2 Mar 04
O aborto visto de cima
Quando as
pessoas se questionam surpreendidas como é que foi possível chegar às
matanças do séc. XX – uma muito mediatizada e outras habilmente ocultadas
à procura de melhores dias – talvez essa surpresa se deva a uma visão
utópica da condição humana, que as leva a ignorar como é fácil iludir e
justificar as maiores atrocidades, pelo simples facto de que os homens são
capazes de justificar tudo o que quiserem, sobretudo quando se erguem como
juízes do bem e do mal.
Ora, é precisamente isso que a
esquerda – que domina a arte da mentira e do ocultamento – tem feito nos
últimos 50 anos em Portugal. Partindo do princípio de que os homens nascem
com asas nas costas – especialmente se forem de esquerda – nada de mal
podem fazer por sua culpa; se algum mal fazem a culpa é da sociedade e das
suas estruturas, tais como a família, a Igreja, as forças de segurança, a
instituição militar, enfim, tudo o que suponha hierarquia e autoridade.
Essas, sim, são as estruturas que fazem os homens maus e devem ser
eliminadas para que se possa erguer o “homem novo”.
O aborto é uma das frentes
predilectas da esquerda, a par do homossexualismo e da droga. Com a
escassez de proletários e de camponeses (a reforma agrária deu no que
deu...) e uma classe dirigente que não dispensa as delícias de Cápua, a
esquerda teve de encontrar o seu novo paradigma.
Posta de lado a argumentação
sobre o aborto clandestino – que eles sabem que nunca irá acabar, porque
as mulheres que a ele recorrem querem mesmo ocultar o seu estado de
gravidez e que não lhe façam perguntas – o novo raciocínio que preconiza a
despenalização do aborto à la carte até às 10 ou 12 semanas é
cristalino: como as mulheres que abortam nascem com asas nas costas, de
forma alguma podem matar os próprios filhos, portanto, o aborto não é
crime. Como tal, se ao fim de 12 semanas uma mulher quiser despachar o que
traz na barriga pode fazê-lo, pois não se trata de um ser humano. No
entanto, se quiser levar a gravidez até ao fim, então aí já tem na barriga
um ser humano. Não é maravilhoso? O atributo de ser humano é fixado pelo
arbítrio da vontade.
É claro que se a esquerda
conseguiu chegar onde chegou foi porque a direita – particularmente os
políticos – foi criada à sua imagem e semelhança para servir de alavanca.
Com a ingenuidade, a moleza e a buçalidade intelectual que a caracteriza,
a direita comeu sempre muito bem as tretas da APF, tais como o mito da
penalização das mulheres, quando o que, de facto, pretendem é proteger os
“profissionais” carniceiros da máfia abortista, e a ideia de que o aborto
quando realizado em estabelecimento legal não tem consequências para a
saúde das mulheres, quando se sabe que há maior incidência de cancro na
mama e depressões entre mulheres que abortaram.
As contradições da esquerda são
mais que muitas. Porquê pôr o limite legal para aborto livre às 10 ou 12
semanas? Porque não às 24 ou 36? Se não é crime... Dizem que não há
direito uma mulher ir a tribunal por abortar. Então e há direito uma
mulher ir a tribunal por roubar, traficar droga, fugir aos impostos ou
matar a mãe? Condenam a violência doméstica como crime, mas querem
absolver o caso extremo de violência doméstica, em que uma mulher, mais ou
menos pressionada, recorre a um carniceiro para que lhe mate o filho. Para
eles é mais grave levar uns estalos do que ser triturado.
E se um indivíduo – desses que
não gosta de mulheres grávidas – agredir uma mulher grávida de 12 semanas
na barriga e lhe provocar um aborto, comete crime de homicídio ou não?
Após tantos anos de ditadura
cultural e política de esquerda, já devíamos ter aprendido que as soluções
deles são sempre piores que os problemas.
É claro que eles sabem que estas
coisas vão por partes: os que querem agora o aborto livre até às 10 ou 12
semanas foram os mesmos que aprovaram a actual lei há 20 anos, em nome da
tolerância e da modernidade; daqui por poucos anos vão querer alargar o
aborto até às 20 ou 24 semanas, invocando a mesma tolerância e os
progressos da medicina, com a desculpa de que 12 semanas é pouco tempo
para dar vazão à demanda nos serviços de saúde, que não estão
preparados para tanta exigência. E por aí fora.
Eliminar as práticas abortivas da
lista de crimes é abrir caminho para a sua banalização e para outras
práticas de morte tais como a eutanásia, a instrumentalização e a morte de
embriões para benefício de terceiros, enfim, é abrir o caminho para as
novas câmaras de gás a todos aqueles que os iluminados
acharem que não são dignos de viver.
Se descriminalizar as práticas
abortivas é condenável, mais condenável é dispor de estruturas
hospitalares, concebidas para conservar a vida humana, e
instrumentalizá-las para a sua destruição arbitrária, ou seja, porque dá
jeito.
Será que os hospitais, que não
conseguem dar vazão a tantas cirurgias há anos em lista de espera, vão
atrasar ainda mais os seus serviços para dar prioridade aos abortos?
Existem dois caminhos para ajudar
as mulheres com gravidezes problemáticas: ajudá-las a aceitar a gravidez e
a maternidade ou ajudá-las a despachar o que trazem no ventre. A esquerda
prefere a última e condena os que que preferem e praticam a primeira.
A esquerda é assim: é canha,
torta, sinistra... é esquerda.
Manuel
Brás |