Público - 5 Mar 04
O "Habeas Votus"
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Aqui e ali, subrepticiamente, venho detectando sinais de um tipo de
argumentação política, ainda desgarrado e desorganizado, mas que tenta
fazer o seu caminho. Consiste essa argumentação, grosso modo, em
restringir a liberdade de opinião, de crítica política ou de intervenção
cívica àqueles que "foram a votos" ou têm "obra feita". Por "obra feita"
deve entender-se apenas a obra política, mesmo aquela que se limita a ser
o corolário lógico das obrigações resultantes de um mandato eleitoral. Por
exemplo, o autarca que, no uso das suas competências e obrigações e
utilizando os dinheiros públicos ao seu dispor, manda construir um centro
de terceira idade tem "obra feita" e uma legitimidade específica daí
decorrente. Inversamente, aos olhos destes, quem vive na vida civil, mesmo
que construa pontes, plante árvores ou componha óperas, não tem obra feita
que lhe permita assegurar idêntica legitimidade para a discussão ou
intervenção política. Aconteceu-me, nas três ou quatro vezes que me
convidaram para concorrer em eleições e assumir lugares políticos,
tentarem convencer-me com o argumento de que "já é tempo de passar das
palavras à acção" - como se as palavras não fossem uma forma de acção.
Com o argumento da "obra feita" concorre outro argumento, que é o da
legitimidade dos votos, contraposta à correspondente ilegitimidade
implícita dos que não foram a votos - é um argumento ultimamente muito em
voga entre os apoiantes de Santana Lopes. Se o fôssemos a aceitar,
significaria que, para todos os efeitos, passariam a existir duas
categorias de cidadãos, no que ao exercício do direito de intervenção
política se refere: os que foram a votos e os que não foram. Sendo que a
intervenção política dos primeiros estaria sempre e em cada momento
sufragada e particularmente qualificada pelo voto dos eleitores que neles
votaram. Qualquer discussão entre as duas espécies estaria assim à partida
prejudicada pela fatal pergunta: "Eu valho x votos. Tu quantos vales?"
Compreende-se como deve ser irresistível para políticos populistas, como
Santana Lopes, a tentação de encaminhar as coisas para o terreno onde ele
dá cartas e reivindica cartas de alforria. Mais do que o critério da obra
feita, do carácter, da personalidade, das ideias defendidas, o que acima
de tudo vale é o número de votos contados e de disputas eleitorais ganhas
ou mantidas. Há um sem- número de políticos no activo, em todos os
partidos e sobretudo no poder local, cuja qualidade se afere não pelo que
dizem, pelo que fazem, pelo que defendem ou pelo que são, mas pela sua
capacidade de trazer votos para o partido a que pertencem.
No limite chegamos a um personagem como Avelino Ferreira Torres, de que o
país inteiro ficou agora a conhecer o estilo, a arrogância e a
inultrapassável má educação. É óbvio que ele é a vergonha oculta do CDS, a
confissão despudorada de que, por mais nobres que sejam os princípios que
o partido apregoa, é sempre preferível, na hora da verdade, dispor de um
selvagem que ganha eleições do que de alguém sério, mas incapaz de vencer.
Todos os partidos têm o seu Ferreira Torres. O PS e o PSD têm mesmo
vários, que todos conhecemos, que se perpetuam no poder dos seus feudos
autárquicos, por entre danos inenarráveis causados às terras que governam
e sinais mais do que evidentes de súbitos e inexplicáveis enriquecimentos
pessoais, que todos sabemos terem como única origem a corrupção ou o
desvio de dinheiros públicos em benefício próprio. Mas, como se viu com
Fátima Felgueiras, enquanto ganharem eleições, não há direcção de partido
que tenha a coragem de os afastar.
É à luz deste contexto que devemos analisar a pretensa superioridade e
legitimidade política dos que vão a votos. Porque Ferreira Torres ou
Fátima Felgueiras foram e vão a votos e ganharão tantas vezes quantas as
que quiserem, por mais que o resto do país se escandalize - essa é, aliás,
a razão pela qual o "lobby" do poder local não aceita a limitação dos
mandatos autárquicos. Ora, é preciso aceitar que isto faz parte das regras
do jogo democrático. A democracia é o único sistema que permite destituir
pacificamente, pela simples vontade dos eleitores, um bandido revelado no
exercício do poder. Mas também é o único sistema que permite, com o voto
consciente dos eleitores, elevar ou manter no poder um bandido consagrado.
Veja-se o caso de Berlusconi, que chegou a primeiro-ministro de Itália e
cujo outro único destino possível era a prisão (na senda, aliás, de outros
primeiros-ministros italianos, como Craxi ou Andreotti).
Se assim é, se assim pode acontecer, que superioridade poderão invocar os
eleitos sobre os "civis"? Não será mais livre e mais digna uma intervenção
política que se cumpre solitariamente, sem servir nem obedecer a um
partido, e que se limita a expressar a opinião de um cidadão que se
interessa pela coisa pública, sem com isso aspirar a eleições ou nomeações
políticas? Por exemplo: aqueles deputados da maioria que votaram contra a
despenalização do aborto, sendo a favor dela mas em obediência às ordens
do partido, merecem mais respeito do que os que pensam pela sua cabeça e
vivem de acordo com o que pensam? Por exemplo, e voltando a Santana Lopes:
alguém sabe ou é capaz de recordar a sua opinião sobre a despenalização do
aborto ou sobre tantas outras questões, que são questões de consciência e
de verdadeira opção política, como a droga e as seringas nas prisões, a
participação de Portugal na guerra do Iraque, o tratamento dado aos
emigrantes do Leste ou de África, a lei dos despedimentos, o monopólio
tentacular da PT, a venda da EDP, a questão das propinas, os hospitais SA,
etc., etc? Será que deve bastar recolher votos sem se saber para quê ou
porquê?
É certo que não há democracia sem políticos profissionais e não há
políticos sem partidos. As coisas não são perfeitas, mas queira o destino
que nunca mais nos dê para experimentar utopias perigosas como a
"democracia directa" ou coisas que tais. Mas nem a democracia se esgota
nos partidos, nem a política se esgota com os políticos. Nem o bota-abaixo
recorrente e sumário a que os portugueses votam os políticos, nem o
reconhecimento de que a legitimidade do voto sirva para outra coisa que
não o exercício dos cargos para que foram eleitos - em nome e ao serviço
dos eleitores.
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