Rui Rosas da Silva - 1 Mar 04

QUEM SE INTERESSA PELO POVO REAL?

Facto digno de assinalar foi a entrega recente, na Assembleia da República, de uma lista de assinaturas de cerca de 200.000 pessoas, orientada pelo grupo MAIS VIDA MAIS FAMÍLIA. E tanto mais notável se torna, quanto mais as condições em que decorreu a recolha das subscrições não foram fáceis, quer pelo ambiente geral do país, quer pelo tempo de que dispuseram para cometer a façanha - não chegou a um mês -, quer ainda pelas faltas de estrutura e de organização para ultimar as suas pretensões. Predominou a boa vontade desinteressada.

Sobre o primeiro ponto, é preciso assinalar duas vertentes. A primeira é a da comunicação social. Quem a lê, a vê  ou a ouve, fica com a convicção de que, em Portugal, a esmagadora maioria das pessoas apoia o aborto, a sua liberalização e a sua despenalização. Criou-se à volta deste tema uma espécie de plataforma de entendimento, segundo a qual o problema do aborto é uma matéria que violenta as mães que o praticam, de tal maneira que se relega para um plano de ocultamento o que o aborto é em si mesmo. Sendo assim, é necessária a sua despenalização, a fim de que nenhuma mãe seja molestada pelo facto de interromper voluntariamente a gravidez.

Esta expressão é uma das formas do referido ocultamento. Quem está grávida é uma mulher, profundamente dolorida com a sua situação, que tem de acabar com ela, por causa do incómodo horroroso que resulta prosseguir nessas circunstâncias, que não quis, não deseja e, portanto, não está em condições de assumir as suas consequências.

Não se diz, porém, que esta mulher  está grávida, porque é mãe e se quer desembaraçar não de uma doença incómoda e perigosa, dum quisto inoportuno, dum tumor maligno ou de coisa quejanda. Quem não concordaria neste caso em tratá-la da forma mais profiláctica e eficaz para sanar o mal? Oculta-se, sim, que o que existe no útero materno é um filho – uma pessoa humana -, que necessita desse ambiente para poder vir, a seu tempo, para o nosso convívio. Abortar, assim, torna-se numa realidade tremenda: matar um filho voluntariamente. Por isso, pode discordar-se de um grupo que fez distribuir por escolas folhetos alusivos aos horrores do aborto, mostrando imagens sangrentas e chocantes, de qualidade e oportunidade discutíveis. Mas, em abono da verdade, o que lá se escreve e mostra é a face hedionda e repugnante daquilo que a expressão “interrupção voluntária da gravidez” pretende ocultar, minimizar, ou retirar importância.

O segundo aspecto é a nossa classe política. Sabe-se que vários partidos, directa ou colateralmente, promoveram também, durante alguns meses, uma recolha de assinaturas favoráveis à despenalização do aborto. As máquinas aí implicadas moveram os seus cordéis e, com antecipação ao grupo MAIS VIDA E MAIS FAMÍLIA, lograram alcançar a cifra de 120.000 assinaturas, o que levou um dos seus organizadores a considerar que tinham o “povo português” da sua banda. Se com tal número se diz isso, o que não poderá dizer o outro grupo referido, que conseguiu mais 80.000 assinaturas aproximadamente?

Mas o mais curioso é que, mesmo os deputados ou filiados nos partidos da maioria, depois das 120.000, pareceram fraquejar nas suas convicções sobre o aborto e olharam com certo despeito e suspeição para a segunda leva de recolha de assinaturas, talvez esperando que o seu insucesso, afinal, permitisse “resolver” por uma vez o problema do aborto. Deste modo, as 200.000 ou quase proporcionaram-lhes um alibi esplêndido e tranquilizante, para não sentirem tanta dificuldade em respeitar o acordo entre os partidos da coligação até 2006.

De todo este caldo complexo, o que concluir? Não será lícito supor que entre o mundo da nossa comunicação social e dos nossos políticos e o país real existe um fosso de intenções e de sentimentos? Dir-se-ia que o ambiente dos “media” e da política, em Portugal, forma uma espécie de torre de marfim, onde cada um defende os conceitos que mais lhe interessam, sem atender aos legítimos anseios do povo que labuta. Mais, que manifesta um profundo desconhecimento do que este quer e se limita a gerir ideias que fazem parte do seu mundo fechado e não do já citado país real.

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