Público última hora - 01 Mar 09

 

Entrevista
Ferraz da Costa: "Vamos ser apanhados por asneira própria e uma conjuntura difícil"
Vítor Costa

 

O empresário Pedro Ferraz da Costa, que lidera o Fórum para a Competitividade, defende que se adiem os grandes projectos de obras públicas, como o TGV e o novo aeroporto. E que o combate ao endividamento externo deveria ser a prioridade do Governo.

 

A situação económica nacional resulta mais da crise internacional ou das nossas próprias debilidades?

 

Escrevi ao longo destes anos que, em termos da condução da política conjuntural, estávamos a fabricar um grande problema a prazo. Problemas que vêm de 1996 e que resultam de termos feito duas coisas extraordinariamente contraditórias: termos aceite participar no euro e no movimento de abertura que a Europa fez ao exterior, que assentou em primeiro lugar na abertura a Leste; e ao mesmo tempo termos orientado os investimentos quase todos para sectores de bens não transaccionáveis.

 

E porque as considera contraditórias?

 

Porque com a participação no euro e no movimento de globalização, o progresso dos salários e a sustentação do emprego iriam depender fundamentalmente da competitividade externa da economia.

 

E não foi nisso que nos centrámos.

 

Centrámo-nos numa coisa que tem sido denominada de política de betão, mas que suponho que foi mais do que isso. Houve um alinhamento, e uso a expressão alinhamento com todos os sentidos que ela possa ter, entre empresas que vivem fundamentalmente para o mercado interno, num ambiente de fraca concorrência, e os dirigentes dos maiores partidos políticos. E isso fez com que, praticamente desde 1995, os grandes problemas da competitividade externa das Pequenas e Médias Empresas (PME) não fossem tratados. E os sinais já cá estavam há muito tempo, com a redução prevista e efectiva de postos de trabalho nos nossos sectores tradicionais, com arranque muito lento de novas iniciativas em áreas tecnologicamente mais evoluídas e na maior parte dos casos à custa de grande subsidiação, criando-se uma espécie de ilhas para grandes investimentos estrangeiros.

 

Ainda hoje é possível ouvir o Governo, este como outro de outro partido, "encher a boca" com os 1200 milhões de euros de exportações da Qimonda, sem nunca dizer que o valor acrescentado é um sexto disso. Há uma disponibilidade para apoiar grandes projectos que ficam completamente dependentes dessa subsidiação e o Governo acaba por ficar refém desses projectos sob pena de ficar responsável pelos despedimentos. Tudo isso distrai a atenção de um trabalho mais profundo, com melhores resultados em termos de emprego que seria o de criar condições mais fáceis para as nossas PME.

 

Quais são as consequências?

 

A situação é muito preocupante porque se as medidas tivessem sido tomadas há mais tempo, tínhamos uma posição de contas externas menos desequilibrada. Neste momento, aumentar e ganhar quotas de mercado nas exportações é extraordinariamente difícil com os mercados destino das nossas exportações em recessão. Vamos ser apanhados por uma conjugação de muita asneira própria com uma conjuntura extraordinariamente difícil.

 

A conjuntura externa veio pôr a descoberto as nossas fragilidades?

 

Não. A conjuntura externa acabou por as tapar. Permitiu ao Governo falar sobre a crise externa e não sobre os problemas internos. A conjuntura externa veio tornar mais grave a nossa maior debilidade: o desequilíbrio externo. Houve sempre uma análise superficial dos nossos problemas.

 

Vivemos muito concentrados na redução do défice orçamental?

 

Não me parece. Aliás, não vivemos suficientemente concentrados porque, entre metade a dois terços da redução do défice, é explicado por aumento de impostos.

 

Houve uma descida do IVA em 2008 e o Orçamento do Estado para 2009 incorpora algum desagravamento fiscal.

 

O primeiro-ministro confunde reduções de impostos que ocorreram em 2008, com o que está previsto para 2009, mas que só terá efeitos nas contas e nos pagamentos das empresas em 2010. Basta perguntar porque é que as empresas têm piores resultados e pagam mais impostos.

 

Porquê?

 

Porque com base em resultados de um ano bom vão pagar por conta no ano seguinte, até que possam demonstrar que ganharam menos. Estão a antecipar uma expectativa de bons impostos quando já não a têm. Esta é uma situação inacreditável que não deveria existir. As empresas estão a passar uma fase muito difícil e o Estado está a cobrar-lhe impostos como se elas tivessem resultados.

 

Qual a melhor estratégia para alterar esta situação para o futuro. Para trás já não a podemos mudar...

 

Mas temos alguma vantagem em aprender com os erros. Erros todos fazem. O que é grave é não aprender com eles.

 

E estamos a aprender? O investimento público, como medida com efeitos mais imediatos na economia não é mais vantajoso do que políticas de redução da carga fiscal para induzir maior competitividade?

 

O Estado português foi o primeiro na zona euro a decidir apoiar empresas concretas. Tomando uma atitude de voluntarismo de política industrial que outros países europeus ainda não tinham tomado. E, por termos uma condição financeira mais débil, não tínhamos condições para sermos pioneiros num caminho que não é, aliás, o melhor. Na maior parte dos casos onde tenderemos a apoiar, não temos, nem por razão interna, nem por peso no mercado internacional, qualquer hipótese de o antecipar. Se há país para quem é dificilmente compreensível ter uma política de apoio muito marcada à indústria automóvel somos nós. Isso é compreensível na Alemanha onde 15 por cento do PIB é indústria automóvel.

 

Mas o que me faz mais impressão é o que está previsto na revisão do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) ao mostrar-nos um Governo atrasado na interpretação do que está acontecer.

 

Em que sentido?

 

Temos estado numa posição em que os poderes públicos recusaram a evidência até ao último momento. Isso foi muito patente na proposta de Orçamento do Estado para 2009 e agora no PEC. Quando se aguardava que surgisse uma visão mais realista, o Governo está a partir do princípio que vai sair da situação difícil já em 2010 quando a análise de todas as crises financeiras anteriores aponta para períodos de recuperação entre três a seis anos.

 

E este é o aspecto mais preocupante. Demonstra que o Governo vai tentar esconder as debilidades internas em ano eleitoral, o que significa que na campanha não se vai falar delas e não se vão resolver. Não tomar agora consciência da situação e propor medidas para as resolver, significa que vamos esperar mais quatro anos para a resolução. Por isso, comprometer hoje todos os fundos possíveis na esperança de que em 2010 já estamos numa situação normal, é muito perigoso se em 2010 estivermos piores do que agora.

 

Perdemos tempo...

 

E já fizemos mais endividamento.

 

Mas o que deveria ser feito?

 

Perante um país com um desequilíbrio externo do da nossa dimensão, tínhamos mais vantagem em seguir políticas que combatessem esse endividamento e, principalmente, rezar para que os mercados internos dos nossos exportadores crescessem. O que me preocupa é qual é a estrutura e quais as regras com que devíamos estar preparados para tirar partido de uma futura recuperação. Não conseguiremos resolver os nossos desequilíbrios sem uma política de crescimento completamente diferente da que tivemos.

 

O que é fundamental para ter confiança perante os investidores internacionais que têm de financiar o desequilíbrio anual da economia portuguesa é eles pensarem se vamos para pior ou melhor. E temos estado a piorar. O desequilíbrio externo tem-se vindo a degradar, não conseguimos atrair investimento externo a não ser com condições de super subsidiação e, mesmo assim, tem sido difícil e temos assistido à saída de imensas empresas.

 

Agora, se o Partido Socialista, por motivos eleitorais tiver a tentação de agradar a tudo o que esteja à sua esquerda, estamos a criar condições cada vez menos atraentes para fazer novo investimento. E perante isso temos dois cenários: ou vamos caindo lentamente ao longo dos anos, e é isso que tem estado a acontecer; ou temos uma situação de ruptura mais grave e nessa altura fazemos as alterações todas de repente. Foi o que aconteceu no passado. Chegámos à beira do primeiro acordo com o FMI praticamente em ruptura cambial e o segundo deu-se pelas mesmas razões.

 

E depois temos o eterno problema da educação...

 

É o mais complicado de todos, que resulta do facto de a sociedade portuguesa fornecer às empresas uma população activa muito mal preparada. E isso é um obstáculo de base.

 

E demora muito a mudar...

 

Demora dezenas de anos. Lembro-me de ter insistido com o primeiro-ministro da altura, em 1985, o professor Cavaco Silva, de que precisávamos de ter um plano de formação diferente do do plano do Fundo Social Europeu, porque tínhamos problemas diferentes dos outros países. Se nos outros países havia a necessidade de reciclar conhecimentos de pessoas que saíam de sectores que desapareciam para entrar noutros, mas tinham boa formação de base, nós tínhamos fundamentalmente o problema de 86 por cento da nossa população activa ter menos de oito anos de escolaridade. Mas como o figurino europeu era o que estava feito e o que permitia aceder logo aos fundos e como o objectivo era que entrasse dinheiro para resolver o buraco da balança de transacções correntes, entrou-se pelos mecanismos que se sabe. Fez-se o que não era necessário, andou a ensinar-se coisas que não tinham interesse nenhum e o trabalho de base não foi feito.

 

O programa Novas Oportunidades não é um caminho?

 

É um programa confrangedor. Posso dizer-lhe o que acontece nas minhas empresas. Numa, da área industrial, ajudamos as pessoas, fornecemos computadores e apoiamos o programa. Há uma taxa de aprovação de 30 por cento. São pessoas à volta de 60 anos e o que aprendem vai-lhes permitir usar a internet e enviar e-mails quando estiverem reformados. Numa outra empresa, mais nova, tentei saber porque não conseguimos montar uma aula inteira na própria empresa, porque isso dispensaria os trabalhadores de terem que ir a uma escola. Foi-me dito que de há um tempo a esta parte arranjaram todos um segundo emprego. Vão distribuir pizzas ou fazer outra coisa qualquer porque as pessoas não conseguiam, perante o aumento dos encargos, fazer face aos seus orçamentos familiares.

 

Portanto, isto está a servir, nalguns casos, para arranjar uma reforma culturalmente mais elevada, o que é positivo, mas não é suficiente para aqueles que tiveram um mau sistema de ensino ou por qualquer razão têm muito pouca formação. E isso é um obstáculo brutal.

 

Portugal estaria muito diferente hoje face ao que passámos quando precisámos da ajuda do FMI se não tivéssemos a protecção de uma moeda forte como o euro?

 

Os problemas já se tinham resolvido. Os portugueses colectivamente têm uma tradição de evitar até ao último momento e depois mudam com uma rapidez surpreendente. A resposta aos acordos com o FMI foi muito rápida, éramos um case study, mesmo sem que todas as medidas fossem aplicadas completamente.

 

Defende que nos deveríamos preparar para que, quando os nossos clientes começassem a recuperar, estivéssemos em melhores condições para sermos competitivos. Mas com que políticas?

 

Não é ajudando as empresas que fizeram maiores asneiras até agora. Porque se o critério for sustentar emprego a qualquer custo e ajudar as empresas todas, as que vão pedir ajuda são as que estão em pior situação e, um segundo grupo, que é o dos espertalhões.

 

Dever-se-iam estabelecer apoios de carácter geral que libertassem de constrangimentos e da carga fiscal excessiva as empresas que estão a funcionar e bem e que deviam ter condições para comprar as que estão a funcionar mal, porque as empresas que estão em melhor situação são as que se prepararam melhor para as alterações da conjuntura.

 

Não devíamos misturar o que é a política social com a política económica. O Governo está a tentar duas coisas que me parecem erradas: apoia os que estão em pior situação e dá sinais públicos de que está a dar apoio a empresas que, se calhar, vão fechar. A Qimonda é exemplar em termos negativos, porque já toda a gente percebeu que os 100 milhões que o Estado estava disposto a avalizar tinham como objectivo manter a empresa aberta até às eleições.

 

A população compreenderia isso quando o desemprego aumenta?

 

Se é verdade que a maioria da população, dos eleitores, concordarão que numa conjuntura destas seja dada prioridade às políticas sociais, isso não deveria ser feito à custa de obrigar as empresas a sustentar emprego, caso contrário, no fim da crise, essas empresas ainda vão estar em piores condições.

 

Há um aproveitamento da crise para fazer despedimentos por parte das empresas, como acusa a CGTP?

 

Nunca percebo essas acusações. Partem do princípio de que alguma empresa está interessada em ter menos pessoas do que aquelas que precisa. Não consigo perceber isso quando, na minha experiência, vejo que é tão difícil termos pessoas capazes de desempenhar as funções com qualidade. Não estamos nada interessadas que pessoas que sabem fazer bem as suas funções, saiam. É uma afirmação sem pés nem cabeça.

 

A Autoridade para as Condições do Trabalho também denunciou...

 

Isso faz parte de uma estratégia dos trabalhadores e dos sindicatos que é compreensível como forma de levantar dificuldades para chegarem a um acordo com indemnizações mais elevadas. Em Portugal, o que vai ser mais complicado é que este Governo, muito imprudentemente, restringiu a possibilidade de concessão de subsídio de desemprego a pessoas que saíssem por rescisões amigáveis. Por um lado, fomentam o conflito e, por outro, criam, quer nas empresas como no trabalhador, a necessidade de configurar uma história diferente para que a pessoa possa ter o subsídio desemprego.

 

A banca está, ou não, a dificultar o acesso das empresas ao crédito?

 

Até agora nunca vi dados quantificados que nos levassem a dizer que isso é assim.

 

Mas há associações empresariais que o denunciam...

 

Entrámos na fase da choraminguice colectiva, cada um chora para seu lado.

 

Os grandes projectos públicos estão a secar o crédito?

 

Tanto a nível do crédito interno como do internacional.

 

Deviam parar alguns dos grandes projectos públicos?

 

É evidente. Isso já é uma teimosia pessoal. Quando se fala em lançar pequenos projectos que possam começar imediatamente a produzir resultados não estamos com certeza a falar do aeroporto nem do TGV.

 

Devia adiar-se o aeroporto e o TGV?

 

Com certeza. Já o defendia antes da crise. Há um crivo que deveríamos usar há muitos anos e não o fizemos: perante cada decisão concreta dever-se-ia analisar se o projecto em questão contribui para melhorar a nossa competitividade externa, ou não. E devíamos privilegiar os que contribuíssem.

 

Deveria ser o principal factor de decisão?

 

Porque é a nossa principal debilidade. Um segundo crivo, mais quantitativo, deveria ser o de analisar o que acontece ao coeficiente capital/produto do país com esse investimento. Ou seja, estou a pôr capital que é escasso, o que recebo a mais em produto. E temos investido em coisas com um coeficiente muito desfavorável. Neste momento, em que temos sobreposto um aperto conjuntural e estrutural, devíamos tentar obter coisas que dessem resposta rápida em produto de forma a melhorar a situação do mercado de trabalho.