Expresso - 21 Mar 08

 

Religião e praça pública
João Carlos Espada

 

Na passada terça-feira, tive o grato prazer de rever o meu amigo Vicente Jorge Silva - que, em 1981, primeiro me convidou a escrever no Expresso. O reencontro deveu-se a Teresa de Sousa e ao seu agradável programa televisivo ‘Clube de Imprensa’, na RTP 2, para o qual convidou também o padre Peter Stilwell.

 

O tema foi ‘valores, religião e democracia’ e terá sido suscitado pelas recentes declarações do Presidente Sarkosy acerca do papel positivo que os valores cristãos podem ter para a democracia. Parece que o assunto provocou grande polémica em França, o que não foi o caso no nosso debate. Em boa verdade, penso que a controvérsia francesa exprime o arcaísmo da cultura política gaulesa.

 

Que Estado e religião devem ser separados é um princípio adquirido pelas democracias liberais (ainda que em Inglaterra e na Escandinávia a liberdade religiosa tenha convivido com uma igreja estabelecida). Mas a França tem uma interpretação peculiar dessa separação: acha que ela implica a hostilidade do Estado para com as religiões. E, em França, essa hostilidade é entendida como um princípio liberal.

 

Vejo com dificuldade como poderia ser liberal a hostilidade do Estado para com a religião. Se a religião for livremente escolhida pelas pessoas, e não coercivamente imposta pelo Estado, por que razão seria liberal hostilizar a religião? Por que razão deveriam ser colocados obstáculos à livre expressão religiosa na praça pública?

 

Suponho que haverá duas razões, nenhuma delas particularmente recomendável. A primeira consiste em confundir praça pública com Estado. Mas a praça pública não é o Estado: é um espaço informal, não centralmente organizado, de conversação interpessoal onde as pessoas e instituições cruzam argumentos rivais. Querer limitar a presença da religião na praça pública implica querer limitar a liberdade de expressão e a liberdade de consciência.

 

Outra hipótese consiste em atribuir à democracia e à liberdade um propósito substantivo: a modernização, ou a secularização, ou a libertação das pessoas do jugo do mito, ou da tradição, ou da religião. Não vejo nada de mal em que essa interpretação possa existir, exprimir-se e concorrer com outras. Mas já tenho sérios obstáculos a que queira adquirir estatuto constitucional. Isso equivaleria a capturar a Constituição para um ponto de vista particular - em vez de ela consagrar as regras do jogo que permitem a convivência pacífica entre diferentes pontos de vista particulares.

 

Em suma, creio que a tentativa de exclusão da religião da praça pública exprime um impulso autoritário e antiliberal. Boa Páscoa.