Público - 10 Mar 06

 

Ponto final

Pedro Strech

 

E"Careful the things you say
Children will listen.
Careful the things you do,
Children will see
And learn.

Children will not obey
But children will listen.
Children will look to you
For which way to turn,
To learn what to be.

Careful before you say
"Listen to me".
Children will listen."

Stephen Sondheim, Into the Woods


Este poema marca o início do livro de Jonathan Paul, editado em 2003, e denominado When Kids Kill (Shocking Crimes of Lost Innocence). Conjuntamente com Lost Boys (Why our sons can turn violent and what we can do to save them) de James Garbarino, publicado em 2001, e de As If, de Blake Morrison, com primeira edição em 1997, completa um conjunto de referências a não perder para quem quiser compreender um pouco melhor as evoluções psíquicas terminais de rapazes ou raparigas que muito precocemente se tornaram homicidas, ligando-as claramente à gravidade de perturbações psicossociais que afectam tantos e tantos jovens em vários países, incluindo Portugal, o eterno pior classificado da União Europeia nesses índices de mal-estar. Todos os livros descrevem e ajudam a compreender uma série de casos de crianças e adolescentes que matam: o primeiro, ilustrando vários casos ao longo da história; o segundo, referindo-se aos adolescentes que protagonizaram tragédias recentes em liceus norte-americanos, como o que deu origem ao filme Elephant, de Gus Van Sant; o último, descrevendo a par e passo o caso James Bulger, incluindo o julgamento dos dois rapazes de Liverpool que, então com 10 e 11 anos, raptaram essa criança de dois anos e, depois de a terem espancado, a deixaram em cima de uma linha de caminho-de-ferro para o seu corpo ser depois trucidado pelo primeiro comboio que passou.
Casos raros? Assuntos estranhos e de compreensão impossível? Nada disso. Situações comuns, com frequente possibilidade de detecção precoce e que, por vezes, só não acontecem mais porque a fronteira entre matar ou morrer ou ferir e "apenas" sofrer é uma mera questão de sorte, uma moeda que tanto pode cair para lá ou para cá de um limite, como o filme Match Point, de Woody Allen, tão bem ironiza.
Match Point. A bola decisiva. O ponto final. E como é possível chegar-se a esse momento sem retorno, como aquele que aconteceu entre um grupo de adolescentes acolhidos numa instituição no Porto e um sem-abrigo que sucumbiu aos seus ataques violentos? Usando os títulos dos três livros referidos, poderia dizer-se que quando há rapazes autores de crimes tão chocantes, então eles são cometidos por alguém que está profundamente perdido e que sempre, sempre foi tratado "como se..."
Perdido porque, muitas vezes, antes de nascer nunca foi desejado por ninguém. E mesmo depois de nascido, nunca pertenceu a alguém.
Perdido porque, muitas vezes, foi precocemente cedido aos cuidados de outrem.
Perdido porque, quase sempre, sem pai e/ou mãe presentes durante o seu crescimento, nunca conhecendo um traço contínuo de afecto minimamente digno desse nome.
Perdido porque, quase sempre, criado sem regras nem limites, em bairros, ruas e casas que nem dignidade têm para ser referidas por esse nome, logo, criado sem qualquer sentimento de identidade ou pertença.
Perdido porque as suas dificuldades emocionais, quase sempre expressas precocemente, nunca foram realmente atendidas ou tratadas.
Perdido porque colocado em instituições, sem projecto de vida, onde muitas vezes o que conheceu no seu dia-a-dia mais não foi mais do que uma trágica e triste repetição daquilo que já conhecera anteriormente (como o abandono emocional ou a violência física retaliatória), embora em palcos e roupagens diferentes.
Tratado "como se" nenhum destes problemas existisse, num país que definitivamente deveria ter um momento de longa reflexão sobre as culpas que arrasta na forma como desprotege algumas vidas de crianças e adolescentes em desvantagem social.
Tratado "como se" a gravidade destes casos não tivesse uma clara explicação no passado de risco psíquico de muitas vítimas que, aos poucos, se vão perdendo e desligando da vida e do amor, para se tornarem vitimizadores.
Tratado "como se" as respostas da Segurança Social ou do sistema de justiça fossem as necessárias ou mesmo as suficientes e ninguém as quisesse realmente mudar.
Tratado "como se" nada pudesse voltar a repetir-se no futuro, tal como sistematicamente se repetiu no passado, em contínuos ciclos de perpetuação dos problemas.
Quando há adolescentes ou crianças (mais grave ainda!) que matam, chegou-se a um ponto final. Actores em cenários da vida onde a violência é a expressão última de um pensamento terminal (Violence, de James Gilligan, ed. em 2000, é também uma excelente referência teórica para este assunto), que acima de tudo se caracteriza pela ausência de esperança e de possibilidade de ajuda possível, também a parte mais importante do funcionamento das suas personalidades se encontra já morta quando acabam por matar. Aqui, como Sigmund Freud explicou há mais de cem anos, o instinto de morte, vence: Tanatos derrota Eros, porque tudo o que nestes rapazes significava pulsão de vida era quase inexistente.
Por isso, no ponto final em que nos encontramos como sociedade, já só resta registar e, como em tantas e tantas outras vezes no passado (e seguramente, em dias futuros), passivamente lastimar. A não ser que, muito profundamente, muito seriamente, alguém deseje reescrever histórias de vida, episódios de amor, onde surja uma nova cultura de investimento na infância e na adolescência.
"Se eu voltasse ao ponto onde estava, morria. Por isso, ali, era matar ou morrer." (V., 13 anos) Pedopsiquiatra

("Ponto Final" é o título de um capítulo
do livro À Margem do Amor. Notas sobre Delinquência Juvenil, por Pedro Strecht, ed. Assírio & Alvim, 2003, em que se escreve sobre casos de crianças e adolescentes que matam)

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