Diário de
Notícias - 19 Mar 06
Horror e
'alargamento de direitos'
João César das Neves
Porque é que o
homem moderno vê o futuro de forma tão negra? Este é
sem dúvida um dos maiores paradoxos da actualidade.
Uma recente frase do senhor primeiro-ministro deita
alguma luz sobre a origem deste surpreendente
enigma.
Desde a revolução industrial o mundo ocidental
conhece um grande desenvolvimento e subida do nível
de vida. Vivemos de forma que os nossos avós nem
conseguiam imaginar e que todo o mundo quer copiar.
Mas, apesar dos grandes ganhos obtidos na liberdade,
saúde, bem-estar e cultura, quando olha para o
futuro a sociedade vê o pior dos horrores. As nossas
gerações, apesar de viverem no conforto e progresso
têm, se possível, uma visão ainda mais negra do
amanhã que as eras antigas.
A antevisão das linhas de evolução
institucionalizou-se no género da "ficção
científica". E praticamente todos esses
prognósticos, feitos com seriedade e argúcia, são
assustadores, catastróficos, deprimentes. Desde os
mais antigos, Frankenstein (1818) de Mary
Shelley e The War of the Worlds (1898) de
H.G.Wells, até aos mais recentes, como Star Wars
(1977-2005) de George Lucas, todos são unânimes em
prever um mundo seguinte pior que o actual.
As causas dessa previsão são muito diferentes. Nuns
casos é o ataque de monstros horríveis, como em
Starship Troopers (1959) de Robert A. Heinlein,
noutros o poder destrutivo da tecnologia, como em
Le Secret de l'Espadon (1947) de Edgar P. Jacobs;
da revolta das máquinas de 2001 - A Space Odyssey
(1968) de Arthur C. Clarke até à manipulação global
em The Foundation Trilogy (1951-53) de Isaac
Asimov. Normalmente, o resultado é uma sociedade
desumana e mecânica, como a de Metropolis
(1927) de Fritz Lang.
No meio da miríade de antevisões, duas destacam-se
pela sua horrível plausibilidade. A primeira é
Nineteen Eighty-Four (1949) de George Orwell,
que se pode tomar como a clássica representação de
um estado totalitário e sufocante, o protótipo dos
sistemas opressivos, do nazismo às teocracias
recentes. Um dos elementos mais ameaçadores dessa
obra é a sua datação concreta. Ao contrário da
maioria destas histórias, a acção não se situa num
futuro remoto, mas uns meros 35 anos depois da sua
publicação. Só que a previsão falhou. Inspirado na
URSS, o livro é curiosamente localizado no ano
anterior à subida ao poder de Mikhail Gorbachev, que
decretaria o fim do estalinismo.
Se a obra de Orwell permanece como a ameaça dos
sistemas alternativos, o outro volume, anterior, é
muito pior, pois define a simples evolução do nosso.
Brave New World (1932) de Aldous Huxley
mantém-se como a mais severa acusação ao sistema
ocidental, mostrando como uma sociedade apostada no
prazer e na técnica pode deixar de ser humana. Aqui
não há ditadores, como o Big Brother de Orwell,
cientistas perigosos, como o dr. Frankenstein e o
psico-historiador Hari Seldon de Asimov, ou
monstros, como os Bugs de Heinlein. Existe só
uma comunidade que apodrece no conforto.
Como pode acontecer isto? Um exemplo que ajuda a
compreender vê-se na entrevista do eng. Sócrates
concedida ao Expresso de 4 de Março. Aí
afirmou: "A nossa agenda em matéria de alargamento
de direitos vai começar pelo aborto." Aqui temos um
homem, governante de um país moderno e civilizado,
que pretende usar a melhor máquina jamais montada de
criação de bem-estar, o Sistema Nacional de Saúde,
para arrancar bebés do seio de suas mães. E o faz em
nome do "alargamento de direitos"! Não se trata de
um bárbaro, mas de uma pessoa inteligente que, de
boa--fé, está empenhada na melhoria do seu país. Mas
que se prepara para legalizar uma prática vergonhosa
que até os selvagens mais boçais sempre consideraram
infame. O nosso sofisticado primeiro-ministro é
também o líder de uma maioria que quer aprovar a lei
da Procriação Medicamente Assistida, que regulará as
práticas mais abjectas do Admirável Mundo Novo. Tudo
isto é feito com as melhores intenções, em nome dos
valores mais elevados.
As razões que assistem a José Sócrates são
facilmente compreensíveis. O aborto higiénico, as
experiências com embriões, as "barrigas de aluguer"
têm vantagens evidentes. Contra elas está apenas uma
"pequena" violência feita sobre os fetos. Esta
escolha baseia-se no mesmo raciocínio que criou a
pior ficção alguma vez tornada realidade. Nos anos
30 os alemães viam bem as vantagens da ordem que
Hitler garantia, em troca de uma "pequena" dose de
violência. É assim que o progresso destrói o futuro.
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