo.

O grande problema é que nas lojas dos centros comerciais existem infinitas prateleiras com todo o tipo de tinteiros. Desde o GT56 até ao LP95, passando pelo CCP02 até ao XPTO104. Infelizmente aqueles que eu procuro estão sempre esgotados. E eu com eles.

Donde, caros amigos, se me virem na Fnac de joelhos, a cara junto ao chão, com um "rictus" de desespero, não pensem que fui alvo de um arrebatamento místico. Nada disso. Estou apenas à procura do meu tinteiro - o TO22 - de que cruelmente depende a minha vida de jornalista, universitário e escritor.

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