Na passada terça-feira, tive o grato prazer de rever
o meu amigo Vicente Jorge Silva - que, em 1981,
primeiro me convidou a escrever no Expresso. O
reencontro deveu-se a Teresa de Sousa e ao seu
agradável programa televisivo ‘Clube de Imprensa’,
na RTP 2, para o qual convidou também o padre Peter
Stilwell.
O tema foi ‘valores, religião e democracia’ e terá
sido suscitado pelas recentes declarações do
Presidente Sarkosy acerca do papel positivo que os
valores cristãos podem ter para a democracia. Parece
que o assunto provocou grande polémica em França, o
que não foi o caso no nosso debate. Em boa verdade,
penso que a controvérsia francesa exprime o arcaísmo
da cultura política gaulesa.
Que Estado e religião devem ser separados é um
princípio adquirido pelas democracias liberais
(ainda que em Inglaterra e na Escandinávia a
liberdade religiosa tenha convivido com uma igreja
estabelecida). Mas a França tem uma interpretação
peculiar dessa separação: acha que ela implica a
hostilidade do Estado para com as religiões. E, em
França, essa hostilidade é entendida como um
princípio liberal.
Vejo com dificuldade como poderia ser liberal a
hostilidade do Estado para com a religião. Se a
religião for livremente escolhida pelas pessoas, e
não coercivamente imposta pelo Estado, por que razão
seria liberal hostilizar a religião? Por que razão
deveriam ser colocados obstáculos à livre expressão
religiosa na praça pública?
Suponho que haverá duas razões, nenhuma delas
particularmente recomendável. A primeira consiste em
confundir praça pública com Estado. Mas a praça
pública não é o Estado: é um espaço informal, não
centralmente organizado, de conversação interpessoal
onde as pessoas e instituições cruzam argumentos
rivais. Querer limitar a presença da religião na
praça pública implica querer limitar a liberdade de
expressão e a liberdade de consciência.
Outra hipótese consiste em atribuir à democracia e à
liberdade um propósito substantivo: a modernização,
ou a secularização, ou a libertação das pessoas do
jugo do mito, ou da tradição, ou da religião. Não
vejo nada de mal em que essa interpretação possa
existir, exprimir-se e concorrer com outras. Mas já
tenho sérios obstáculos a que queira adquirir
estatuto constitucional. Isso equivaleria a capturar
a Constituição para um ponto de vista particular -
em vez de ela consagrar as regras do jogo que
permitem a convivência pacífica entre diferentes
pontos de vista particulares.
Em suma, creio que a tentativa de exclusão da
religião da praça pública exprime um impulso
autoritário e antiliberal. Boa Páscoa.