Público - 23 Mar 06
"Eduquês", "cientês" e alguns porquês
Carla Machado
A educação vai
mal, já o sabemos. Os diagnósticos abundam, "novas"
soluções recriam velhas receitas e sucessivas
medidas vão sendo ensaiadas em sucessão tão
vertiginosa que quando estamos a começar a
compreender a última reforma já a seguinte está a
ser - como agora se diz - "implementada".
Neste palco de muitos arautos da verdade e poucos
conhecedores do assunto, é agora moda o ataque ao
dito "eduquês", tido como culpado do insucesso
educativo e responsável pela cultura de facilitismo
dominante. Não sendo especialista no assunto nem
parte comprometida com nenhuma "escola", parece-me
que há neste jogo de acusações algumas curiosidades
e paradoxos.
O discurso das ciências da educação tem apontado uma
série de críticas à pedagogia tradicional,
nomeadamente a sua centração no exame como
instrumento avaliativo, o ensino expositivo, a falta
de acompanhamento dos alunos ou a ênfase na
reprodução como objectivo da aprendizagem. Parece-me
difícil desmentir a verdade destas críticas: na
escola - em todos os níveis de ensino - pululam
docentes sem gosto em ensinar, que "despejam"
conteúdos de forma totalmente indiferente a quem os
ouve, para quem o aluno é pouco mais do que uma
obrigação e que esperam que aqueles "papagueiem" a
matéria tal e qual lhes saiu da boca... porque isso
lhes dá lustro ao narcisismo ou simplesmente lhes
reforça a convicção de que sabem algo que,
possivelmente, terão lido num tempo imemorial que
remonta ao momento em que saíram dos bancos da
faculdade. Mas também é verdade que esta crítica
pode ser confundida - justa ou talvez, em alguns
casos, injustamente - com alguma dificuldade em
assumir o papel de autoridade dos docentes ou com um
discurso de vitimização do aluno, visto como um "bom
selvagem" entregue aos desígnios dos "maus"
educadores.
Por sua vez, é fácil aos críticos do "eduquês"
ganhar notoriedade, numa fase da vida política em
que é de bom tom reivindicar a exigência e rigor e
denunciar o facilitismo do passado (onde é que eu já
ouvi isto?).
Curiosamente, para tão árduos defensores do rigor,
grande parte destes "novos educólogos" -- porque
obviamente o tentam ser, dizendo que não o são (onde
é que eu também já ouvi isto?) - tendem a apropriar
mal os conceitos que usam, a confundir mudança da
pedagogia com laxismo pedagógico, modificação das
práticas avaliativas com inexistência de avaliação
ou construção do conhecimento com o mito de que o
aluno aprende sozinho. Tendem, também, na forma como
recorrem de modo omnipresente à noção de ciência nos
seus discursos (contrapondo-a ao "endoutrinamento
ideológico" de que acusam os pedagogos), a incorrer
numa outra falácia. É que é óbvio que esta
argumentação - ainda que brilhante no plano retórico
- não é mais do que isso: retórica disfarçada de
cientificidade, a ciência transformada em argumento
político e moral, usada como arma de arremesso.
O que é curioso, nesta guerrilha verbal, é a
aparente incapacidade de perceber que podemos
simultaneamente ser críticos em relação aos docentes
e à prática pedagógica e ser exigentes em relação
aos alunos, sem colocar nem uns nem outros na
posição de "vítimas do sistema". Na pior das
hipóteses, a escola (desde o básico à universidade)
está povoada de professores a contragosto e alunos
que só lá estão porque a isso são obrigados, que
jogam uns com os outros o jogo do "deixa andar". No
melhor dos casos, temos professores que gostam de
ensinar e são - por isso mesmo - exigentes, e alunos
que percebem que estudar é prazer, mas também
esforço e perda de outras gratificações mais
imediatas.
Construir a melhor destas alternativas exige o fim
do "jogo do empurra" nas culpas pela educação e o
entendimento de que a cultura de exigência tem que
envolver alunos e professores, a ambos sendo pedido
que façam o seu melhor: seja isso transformar a
pedagogia ou envolver-se e esforçar-se no estudo. A
culpa raramente é boa alavanca da mudança, seja sob
a forma de má consciência, seja pela tendência de a
imputar a terceiros. No meio deste jogo entre
oponentes cegos a qualquer argumentação que não
confirme o que já julgam saber, o desfecho típico é
a inércia. Quem perde, como é óbvio, somos todos
nós... Professora universitária
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