Os governos em Portugal estão reféns de um aparelho
de Estado cuja voragem de recursos é enorme
"Não teremos mais um canal de novelas" - declara o
ministro Santos Silva, a propósito do novo canal de
televisão. "A Autoridade de Segurança Alimentar e
Económica (ASAE) "aconselhou" a centenária fábrica
das amêndoas de Portalegre a encerrar as portas, por
falta de espaço." "Lista de devedores ao fisco
publicada na Internet"... Compare-se esta forma de
falar e mandar com as vaguíssimas e titubeantes
declarações do ministro da Administração Interna ou
da Justiça sobre a actual crise da justiça e
segurança interna e fica-se chocado com o contraste.
O exercício do poder que tradicionalmente
associávamos à Justiça, à Administração Interna ou
aos Negócios Estrangeiros ou está envolvido numa
descredibilização assustadora - como acontece com as
duas primeiras pastas - ou, como ocorre com a
diplomacia, é cada vez mais apresentado como matéria
resolvida algures em Bruxelas ou atirada para um
canto, por receio de que as opiniões públicas
percebam que a realidade não é tão cor-de-rosa
quanto lhe dizem. Ninguém quer discutir o Tratado de
Lisboa, a presença militar no Afeganistão ou os voos
da CIA.
Incapazes e também não interessados em reformar o
Estado, os partidos vão assim deslocando a sua acção
do país para os indivíduos. O que lhes sobra somos
nós. Não por acaso, o nosso Governo legisla com
vigor sobre o teor das gorduras, apela a que
chamemos a GNR para que esta averigue se num
determinado local alguém está a fumar, publica as
listas de devedores ao fisco, decide o que devemos
ouvir na rádio e ver na televisão, manda fechar
empresas porque as instalações e os bens aí
produzidos podem ser do agrado dos clientes mas não
obedecem àquilo que uns regulamentos quaisquer
determinam. Se for necessário, até se reactiva mais
uma questão fracturante daquelas que tocam naquilo
que nos é mais pessoal e intransmissível, como a
morte ou o sexo, para que os partidos possam mostrar
que algo ainda os distingue.
Mas o nosso Governo, que tão lestamente nos diz o
que devemos comer, comprar e até pensar, o mesmo
Governo que se prepara para nos entrar nas casas -
não se prepara o ministro do Ambiente para colocar
um chip no caixote do lixo? - e que pretende
transformar os advogados e os contabilistas em
colaboradores das polícias, este Governo, tal como
aqueles que o antecederam e provavelmente como
aquele que lhe vai suceder, perde toda a capacidade
quando, em vez dos cidadãos, se confronta com a sua
própria máquina. Os governos em Portugal estão
reféns de um aparelho de Estado cuja voragem de
recursos é enorme. Mas também só ganham eleições
prometendo mais serviços e mais benefícios desse
mesmo Estado. E assim chegámos à paradoxal situação
dos ministérios serem falados não por aquilo que
fazem mas sim, e sobretudo, pelos seus problemas de
funcionamento.
Pensemos no ex libris disto tudo: a Educação. A tal
que suscitou paixões e investimentos que nada ficam
atrás dos que são feitos em países ricos. O
resultado está aí, num Ministério da Educação que
deveria antes chamar-se Ministério de Gestão dos
Professores, Auxiliares, Pedagogos e Demais
Técnicos. Porque é isso que ele é. Os ministros da
Educação não são contestados ou apoiados por aquilo
que fazem ou não fazem em matéria de educação, mas
sim por aquilo que resolvem sobre as carreiras, os
estatutos e os vencimentos dos seus funcionários.
Qualquer titular da pasta da Educação desde há muito
que deixou de ter a educação como a sua preocupação.
Quando é que pela última vez se ouviu um ministro em
Portugal a debater conteúdos? Maria de Lurdes
Rodrigues nunca, até hoje, falou sobre a trapalhada
da TLEBS. Nunca explicou para que servem muitas das
novas disciplinas como a Área de Projecto. Muito
menos ela e quem a tem precedido na 5 de Outubro se
pronunciam sobre o que, de facto, se ensina ou
avalia. O que quer dizer um ministro da Educação
quando declara que o sucesso escolar está a
aumentar: que os resultados são efectivamente
melhores ou que, muito prosaicamente, hoje se
considera aprovado um aluno que há alguns anos se
reprovava? Não há tempo nem espaço para discutir
nada disso. O que conta é que o aparelho resista a
mais esta tentativa de o meterem na ordem. E
provavelmente vai ganhar mais uma vez.
Esses sindicatos dirigidos há anos pelas mesmas
pessoas, mais essas associações de pais que não só
não se sabe quantos pais representam como menos se
percebe ainda há quanto tempo andam nessas funções,
esses secretários de Estado com uns currículos de
pura burocracia podem estar momentaneamente
separados mas fazem parte todos desse aparelho que
se alimenta da obrigatoriedade das famílias
portuguesas de colocarem os seus filhos na escola
pública. Se o Estado português ousar entregar à
escola pública ou privada escolhida por cada família
aquilo que custa o mesmo aluno actualmente na escola
pública que lhe está destinada, certamente que
discutiríamos muito menos as questões de
funcionamento do ministério e passaríamos a ter
inúmeras razões para debater educação. Quem sabe até
poderíamos ouvir os ministros da Educação a falar de
educação, ensino, exames...
Mas não só isso não acontecerá, como qualquer
tentativa de reforma dos serviços estatais - seja
ela boa ou má - acabará a arrastar-se pelos
tribunais. A judicialização da vida política é um
dos lados mais perversos da desvalorização dos
políticos e da política. Fechar uma urgência
hospitalar ou alterar modos de funcionamento de uma
escola podem ser boas ou más decisões. Mas trata-se
de política. Não de justiça. Não existe uma forma
mais justa ou injusta de tratar o Serviço Nacional
de Saúde. Existem opções políticas. Que prefiramos
acreditar que tudo isto é uma questão de justiça e
legalidade é revelador da actual vacuidade do
discurso político.
Entre uma máquina estatal da qual dependem para ser
poder e que não podem nem conseguem reformar e um
país para o qual não apresentam um discurso
ideológico mas sim de estilo, os dirigentes
políticos deslocaram para os cidadãos, para os seus
comportamentos, para as suas atitudes, o campo onde
traçam aquilo que supostamente os distingue. Era
mesmo o que nos faltava. Jornalista