A corrupção, sempre! António Barreto Retrato da semana
Parece que os níveis morais da vida pública se
dissolvem diante dos nossos olhos. Será exagero da
opinião pública?
Há qualquer coisa no ar! Existe um mal-estar
evidente. Não há dia que um novo facto, revelando
comportamentos ilícitos de toda a espécie, não se
acrescente a uma longa lista de casos aparentemente
impunes ou não resolvidos. As leis parecem
impotentes. Pensa-se que a justiça está paralisada.
Julga-se que os investigadores nada descobrem. Nunca
se consegue provar qualquer coisa. Os processos
duram anos, até serem arquivados ou prescreverem.
Quando há certezas, faltam as provas. Quando há
provas, há circunstâncias atenuantes. Parece que os
níveis morais da vida pública baixaram ou se
dissolvem diante dos nossos olhos. Será exagero da
opinião pública? Rumores urbanos em tempos de
dificuldades? Sequelas de um ano eleitoral
particularmente intenso? Consequências da crise
financeira, que revelou habilidades consideradas
normais em ciclo de êxito dos negócios? Voracidade
dos jornalistas em renhida competição? Campanhas de
partidos, de agências de comunicação e de
associações de interesses? Ou, simplesmente, a
verdade? Que se passa realmente? De tudo um pouco.
Portugal e os portugueses têm um problema com a
corrupção. Ou antes: têm muitos problemas. A começar
pela definição. Engloba-se no conceito muito que o
não é, apesar de ilegal ou imoral.
As cunhas, os favores e a preferência familiar ou
partidária podem não ser verdadeira corrupção, mas
pertencem às mesmas categorias de comportamentos
ilícitos.
Nem todas as irregularidades administrativas,
adjudicações directas, nomeações e promoções
integram necessariamente uma definição precisa de
corrupção, mas não deixam de constituir
comportamentos igualmente condenáveis.
Licenças concedidas em condições especiais, alvarás
obtidos mais rapidamente, derrogações efectuadas em
planos legais e autorizações conseguidas em
circunstâncias extraordinárias podem não ser sempre
obtidos contra pagamento, mas são vizinhos da
corrupção.
Decisões discricionárias, subsídios individualizados
e contratos selectivos podem ter várias causas, não
automaticamente "luvas", mas são parentes próximos
da corrupção.
Perdões fiscais ou de multas e olhos fechados
perante certos gestos não são sempre actos
corruptos, mas andam por lá perto.
Finalmente, o tráfico de influências e a
promiscuidade, que caracterizam a passagem da
política ao negócio, do público ao privado, do
partido à administração e vice-versa, não são tidos
tecnicamente por corrupção, mas são, nesta família
de comportamentos, os membros mais predadores e
devastadores de uma vida pública decente.
Estes gestos, de difícil definição rigorosa,
implicam vários conceitos essenciais. Acto ilícito;
obtenção, contra pagamento, de favores e vantagens
em detrimento de outrem; não cumprimento das regras
legais e constitucionais (incluindo a da igualdade
de oportunidades); e intervenção, em interesse
próprio, junto de alguém com poder ou capacidade de
interferir num processo de decisão.
O problema é que muitos gestos não respondem
necessariamente a todos estes critérios. Pode não
haver pagamento, mas favor ou nomeação; pode não ser
em interesse próprio, mas no de partido ou empresa;
pode não ser explicitamente ilegal; pode não ser em
detrimento de outrem; pode não estar previsto na
lei. Mais ainda, pode ser atenuado e normalizado
pela lei. Neste último caso, encontram-se, por
exemplo, as situações de promiscuidade e tráfico de
influências, para os quais as normas legais são
particularmente brandas.
Pertencer simultânea ou sucessivamente a uma
empresa, uma associação de interesses, um grupo
parlamentar e um governo, tratando dos mesmos
assuntos, é possível em muitas circunstâncias. Já se
viu entre nós muitas vezes.
Negociar com uma empresa, primeiro em nome de um
governo, depois, com o governo, em nome da mesma
empresa é possível, desde que se cumpram uns vagos e
suaves períodos de branqueamento.
Ganhar poder no governo e enriquecer rapidamente,
logo a seguir, nas empresas é possível e frequente,
é mesmo considerado um exemplo de iniciativa.
Ganhar e distribuir dinheiros de modo irregular,
desde que se faça obra, de preferência social e a
favor das populações, pode ser considerado um gesto
de gestão virtuosa e popular.
O favor partidário, sob a designação de confiança
política, está devidamente consagrado na lei. Tem-se
a impressão de que, em Portugal, há a boa e a má
corrupção. A boa e a má promiscuidade. As boas são
louvadas. As más são esquecidas.
Se a corrupção for de esquerda, só a direita reage.
E vice-versa. Se for autárquica, só o poder central
se insurge. E reciprocamente. Se for pública, só os
privados protestam. E ao contrário. Se for de um
partido, aos outros de contrariar. E assim por
diante.
Quer isto dizer que não existe qualquer espécie de
tradição ou de "cultura" contra a corrupção, a
promiscuidade e a "cunha". Na verdade, os
beneficiários são muitos: municípios, populações
locais, associações desportivas, partidos políticos,
empresários, proprietários, construtores, promotores
imobiliários, funcionários públicos, políticos,
banqueiros e comerciantes. Neste nosso pobre país, a
corrupção é democrática. Herdámos a corrupção da
ditadura, à qual acrescentámos a liberal. Recebemos
a corporativa, enriquecendo-a com a socialista e a
capitalista.
Sem regulação à altura, o mercado gera corrupção,
fraude e promiscuidade. Quando aparece o Estado,
corrupção, fraude e promiscuidade são geradas. Do
atraso económico e cultural, recebemos a cunha e o
favoritismo; mas do crescimento fácil chegou-nos o
casino. Da ditadura, tínhamos a corrupção escondida;
da democracia, temos a corrupção exposta.
Que fazer? Creio que ninguém é capaz de responder.
Só uma coisa se sabe: tudo começa na justiça. Mas,
saber isso, com a justiça que temos, é o mesmo que
nada.