Público - 25 Mar 03
Não!... Em Nosso Nome
Por GRAÇA FRANCO
A vítima relata: "Seguiu-se o terror... Um veterano foi buscar dois sacos de
esterco de porco e sendo escolhidos quatro dos trinta (...) presentes,
foi-lhes dada a liberdade de me esfregarem com esse esterco. (...) Foi-me
ordenado para ficar em pé, em sentido, a secar ao sol, e nesta posição
estive até à exaustão com as moscas pegadas a mim." Mais tarde, e já noutro
local, acrescenta: "Pegaram-me pelos pés e ombros e enfiaram-me a cabeça
dentro do penico com bosta. Não tenho noção do tempo que ali me mantiveram
em tortura, obrigando-me ainda a pedir desculpa."
Parece um relato de torturas de guerra. Mas a verdadeira guerra fez esquecer
esta denúncia de um desconhecido e sinistro campo de batalha mesmo aqui ao
lado, em Santarém. Os torcionários são alunos da Escola Superior Agrária e
colegas das vítimas. "O medo tolhia os movimentos de todos" era o
título-citação do relato de jornal, extraído da carta enviada ao ministro da
Educação. Ficava claro: as vítimas são simultaneamente cúmplices, pelo
silêncio, das agressões aos seus pares.
Ainda não tinha digerido o relato da tortura e dou de caras com as
declarações do "comandante" deste estranho campo de violação sistemática e
gratuita dos direitos humanos. O director da escola comentava, apenas, que
nela "toda a vida houvera praxes" e ele próprio se recordava de ter, vai
para quarenta anos, sido "esfregado com esterco", um material comum para
quem estuda agronomia. Não viu nisso nada de mais.
Da declaração retiro uma conclusão óbvia: esse senhor não pode ser da minha
geração. Mais novo ou mais velho mas, da minha geração, nunca! Não por ela
ter sido maioritariamente poupada à praxe mas, sobretudo, porque a
semelhante disparate ela sabia dizer "Não". E de repente enchi-me de um
orgulho insuspeitado pela geração de 80. A geração "Não".
Há anos que transportava este trauma: saber o que poderia caracterizar essa
geração para além de um yuppismo folclórico, um workaholismo compulsivo e um
não intervencionismo vergonhoso. Descobri-lhe finalmente o brilho, esta
semana. Somos a geração "Não". Assumida e orgulhosamente. Cabe-nos não
deixar perder esse património num "sim" difuso e permanente que estamos a
transmitir aos nossos filhos, a quem, alertam os educadores, é fundamental
que sejamos capazes de dizer "não", firmemente "não", como sempre soubemos
dizer a tanta coisa. Se não o fizermos eles vão ser incapazes de reconhecer
a força do vocábulo enquanto crianças, enquanto jovens, enquanto adultos,
enquanto pessoas.
As gerações anteriores demitiram-se dessa missão e está à vista o resultado
nestas novas gerações praxadas, acarneiradas, recheadas de carrascos e
algozes dos mais fracos, dos mais novos (haverá coisa mais feia do que
isso?).
São estes os filhos dos pais que desafiavam, agrediam, e provocavam os mais
velhos instalados. Os pais não mereciam a traição destes filhos! Acobardados
e acantonados no "sim"...
É urgente fazer contracorrente para que quando os nossos filhos chegarem à
idade adulta não se perca a preciosa herança da geração de 80 e sejam
capazes de reabilitar o "não".
Se entendermos como definidor de geração aquele momento em que entramos "nos
vinte e descobrimos o amor", sou dessa geração de 80 que em Portugal não
ficou célebre pelos melhores motivos. Anónima na opção "a nossa política é o
trabalho!", num revisionismo descomplexado da versão salazarista "aggiornata"
pelo ADismo posterior e o cavaquismo emergente. Nada de que até aqui nos
pudéssemos verdadeiramente orgulhar.
Mas somos também a última geração com consciência exacta do momento anterior
ao 25 de Abril, que nunca teve de enfrentar a censura, ou qualquer outra
ameaça à liberdade. Não fizemos dramas para sair à noite, não entrámos em
rupturas familiares, sempre pudemos dizer o que pensávamos, nunca fomos
discriminadas por ser mulheres, saímos de casa dos pais já tardote mas ainda
no limite da decência, etc, etc.
Somos por isso uma geração privilegiada, ainda a achar que o Ser não se
confunde com o Ter, que conhece o mundo sem ser via Internet, que acha o
emprego para a vida um "slogan" nipónico. Que canta os poemas de Brel, mas
não se arrepia com a metálica. Adora jornais sem saber se os leu em papel ou
no computador. Usa "chats" nas investigações científicas mas tem amigos de
carne e osso, com cheiros e cores característicos...
E porque somos a primeira geração da liberdade total somos a genuína geração
do "Não". A cada protesto contra uma proibição ouvíamos: "Por quê? PORQUE
NÃO!" E em coro clamávamos: "Porque não, não é razão!" Afinal era, afinal é!
Na minha geração, e ao contrário do que nós próprios supúnhamos, muitas,
infinitas coisas se esgotavam num enorme e assumido "PORQUE NÃO!". Porque
não me apetece. Porque não estou para aí virado. Era o que faltava, ter de
dar justificações (sobretudo isso!). Onde já se viu ter de justificar, a "um
idiota de um par", um "PORQUE NÃO!". Era porque não! E pronto!
O "sim" tinha, aliás, o mesmo tipo de justificação vagamente emocional,
"porque me dá na gana, porque gosto, porque acredito, porque quero!", sem
mais. O reverso era sempre um enorme respeito pelo "não" ou pelo "sim" do
outro. À inglesa, sem perguntas indiscretas, incómodas, desnecessárias. Sem
violações das convicções ou das opções dos outros.
Nas gerações anteriores (as de 60 e 70) até os amores tinham de ser
justificados. Só se amava quem partilhava as mesmas leituras, as mesmas
convicções, os mesmos partidos, as mesmas descrenças. O resto era
contra-revolucionário.
Nós adoramos contrastes. Por isso na minha geração esta praxe era
impensável. Mas não era necessário odiar a praxe como nas anteriores.
Podia-se até defendê-la como paródia saudável. Cada um era livre de fazer o
que entendia. Se me apetecesse vestir de estudante de Coimbra, mesmo
estudando em Lisboa, podia muito bem fazê-lo. Ai de quem quisesse
impedir-me. Ai do palerma que, invocando a idade, pretendesse que eu fizesse
fosse o que fosse. Era só o que faltava, ter de meter a cabeça num penico
para me vestir de preto ou cantar o fado. Bastava dizer "NÃO!".
Aos meus filhos gostava de transmitir essa conquista. Não! Não tomo drogas,
não fumo, não exagero no álcool, não digo palavrões. Não deixo que me chamem
besta (nunca deixei! Ao contrário daqueles que já deixavam vai para quarenta
anos!), não tenho nem simulo sexo com ninguém que eu não escolha. Não meto a
cabeça em penicos, e ninguém me esfrega com bosta! E não faço o que não
quero. PORQUE NÃO! E neste país livre se alguém insistir no contrário chamo
a polícia! Defendam o "NÃO"! Em nosso nome!
P.S.: Os nossos homens
Acabo de ver um soldado a "arder" em directo, acabo de ver soldados e
populares a caçar num rio outros soldados... Sou casada com um outro soldado
que ainda está aqui. Sou jornalista e interrogo-me sobre como se pode fazer
o relato desta guerra sem a banalizar, sem perder a consciência de que
aquilo não é um "alvo", é um homem e, como dizia o Papa, continua a ser "o
homem que mata e não a sua espada, ou, nos dias de hoje, os seus mísseis".
Cada um daqueles homens a matar ou a ser morto é o homem de alguém! Podia
ser o meu. |