Diário de Notícias - 1 Mar 04

João César das Neves 
 A maioria silenciosa

O debate do aborto voltou! Incomodados por esta recorrência, muitos começam a protestar. Não faltam os que o vêem como uma luta entre dois extremismos, de direita e de esquerda, com a maioria da população, sensata e moderada, à margem da questão fracturante. Será esta a forma correcta de colocar a situação? À primeira vista, a realidade da descrição é indiscutível. O problema só parece interessar um punhado de pessoas, algumas assumidamente radicais, enquanto o País preferia esquecê-lo. Até o resultado do referendo de 1998 mostrou um quase empate entre dois pequenos grupos opostos, perante a indiscutível abstenção da sociedade. Parece que a questão nasce das necessidades de agenda de forças fanáticas e turbulentas.

Se olharmos com atenção, porém, notamos uma estrutura dialéctica semelhante em vários temas ao longo da História. Ao discutir a abolição da escravatura, por exemplo, o debate era também entre dois pequenos grupos de activistas, a favor e contra os direitos dos escravos, enquanto a maioria se mantinha apática ou, até, cúmplice. Também nas lutas contra o racismo, pena de morte, nazismo, discriminação da mulher e tantos malefícios, a generalidade da sociedade começou por manifestar desinteresse. Hoje temos uma opinião bem severa dessas maiorias silenciosas que, pela sua indiferença, contribuíram para manter terríveis injustiças. A moderação revelava inércia, não prudência. Não há dúvida que a questão do aborto se enquadra nestes temas vitais. Se existe ali uma vida inocente e frágil, permitir extirpá-la é uma infâmia horrível. Se não, então é urgente conceder a pessoas em circunstâncias aflitivas o acesso a cuidados de saúde adequados. Perante valores tão essenciais, não é admissível o alheamento. A apatia da maioria nesta questão não é sensatez. É cobardia.

A consideração dos dois grupos envolvidos também mostra o enviesamento da referida opinião. O confronto não é entre «extremismos» equivalentes na sua origem, estrutura, propósitos e métodos. E há uma grande diferença entre os dois lados do debate. O sofrimento das pessoas que recorrem ao aborto é evidente e esmagador. Ninguém comete um acto desses de ânimo leve e existem sempre terríveis dramas envolvidos. Isso não se pode negar e todos somos sensíveis à sua pungente realidade. Deste modo, a posição dos que defendem a liberalização não precisa de grandes explicações. É óbvia e patente. Compreende-se que boa gente a defenda. O paradoxo vem do outro lado. Porque é que, perante esta evidência, se haveria de contrariar necessidade tão imperiosa? Porque é que há tanta gente boa, honesta e sincera que se opõe à intervenção médica nestas circunstâncias? Os que recusam a liberalização do aborto não o fazem por leviandade, por capricho ou por facciosismo. Aliás, ao criarem múltiplas organizações de apoio a grávidas e bebés em dificuldades, os grupos activos contra a legalização manifestam bem o seu real empenho perante essas intensas angústias.

A sua posição parte da atenção preocupada perante sofrimentos muito mais graves que o aparente. O que justifica tal atitude é a consciência da terrível agressão contra a identidade do minúsculo embrião e da sua mãe. Também esta atrocidade, se se vir bem, é evidente e esmagadora, mas os abortistas recusam-se a considerá-la. Todos os séculos a entenderam, mas os nossos tempos voluptuosos preferem ignorá-la.

naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

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