A vitória do "sim" radical sobre o moderado é o
exemplo acabado de que a revolução acaba sempre por
engolir os seus filhos
Tantas vezes os defensores do sim repetiram que o
que estava em causa não era o aborto livre a pedido
da mulher que acabaram por convencer a maioria dos
eleitores que foram votar. Foi aliás a ideia de que
o aborto era um mal, que se combatia melhor no
Serviço Nacional de Saúde do que no circuito do
aborto clandestino, que levou a considerar a defesa
do sim mais moderada do que em 1998, já que agora se
reconhecia a existência de uma vida intra-uterina
diversa da da mãe, razão pela qual também os
defensores do sim se afirmavam contra o aborto,
mesmo legal, pretendendo evitá-lo, ainda que não
através da criminalização.
A este propósito era sempre citado pelos defensores
do sim o modelo alemão, como um bom exemplo a
seguir, sendo que o que consta no nº 219 n.º1 do
Código Penal alemão é que, o aconselhamento serve a
protecção da vida que está por nascer. Deve
orientar-se pelo esforço de encorajar a mulher a
prosseguir a gravidez e de lhe abrir perspectivas
para uma vida com a criança. Deve ajudá-la a tomar
uma decisão responsável e em consciência. A mulher
deve ter a consciência de que o feto, em cada uma
das fases de gravidez, também tem o direito próprio
à vida e que, por isso, de acordo com o sistema
legal, uma interrupção da gravidez apenas pode ser
considerada em situações de excepção, quando a
mulher fica sujeita a um sacrifício que pelo
nascimento da criança é agravado e se torna tão
pesado e extraordinário que ultrapassa o limite do
que se lhe pode exigir.
A verdade é que, até à vitória do sim, não se ouviu
uma voz, uma só, a dizer que o aconselhamento prévio
obrigatório era humilhante para a mulher ou que a
tentativa de a dissuadir a praticar um aborto fosse
estigmatizante. Bem pelo contrário. O coro estava
bem afinado e cantou a uma só voz a música
previamente ensaiada. O aborto não é livre, o aborto
não é um direito, o aborto é um mal foi o refrão
repetido e trauteado um pouco por todo o país.
Onde estão agora esses tenores? Onde estão esses
protagonistas do sim moderado? Ou, outras palavras,
onde estava Alberto Martins? É inquietante verificar
como a vitória do sim levou a que logo começassem a
cair as máscaras dos que se tinham fingido
moderados, iniciando-se a campanha de "trotskização"
dos verdadeiros moderados, que nunca mais
apareceram. Dão-se alvíssaras a quem encontrar, nos
dias que correm, os protagonistas do sim moderado,
de Maria de Belém a Oliveira e Silva.
Afinal o aborto tem mesmo de ser livre, para não se
desrespeitarem os resultados do referendo, dizem
agora os que andaram calados durante a campanha.
Afinal o aconselhamento tem de ser facultativo,
neutro e não directivo, não podendo ter por
objectivo tentar demover a mulher que queira fazer
um aborto. Afinal o aborto é mesmo um direito da
mulher que não pode ser condicionada de forma
nenhuma, dizem os que o negavam ontem. Só não se
percebe porque é que o próprio período de reflexão
não é também facultativo, para não estigmatizar a
mulher face aos actos médicos não sujeitos a tal
retardamento.
É preciso dizer que o que se está a passar assume os
contornos de uma autêntica burla política, sobretudo
para os que acreditaram no que lhes foi dito vezes
sem conta e acabaram por votar sim. É que para os
defensores do não qualquer lei que venha a ser
aprovada e que permita à mulher decidir livremente
sobre a vida do feto será sempre uma má lei, estando
em causa apenas (e não é pouco) procurar o mal
menor. São, pelo contrário, os defensores do sim
moderado, agora amordaçados ou sequestrados, os
verdadeiros enganados nesta história.
A vitória do sim radical sobre o sim moderado é o
exemplo acabado de que "a revolução acaba sempre por
engolir os seus filhos". À frente vão os românticos,
os ingénuos, os bem-intencionados, os compreensivos,
os verdadeiros e os puros. Depois, aparecem os
poderosos, os calculistas, os falsos e os
dissimulados. Terá de ser sempre assim?
Professor de Direito Constitucional, UNL